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Apelo

ao voto informado
[A crença] não incide apenas sobre o poder de um mágico ou o valor de um rito, mas
sobre o princípio do conjunto da magia. Assim como a magia é mais real que as suas
partes, assim também a crença na magia em geral é mais enraizada que aquelas da qual
os seus elementos são objecto

Marcel Mauss, Esboço de uma teoria geral da magia.

O beneficiário da maioridade, o filho primogénito, pertence à terra. Ela o herda.

Karl Marx, Contribuição para a crítica da economia política.

No panorama político português aparece, cada vez com mais força, o apelo à abstenção.
Diagnostica-se a falta de credibilidade dos partidos políticos, e defende-se a abstenção como forma de
protesto. O meu intuito aqui é apelar ao voto! Quero demonstrar que o apelo à abstenção é resultado de
um equívoco profundo. Este é um apelo à apatia. Mas é mais do que isso: é a defesa de um abismo ainda
maior entre os políticos e os cidadãos que está na origem da perda de qualidade da democracia
portuguesa. Longe de ser uma alternativa, apelo ao voto em branco tem o mesmo efeito. Não sendo um
apelo à apatia, é uma contribuição para esse abismo que se abre entre representantes e representados. Irei
argumentar que apelar à abstenção e ao voto em branco como protesto contra a qualidade da democracia é
uma tentativa de combater o fogo com gasolina. Vejamos porquê.

A meu ver, crê-se que os políticos são corruptos pelas piores razões. Existem, de fato, uns
quantos casos de polícia que evolvem políticos. O caso Freeport e a Operação Face Oculta são dois
exemplos que ocuparam muitas horas de telejornais em Portugal. Vários Presidentes de Municípios foram
condenados por corrupção, como Fátima Felgueiras ou Isaltino Morais. Mas estes casos particulares não
justificam a ideia generalizada de que os políticos são corruptos. Não justificam, por exemplo, as acusa-
ções feitas a Fernando Nobre a partir do dia em que aceitou candidatar-se pelo PSD, pelo círculo de
Lisboa, nas eleições de 5 de Junho para a Assembleia da República. Não justificam que um individuo
qualquer seja visto como corrupto a partir do momento em que se senta numa cadeira dessa assembleia.
Essa “certeza” que os eleitores têm de que, em geral, só se candidata quem quer aproveitar-se das
oportunidades oferecidas pela corrupção, é profunda. Muito mais profunda que a desconfiança que pesa
sobre um político particular. Duvida-se ou dá-se o benefício da dúvida a um político concreto em relação
a uma acusação concreta. Mas têm-se uma convicção inabalável de que os políticos, de uma maneira
geral, são corruptos.

No tempo de Salazar não se falava em corrupção; mas não faltava quem fizesse falcatruas. Nesse
momento, não estava colocada a questão da corrupção como forma de avaliar os políticos. Nem mesmo a
oposição organizada, o PCP, sonhava criticar a ditadura de Salazar como uma administração corrupta.
Não era um argumento pertinente ou interessante. Hoje é-o! Por isso, a ideia de uma corrupção
generalizada não pode ser buscada na existência – ou no aumento – de uma corrupção em geral. Ela tem
de estar em outro lado. Aliás, como Mauss disse acerca dos magos da antiguidade e podemos dizer hoje
acerca dos médicos, o erro de um bruxo ou de um médico não põe em causa à validade da bruxaria ou da
medicina. As nossas crenças gerais são mais profundas e estão mais enraizadas que as nossas crenças em
pessoas e actos particulares. Quer dizer isto que as nossas crenças gerais não derivam dos factos
particulares. Pelo contrário: tomamos um facto como verdadeiro quando ele está em consonância com as
nossas crenças. Não é porque existem políticos corruptos que acreditamos que a política é corrupta. É
porque acreditamos que a política corrompe que não pomos em dúvida qualquer acusação de corrupto a
um político.

Assim, é necessário buscar a origem da ideia de que existe uma corrupção generalizada da
política fora dos casos de corrupção propriamente ditos. Essa ideia é autónoma dos factos concretos. Os
factos, quando muito, a confirmam; não a geram. Uns quantos factos de corrupção descansam a nossa
“certeza” de que os políticos são corruptos. Mas a nossa “certeza” foi gerada antes desses factos e,
portanto, por algo distinto desses factos.

Creio poder encontrar a origem da ideia generalizada de que os políticos são corruptos no modo
como hoje em dia se debate política. Um partido está interessado em captar votos em todos os quadrantes
sociais ou ideológicos1. Para ter votos, os partidos evitam dizer, por exemplo, que reduzirão a divida
pública demitindo funcionários públicos, para contar com votos nesses funcionários. Evitam dizer que
aumentarão o investimento público em saúde à custa de um agravamento dos impostos, para contar com
os votos dos contribuintes. Evitarão, enfim, expor as suas políticas. O que sobra então para discutir?
Sobra o debate sobre qual é o partido e o dirigente mais competente e o menos corrupto. As campanhas
eleitorais, reparando bem, se resumem a um jogo de atribuição de culpas.

A política real, da concertação de interesses ideológicos, foi, nos últimos anos, subordinada a uma
política fetiche. É verdade que os políticos não deixaram de ter de negociar questões propriamente
políticas (aquelas que por não interessarem igualmente a todos devem ser politicamente negociadas).
Decisões de aumento ou redução de impostos, alocação da despesa pública, definição de prioridades de
investimento, etc. continuaram a ser discutidas entre os políticos. Mas cada vez mais foram remetidas
para as comissões de especialidade na Assembleia da República, em diálogo com os lobbies existentes.
As campanhas eleitorais e mesmo as reuniões plenárias da Assembleia tornaram-se o lugar da política
fetiche. Tornaram-se o lugar dessa política de atribuição de culpas, onde o político se reduz a imagem que
os políticos procuram criar de si mesmos e dos seus adversários. Onde, enfim, o debate político enferma
da ausência de questões propriamente políticas.

É, pois, como resultado de tudo isto que os políticos de hoje perderam qualidade. Adaptando as
palavras de Marx, quando o primogénito herda a terra é a terra que o herda. Do mesmo modo, não é o
mau político que faz má política; é a má política que “escolhe” para si os piores políticos. O domínio da
política fetiche sobre a política real faz com que a pura busca do poder se sobreponha a luta movida por
convicções ideológicas. A política fetiche abre as portas para aqueles que estão disponíveis para entrar no
1
A expressão “quadrantes ideológicos” é mais exacta que “quadrantes sociais”. Mas a palavra ideologia é usada pelo senso
comum de modo distinto daquele que eu emprego aqui. Leonardo Boff expõe bem o conceito de ideologia quando afirma que
“todo um ponto de vista é a vista desde um ponto”. Assim, dependendo se se vive em Lisboa ou numa aldeia de Bragança, se lê
de forma distinta a notícia de que escolas primárias com menos de dez alunos devem fechar. Igualmente, um contabilista ouvirá a
notícia de forma bem distinta de um técnico de serviço social. Existem argumentos a favor e contra essa posição. Cada um
“escolhe”, muitas vezes sem dar por isso, aqueles argumentos mais de acordo aos seus interesse e à sua maneira de ver o mundo.
É a isto que chamo de ideologia.
jogo da atribuição de culpas, muitas vezes sem conhecer as causas dos problemas. Os maus políticos
aceitam de bom grado, e sem discussão, a priorização de problemas e soluções prescritas. Para os maus
políticos, os problemas e as soluções são dados; a única coisa que está em discussão quem foi o culpado
pela existência do problema e quem deve pôr em marcha a solução. Para os maus políticos a política
fetiche basta. Para a política fetiche bastam os maus políticos.

Os bons políticos, tal como a política real, permanecem subordinados. Questionar a validade de
certo problema, querer analisar as suas causas, tomar um ponto de vista sobre o problema, é perder votos.
Discutir se o problema é o da dívida ou o do crescimento económico é atribuir a apenas alguns grupos
sociais o papel motriz da sociedade. É escolher aqueles a quem o Estado deve apoiar prioritariamente e
aqueles que devem suportar o Estado. Quando um político diz “o país necessita de ser mais competitivo
nas exportações”, ele afirma que o governo deve fazer políticas que favoreçam os exportadores em
detrimento daqueles que produzem para o consumo interno. É neste sentido que toda a política é ideologia
e o termo ideologia deve ser entendido. Em resumo, fazer política real é tomar partido e tomar partido é
perder votos. Eis porque enveredar pela política fetiche é menos uma opção do que uma inevitabilidade2.

Uma tal transformação nas atitudes entre aqueles que disputam eleições não pode ocorrer sem
transformar os eleitores. É por demais óbvio que o modo como os candidatos se apresentam aos votantes
determina o modo como estes vêem os candidatos. O contrário também é verdade: o modo como os
eleitores vêem os candidatos influencia o modo como os candidatos se apresentam. É uma regra básica da
análise da sociedade, seja ela qual for, entender cada fenómeno na relação com outros. Ao não tomar em
contas as relações não obtemos um resultado incompleto; o que resulta daí é um resultado dilacerado.

Como disse, o debate político estrutura-se pela oposição entre competência e corrupção. O
discurso dos partidos está concentrado em mostrar a incompetência e a corrupção do seu adversário.
Apontar o “defeito” no outro serve, por contraste, para ressaltar a sua “virtude”. Como disse, os motivos
porque se propõe esta ou aquela política, porque se dá prioridade a este ou aquele problema, porque se
escolhe determinada solução, são excluídos de debate. Nestas condições não será de estranhar que os
eleitores não detenham informação para diferenciar os políticos. Embora eu não acredite nisso, parece-me
óbvio que aos olhos dos eleitores os políticos sejam todos iguais. A abstenção e o desinteresse pela
política nascem desta “incompetência” dos cidadãos para entender de que falam os políticos.

2
O caso mais paradigmático que conheço deste fenómeno ocorreu durante a campanha eleitoral para as eleições presidenciais no
Brasil. No final da primeira volta, Dilma Russeff estava a perder terreno para José Serra, sobretudo graças à subida de Marina
Silva. Mais, as sondagens mostravam que a grande maioria de indecisos partilhavam algo em comum: eram religiosos
evangélicos ou neo-pentacostais. O lobby das igrejas aproveitou para colocar, no debate, o tema da despenalização da Interrupção
Voluntária da Gravidez (IGV). Somente Marina Silva havia já se manifestado contra. José Serra afirmou, logo de seguida, ser
igualmente contra, aproveitando o facto de, como ministra e líder do Partido dos Trabalhadores, Dilma Russeff se ter
pronunciado em sentido contrário. Mas acabou por vir a público que a esposa de José Serra é uma activista pela despenalização
IGV, deixando o candidato numa posição ambígua. Dilma Russef foi ainda mais radical. Ela distinguiu entre a sua posição
pessoal e o programa da sua aliança política, contra a legalização da IGV. A campanha de Dilma Russef fez questão de esclarecer
que, independentemente da posição da candidata, o que contava era o programa da candidatura.
Eis a política fetiche no seu estado mais puro: não se coloca em discussão a despenalização da IGV; o que está em
causa é quem é o político mais adequado para por em marcha algo que já foi previamente decidido pela tendência medida pelas
sondagens. Aqueles que nas alianças de base das candidaturas de Dilma Russef e José Serra advogavam a despenalização da IGV
foram cuidadosamente silenciados. Nem um argumento a favor da despenalização foi proferido durante a campanha eleitoral.
Nenhum debate honesto; a política fetiche é o reino das ideias feitas e dos preconceitos. (Qualquer semelhança com o debate
agora, em Portugal, sobre a necessidade da entrada do Fundo Monetário Internacional no país não é pura coincidência).
Mas é mais grave ainda. Quando as pessoas vêem a sua qualidade de vida deteriorar, não têm
elementos que lhe permitam entender as causas desse deterioro. Se a política se avalia no binómio
competência versus corrupção, somente a corrupção pode justificar o fracasso das políticas. Assim, a
política está cheia de “corruptos”. Não se oferece aos eleitores outra explicação! Por isso mesmo eu
acredito que a corrupção se encontra sobrevalorizada. Pois, como eu afirmei apoiado em Mauss, não é
pela generalização dos casos particulares que surge a ideia geral. A origem da ideia de que os políticos
são corruptos está no facto de que as pessoas não contarem com outro critério para perceber porque a sua
qualidade de vida se deteriorou. E bastam-lhe uns quantos casos de corrupção para confirmar essa ideia.

Da ideia generalizada de que os políticos são corruptos ao protesto contra os políticos em geral
vai um ténue passo. Os cidadãos deixam de abster-se angustiados por não encontrarem soluções na
política, para abster-se e apelar à abstenção convictamente e em protesto contra os políticos. Aquilo que
tem origem na sua incompetência política, ou mais exactamente, na falta de informação para avaliar os
políticos, não é tomado mais como tal. Bertolt Brecht chamava-os de analfabetos políticos, sem entender
os mecanismos que os afastam da política. Nisto o apelo à abstenção não é diferente do apelo ao voto em
branco. Deste modo, a política fetiche e a ideia que os políticos são todos iguais, corruptos e
incompetentes, não são mais do que as duas faces de uma mesma moeda. Tais atitudes são as duas
margens do grande abismo que se cava entre a política e o cidadão comum. Assim, como afirmei no início
do texto, apelar ao voto à abstenção e ao voto em branco contra os políticos é regar o fogo com gasolina.
É dar mais um contributo para o alargamento do fosso entre representantes e representados.

Creio ter chegado à conclusão que me propus demonstrar. Os apelos à abstenção e ao voto em
branco afastam as pessoas da necessidade de compreender os políticos, contribuindo, ainda mais, para o
abismo entre representantes e representados, empobrecendo a qualidade da democracia. É preciso, no
entanto deixar claro que não o vejo como produto de uma atitude racional dessas pessoas. Pelo contrário,
é um produto da estrutura da relação entre políticos e eleitores. Mas parece-me necessário ir mais longe e
incorporar nesta análise os meios de comunicação e a sociedade civil organizada. Ambos têm-se prestado
a um papel semelhante. Ao quererem expurgar do si o debate ideológico, em vez de construir pontes entre
cidadãos e políticos, contribuem ainda mais para esse abismo.

Os meios de comunicação são um caso exemplar. Os jornalistas buscam oferecer um ponto de


vista “objectivo” sobre os factos políticos. Eles se esquecem apenas que a selecção do ponto de vista, ou
do ângulo da reportagem – como gostam de dizer –, já está carregada de subjectividade, isto é, de
ideologia. Mas o ponto de onde vêm os factos políticos, a sua ideologia, é a ideologia do jornalista. Não
se reduz à oposição entre esquerda e direita, mas tenta escapar-se dela. A ideologia jornalística da busca
de objectividade faz o jornalista buscar um ponto que vista que não tenha qualquer vínculo com os
interesses dos outros. Em resultado, os interesses dos prejudicados e dos beneficiados do acontecimento
político são obliterados da notícia. As notícias políticas apresentam a política como uma guerra de
capelinhas entre partidos, despida de consequências reais. (Lembremos, por exemplo, o debate entre PS e
PSD em 2010 acerca da reforma da Constituição da República Portuguesa). A busca de objectividade
jornalística não faz mais do que reforçar a política fetiche e facilitar que esta se sobreponha à política real.

O jornalista que pretende dar a conhecer as consequências reais de uma política não poderá evitar
pôr em causa a sua “objectividade”. Qualquer que seja o ângulo escolhido, este estará sempre mais
próximo do ponto de vista ideológico de um grupo social do que de todos os outros. E os outros criticarão
a notícia como ideológica. Aquele que tenta dar a conhecer a política real por oposição à política fetiche
será considerado um mau jornalista: ele não é objectivo. Por isso, para o jornalista, como para o político,
envolver-se com a política fetiche surge mais como uma inevitabilidade do que como uma opção. Um não
o faz sob pena de perder votos; o outro segue-o para não perder credibilidade. Exceptuam-se obviamente
os jornalistas que optam por declarar a impossibilidade de um jornalismo objectivo e fazem um
jornalismo ideologicamente vinculado – de que o Le Monde Diplomatic é o melhor exemplo.

Quanto à sociedade civil organizada, estamos frente a algo mais complexo. Por isso sinto a
necessidade de me afastar, ainda que por um breve momento, do argumento central deste texto, para logo
retornar a ele de forma mais consistente.

A sociedade civil organizada é um verdadeiro terceiro sector, na medida em que enquadra tudo o
que não pode ser definido enquanto Estado e privado. Não obstante, tem duas características importantes
para o argumento que se vai seguir. Por um lado, os seus líderes estão, de algum modo, envolvidos na
política: ou são igualmente activos na vida partidária ou estão bem articulados com os políticos para pôr
em marcha iniciativas comuns3. Por outro lado, a partir do final da década de 1980, muitas organizações
da sociedade civil passaram a depender do Orçamento de Estado. Pode mesmo falar-se de um verdadeiro
outsourcing da execução das políticas públicas. E, pese a isto, a sociedade civil vê-se a si mesma e é vista
por oposição à sociedade política, isto é, ao Estado e aos partidos.

A origem desta oposição é simples (embora eu preveja que o argumento não será pacificamente
aceite). Desde meados do séc. XIX que as disputas políticas deixaram de ser levadas a cabo entre
diferentes grupos sociais com interesses em conflito, para serem projectados contra o Estado. Tomemos
um exemplo hipotético bastante claro. A rede de associações de desenvolvimento local barganha junto do
Estado que os fundos de desenvolvimento rural sejam empregues na diversificação da economia rural. Ela
tem claro que disputa com a confederação de agricultores que, por seu turno, se bate para que esses
fundos sejam aplicados no sector agrícola. Mas já tem menos claro que ela está em disputa com a
associação de empresários que faz lobby pela redução de impostos. Se a associação de empresários
representar pequenos empresários, é possível até que a rede de associações de desenvolvimento apoie as
duas bandeiras contraditórias. E basta pensar que a associação de pequenos empresários luta pela redução

3
Mais uma vez, permito-me a dar um exemplo brasileiro: a relação entre a eleição de Leonel Brizola como governador do Estado
do Rio Grande do Sul e o surgimento do Movimento dos Agricultores Sem Terra (MASTER). Esta relação é ambígua e matéria
de disputa entre cientistas sociais brasileiras. Para uns o MASTER foi um movimento de agricultores de base popular; para
outros, uma invenção criada por Brizola. Duas pesquisas recentemente publicadas, mostram que a articulação é bem mais
complexa. A primeira ocupação de terras no Brasil, em 1962, jamais teria acontecido senão corresse o boato de que o governador
do Estado a apoiava. Por outro lado, nem toda a direcção do MASTER era leal ao governador. É certo que a direcção do
movimento contava com membros do Partido Democrático Trabalhista, criado por Brizola. Mas contava também com membros
do Partido Comunista Brasileiro, em quem o governador não confiava. Não se pode, no entanto, desconsiderar que o MASTER
não existiu antes ou depois do governo de Brizola; embora, anos mais tarde, o conhecido Movimento dos Sem Terra (MST)
viesse a ser fundado por pessoas que estiveram ligadas à fundação do MASTER.
O caso apresentado mostra duas coisas. Por um lado, nenhum governo pode pôr em prática uma política de reforma
agrária senão como resposta a uma reivindicação. Brizola justificou as expropriações de terra com ocupações do MASTER. Os
agricultores sem terra exigiam a fazenda ocupada; o governador justificava a desapropriação como uma solução dentro das
normas da Constituição, segundo a qual a função social da terra se sobrepõe à propriedade privada. Por outro lado, a sociedade
civil não teria conseguido jamais ter êxito e, com isso, crescer, sem que políticos profissionais estivessem dispostos a decidir
favoravelmente às suas reivindicações. Se a primeira ocupação redundasse em uma carga policial, dificilmente haveria segunda.
(Ver Sigaud, L; Ernandez, M e Rosa, M – Ocupações e acampamentos. Rio de Janeiro, Garamond, 2010 e Alves, Bernard – A
política agrária de Leonel Brizola no Rio Grande do Sul. Seropédica, CPDA/UFRRJ, 2010 [dissertação de mestrado]).
da burocracia de licenciamento contra o lobby dos profissionais de gestão de qualidade e segurança para
ver como adversários políticos, na grande maioria das situações, se desconhecem mutuamente.

Enfim, a fragmentação do espaço político faz o milagre de colocar o Estado como o adversário
comum dos grupos organizados com interesses divergentes. Grupos organizados com interesses
antagónicos sentem-se parceiros no seu antagonismo com o Estado. Mas, de facto, é mais correto tomar o
Estado como um mediador de interesses entre os diferentes grupos organizados. Não, obviamente, um
juiz imparcial, mas um mediador tendencioso que favorece mais uns que outros. Supor o Estado como
uma parte interessada, como qualquer grupo de interesse, é supor que o Estado tem interesses distintos
destes. Ora, tal suposição leva-nos a incorrer em dois erros possíveis.

Primeiro, considerando que o Estado tem como missão regular as relações entre a sociedade civil,
pode erradamente assumir-se que o interesse do Estado é, precisamente, elaborar leis justas. Mas aqui
defrontamo-nos com um velho problema marxista ou nietzschiano: parece-nos sempre mais justo aquilo
que se ajusta aos nossos interesses. A definição do justo, do injusto e do equivocado é uma questão de
ponto de vista, isto é, de ideologia. Isto recoloca os interesses divergentes da sociedade civil em jogo e o
Estado no seu papel de mediador (não neutro). O segundo erro é conceber a ideia de um interesse geral,
distinto de todos os interesses particulares, que deve ser assumido pelo Estado. Valeria a pena fazer a
história da ideia de interesse geral que, como se sabe, está ligada à ascensão da sociedade burguesa
moderna. O interesse geral opunha-se ao interesse real, do monarca, como uma forma de limitar o seu
poder e passa-lo para as mãos do parlamento nascente. Não obstante, aqui basta pontuar que a ideia de um
interesse geral é em tudo igual à ideia de uma lei justa: o interesse parece-nos sempre mais geral quanto
mais se aproxima do nosso interesse particular ou ponto de vista.

Mas podemos ir mais longe: os movimentos e organizações da sociedade civil cairão


infalivelmente nesses dois erros. Mesmo sabendo que as exigências que fazem ao Estado são ideológicas,
isto é, do interesse dos grupos que representam, eles argumentarão que elas são justas e do interesse geral.
A ideia de um interesse geral está tão entranhada na política que é difícil não acreditar nela; e, mesmo
quem não acredita, acaba por ceder e supor a sua existência, pelo menos, para reivindicar a legitimidade
do seu interesse particular. Assim, a chave de leitura competência versus corrupção é novamente utilizada
para analisar os políticos. Se o político não “escuta” o movimento é incompetente ou corrupto: afinal, do
seu ponto de vista, o movimento defende um interesse geral de toda a sociedade. Portanto, se a função do
governo é defender o interesse geral e não equilibrar interesses particulares, o governo, ao não fazer caso
da proposta do movimento, está a mostrar a sua incompetência.

Além disso, a sociedade civil organizada aprofunda a divisão entre política real e a política fetiche
por razões pragmáticas, embora não intencionais. Para esquivar-se a divisões internas criadas pela política
partidária e pela política fetiche, os movimentos terminam por extirpar do seu seio discussões partidárias.
Trata-se, por um lado, de tentar captar para si pessoas que, embora com uma orientação de voto
incongruente com a proposta do movimento, discordam naquele ponto específico do seu partido. (Veja-se,
por exemplo, a iniciativa de Lei Contra a Precariedade do Movimento de 12 de Março que, ao não
permitir debater partidários, pode captar apoios fora dos partidos a que os seus dirigentes pertencem:
maioritariamente do Bloco de Esquerda, mas também com alguns militantes do PCP). Trata-se, por outro,
de esquivar-se à imagem bastante negativa que pesa sobre a esfera política. Ao recalcarem a sua
vinculação com os partidos políticos, os dirigentes da sociedade civil livram-se da imagem de corruptos e
oportunistas que pesa sobre os políticos e, mais do que isso, de estarem a usar a associação ou movimento
como trampolim para entrar nos meandros da política.

Políticos, jornalistas, sociedade civil organizada e eleitores colaboram, sem o saber, na fundação
do abismo que separa a política dos cidadãos. Trata-se de um movimento que separa o debate político das
suas consequências, tornando tal debate cada vez mais um tema que somente políticos e jornalistas
entendem e têm nele interesse. A política real, com consequências, parece estar fora do alcance dos
cidadãos que, quando muito, podem intervir nela através da sociedade civil. Mas esta intervenção faz-se
sempre de forma fragmentada e, por isso mesmo, limitada. E, mesmo assim, a participação na política real
por meio da sociedade civil não está acessível igualmente a todos: é preciso ter tempo e conhecimentos
que somente alguns têm. E, para acabar, o modo como a sociedade civil organizada intervém na política
reforça a oposição entre política real e política fetiche, condenando a última ao seu gueto.

Não adianta agora dizer que com outros políticos, outros jornalistas e outros líderes da sociedade
civil organizada a política fetiche desapareceria. Pretendi deixar claro ao longo do texto que a opção pela
política fetiche é menos uma escolha do que uma inevitabilidade. O político que exponha claramente os
perdedores da sua estratégia perderá votos entre eles sem necessariamente recuperá-los entre os seus
privilegiados. O jornalista que exponha os interesses que subjazem às guerras de capelinhas entre partidos
será acusado de fazer um jornalismo ideológico e, por isso, de pouca qualidade. O dirigente da associação
que reconheça o seu interesse como particular perderá um forte argumento para legitimar as suas
propostas. Por outro lado, exigir uma solução dessa coisa mal definida que são “os eleitores”, toda a
gente, isto é, ninguém em particular, é atirar a solução para as calendas.

Parece-me, não obstante, haver alternativas. Um exemplo é o movimento, como aquele iniciado
por João Nogueira dos Santos, “Adere, vota e intervém num partido”4. Ao tomar a luta contra a
depauperação do político como o problema a resolver, o movimento pode fazê-lo em nome do “interesse
geral” e sem defender um partido político. De fato, parece mesmo ser do interesse geral da sociedade
qualificar a sua política. Não obstante, enquanto estes movimentos não ganham força, só resta apelar ao
voto consciente. Só resta apelar as pessoas que se informem, debatam e discutam política. Que
identifiquem as questões em debate e mapeiem as alternativas. Que sozinhos, ou em pequenos grupos,
aprendam a distinguir os políticos. Nenhum político ou partido é igual ao outro e votar informado é
conhecer essas diferenças.

Pese ao panorama negro que tracei nestas sete páginas, faço este apelo numa réstia de esperança
que algo mude.

Votem informados no próximo dia 5 de Junho.

José Ferreira
http://falaferreira.wordpress.com
mail@joseferreira.com
4
Ver http://www.facebook.com/group.php?gid=246936858817.

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