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Visão de Mundo e Método de estimulava e mobilizava apenas um pequeno e genial grupo

Conhecimento no Materialismo de Karl de pensadores universais e as cúpulas clericais e estatais às


quais eles se associavam. Natureza e Homem, postos a nu
Marx para serem dominados e explorados pela nova classe
Milton B de Almeida Filho
dominante, foram definitivamente retirados das mãos e do
olhar contemplativo da filosofia num processo avassalador
Marx foi um filosofo incomum. Não escreveu de transformações que influenciou de maneira definitiva o
nenhum tratado sistemático sobre qualquer tema de pensamento de Marx.
natureza filosófica e quando se referiu à importância O modo de produção capitalista em ascensão era
inequívoca deste tipo de conhecimento sempre o fez com uma prova viva e fulminante dos poderes da ciência e da
ressalvas ao caráter especulativo predominante nas suas técnica na geração de conhecimento verdadeiro sobre o
diferentes escolas e tendências. Não escapavam desta mundo. A verdade de uma afirmação qualquer sobre as
critica os admiráveis e atualíssimos filósofos gregos da coisas, questão que ainda hoje suscita debates intermináveis
antiguidade – Platão, Aristóteles, Epicuro, Demócrito – os entre os epistemólogos, recebeu, em Marx, uma indicação
revolucionários modernos – Descartes, Leibniz, Spinoza, bastante simples e precisa do caminho a ser trilhado para
Bacon, Hume e Kant – nem seus “mestres” mais próximos solucioná-la: o critério fundamental para saber se uma
– Hegel e Feuerbach. Para Marx, estes grandes filósofos e afirmação é falsa ou verdadeira é a prática. Não apenas a
suas filosofias colocaram problemas essenciais acerca da experimentação e a observação sistemática, mas também a
natureza do mundo, do pensamento e da sociedade humana pratica social, a vida social em sua concretude, com seus
e estabeleceram as macro visões de mundo – que ele e milhares e irrefutáveis exemplos cotidianos.
Engels denominaram de materialismo e idealismo1 – no A Filosofia clássica e moderna cultuou a pratica de
interior das quais estes problemas foram abordados de elaborar sistemas de pensamento fechados e universais
forma mais ou menos bem sucedida. suficientemente consistentes a ponto de serem capazes de
Marx acentuava que as visões de mundo orientar os seres humanos em todas as suas atividades.
abrangentes e coerentes, típicas dos grandes sistemas Ontologia, lógica, epistemologia, ética, estética, política,
filosóficos, não eram úteis apenas para a sustentação dos todos os campos do conhecimento e da existência humana
princípios gerais sobre a natureza das coisas e dos modos eram minuciosamente investigados através do pensamento
concretos e logicamente possíveis de conhecê-las. O dedutivo. Axiomas, teses e leis derivavam-se mutuamente
conhecimento sobre o mundo opera sobre esse mesmo através da argumentação. A demonstração das verdades
mundo transformações tão radicais que mudam os descobertas se fechava, na grande maioria das vezes, para a
processos e o curso da natureza e da sociedade. Na época experimentação e para a indução. O método experimental
de Marx, essa revolução era o resultado da união entre a da ciência e a pratica social capitalista demonstraram
técnica e a indústria. O conhecimento tecnológico e a claramente que nem “se pode mais buscar verdades
vontade interessada de uma nova classe se articulavam na absolutas, nem se pode restringir os meios de alcançar as
produção de um tipo mais complexo de sociabilidade: era a verdades relativas”. O conhecimento, universal e
expansão e consolidação do capitalismo. As questões abrangente, é empreendimento para ser realizado por toda a
cruciais suscitadas pelas discussões seculares sobre a humanidade e seus múltiplos e diferentes tipos de
essência e as propriedades do mundo e o modo de conhecê- conhecimento. É neste sentido que Hegel é o último grande
las tornaram-se problemas práticos que ocupavam as filosofo, pois ele produz “a forma última e mais acabada da
mentes e os bolsos dos empreendedores burgueses dos filosofia em geral”, e depois dele “a sistemática é
séculos XVIII e XIX. Desde então, a indústria pôde impossível” (Engels, 1979). Não sendo a filosofia a ciência
transformar os elementos constituintes da natureza em bens das ciências ela deve especializar-se em domínios
para o comercio e para o aumento redobrado da produção. particulares ainda que de alcance geral: “a doutrina do
O domínio acelerado da natureza acabou por criar a pensamento e de suas leis, a lógica formal e a dialética” 2.
necessidade de disciplinar e otimizar a utilização da força (Engels, idem)
de trabalho, cada vez mais especializada. O estudo das Coerente com esse modo de pensar a Filosofia a
mentes e dos corpos dos seres humanos desenvolveu-se de obra de Marx não é filosófica no sentido tradicional, como
forma continua e surpreendente desde essa época. Uma das já me referi acima, e nem científica, no sentido positivista
características mais marcantes da chamada modernidade foi ou neopositivista dominantes. Marx contamina o
colocar no centro do modo de vida o conhecimento conhecimento, diriam os seus críticos, com valores e
profundo da Natureza e do Ser Humano. Esse desafio não interesses humanos na abordagem e na investigação do seu
2
É impressionante como o prognóstico de Marx e Engels
1
Nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos Marx apresenta a sobre o lugar que a filosofia iria ocupar no interior do sistema de
uma formulação que postula o Naturalismo como uma Visão de conhecimentos contemporâneo é preciso. Delimitado de um lado
Mundo alternativa que superaria as limitações do Materialismo e pelo desenvolvimento das ciências e de outro pela divisão social
do Idealismo, no sentido em que aquele situa o problema crucial do trabalho, a filosofia contemporânea concentra-se na discussão
da relação entre o Ser e o Pensamento na história natural do dos fundamentos lógicos, epistemológicos e ontológicos do
mundo: “Vemos aqui como o naturalismo realizado, ou conhecimento. Vemos diante de nós, desde o inicio do século XX,
humanismo, se diferencia tanto do idealismo quanto do o enorme desenvolvimento das Ciências Lógicas, da Filosofia da
materialismo e é, a um só tempo, a verdade unificadora de um e de Mente, das Filosofias das Ciências, das Artes e da Religião, da
outro. Vemos igualmente como só o naturalismo é capaz de Epistemologia e da Ética e o desaparecimento dos sistemas
compreender o ato da historia universal” (Marx, 2004). filosóficos universalizantes.

1
objeto de estudo e na exposição dos seus resultados de mecanicismo tradicional, com a metáfora da máquina como
pesquisa. Expressa, muito claramente, a idéia de que a a sua imagem modelo do universo, cede o lugar a uma
ciência está condicionada pela divisão social do trabalho e visão mais flexível (Prigogine e Stengers, 1997; Stengers,
pela ideologia das classes sociais de uma determinada 2002). Entretanto, o mesmo não ocorreu com as
época histórica. Mesmo que o investigador não se dê conta explicações reducionistas a respeito natureza e do
ou tente se colocar numa posição objetivista, isenta de funcionamento das coisas.
qualquer influência subjetiva, haverá sempre a marca de As verdades científicas encontradas na Física
sua história pessoal e do pensamento coletivo naquilo que Quântica e na Genética são amplamente utilizados pela
estuda e no conhecimento que produz. A ciência de Marx é mainstream da comunidade cientifica mundial e pelos
produzida a partir de uma determinada posição dentro da meios de comunicação de massa. Eles reforçam a tese de
sociedade e da história humana e, ao fazê-lo, conclui pela que todos os fenômenos naturais, sociais e psicológicos
necessidade de transformação dessa mesma história e podem ser explicados de forma substancial pelas leis do
sociedade. A filosofia de Marx, portanto, está no cerne da movimento e do comportamento físico-químico das
sua ciência, que incorpora, de forma entusiasmada até, uma moléculas. Desta forma, fenômenos psicológicos resultam
visão de mundo e um método geral de produção de fundamentalmente de processos neuronais e são
conhecimento. É dessa visão de mundo e do método a ela suficientemente compreendidos pelas descrições e
associado que irei tratar neste capitulo. explicações de sua base físico-química. Por sua vez,
Considero necessário fazer uma ressalva prévia fenômenos sociais são, rigorosamente, produtos das
para que o leitor possa situar-se em relação ao pensamento interações entre organismos individuais cujos
do autor e com ele dialogar criticamente. Minha comportamentos são necessária e suficientemente bem
perspectiva, ao tratar do marxismo, está comprometida com descritos – e explicados – pelas determinações do seu
seu desenvolvimento teórico e sua aplicação prática. programa genético. Nesta abordagem, todo o universo vivo
Teoricamente não faço distinções substantivas entre as e não-vivo se reduz à dinâmica processual e transformativa
visões de mundo e o pensamento metodológico de Marx e dos aspectos físicos do mundo (Holland, 1997).
Engels. Além disso, escrevo sob a influência de um A nova imagem da realidade é menos rígida do que
engajamento político pessoal que se prolonga do inicio da a da máquina, predominante nos séculos XVIII e XIX. Mas
década de 1970 até os dias atuais. Consequentemente, o mantém intacta e reforçada a idéia de que os fenômenos
pensamento marxiano está desenhado neste texto com sociais e psicológicos estão na periferia da realidade e,
formato e cores que podem não ser compartilhadas com portanto, são meras conseqüências epifenomênicas do
outros autores e leitores que vêem a obra de Marx e Engels mundo físico e não exercem sobre ele nenhum efeito causal
de uma perspectiva anti-engelsiana ou excessivamente (Bashkar, 1979, 1986). Se, Marx e Engels tiveram que se
doutrinária. defrontar criticamente com o materialismo mecanicista e
reducionista – ou metafísico como Engels costumava se
Materialismo. A visão de que o mundo era constituído de referir – predominante em sua época, hoje, nos defrontamos
partículas materiais cujas interações podiam ser com um materialismo que está menos preso à imagem do
compreendidas por descrições observacionais ou mecanismo estático e universal, mas que é radicalmente
matemáticas a respeito da sua estrutura e mecanismo reducionista, ainda que o mundo físico ao qual reduz tudo
triunfava nas ciências da natureza entre os séculos XVIII e não se comporte propriamente como uma máquina mas
XIX (Engels, 1976; Prigogine e Stengers,1997). A esta como um conjunto de interações probabilísticas entre
idéia se associava outro argumento igualmente poderoso entidades que são, simultaneamente, ondas e partículas.
sobre a causação dos macro-fenômenos produzidos pelas
interações entre as unidades constitutivas do mundo: tudo o 1. O Materialismo do Marxismo.
que existe, das galáxias aos organismos vivos, das Marx e Engels desenvolveram uma outra
moléculas ao comportamento humano obedecem a abordagem materialista da natureza, da sociedade e do ser
processos mecânicos universais presentes na estrutura humano. Opuseram-se claramente ao materialismo
material subjacentes a estes fenômenos. Assim, mecanicista e reducionista denunciando seu caráter
mecanicismo e reducionismo se uniram numa aliança que metafísico, no sentido de que esta visão de mundo era anti-
dominou por quase três séculos o pensamento mais histórica em seus principais argumentos. Estes não
avançado das ciências, inclusive as humanas correspondiam à realidade das coisas nem às descobertas e
(Vitzthum,1995; Henry,1998; Ronan, 2001). explicações científicas de sua época. Materialismo
Os avanços científicos ocorridos desde então – atrofiado por uma generalização indevida do modelo
sobretudo a descoberta do caráter quântico dos fenômenos mecânico da física a fenômenos químicos e orgânicos.
atômicos e subatômicos, da ordem sistêmica dos fenômenos Nestes, mesmo contendo uma base física – e, portanto,
ecológicos e da essência desenvolvimental dos processos rigorosamente sujeito a suas determinações – já atuam
envolvidos na reprodução, na embriogênese e no outras leis, pertencentes a níveis superiores de existência do
crescimento dos organismos individuais – abalaram mundo (Engels, 1979).
fortemente a imagem da natureza como a de um grande Nesta visão, o mundo apresenta-se organizado em
mecanismo regido por leis universais fixas e imutáveis. Vai níveis ou camadas de diferentes graus de complexidade. Ao
surgindo uma nova percepção do mundo: formado por longo do tempo da história universal da natureza os
estruturas menos rígidas, e por mecanismos causadores da fenômenos puramente físicos vão evoluindo e produzindo
diversidade de suas formas, vistos agora como mais formas mais complexas e organizadas de matéria. Quando
dinâmicos e sujeitos as influências do tempo e do lugar. O surgem os compostos moleculares, emergem propriedades

2
físicas e químicas3 que não são encontradas no âmbito de existência5. Seres humanos são irremediavelmente gerados
existência das partículas subatômicas. Por exemplo: 1) e mantidos vivos por outros seres humanos sem o que não
prótons ou elétrons não possuem cor; ela ocorre apenas sobrevivem ou mantêm sua humanidade. Necessitamos
quando estes são arranjados sob a forma de átomos que produzir e reproduzir a nossa vida material, os instrumentos
absorvem ou emitem uma faixa de freqüência específica de e as formas coletivas de realizar continuamente essa
luz. 2) partículas elementares não possuem fricção porque produção e, o que muitas vezes esquecem alguns marxistas,
as forças entre estas partículas são conservativas, mas em outros seres humanos. Necessitamos cuidar de nossa
estruturas mais complexas como nos fluidos a fricção própria espécie6. Como se trata de uma necessidade cuja
emerge gerando propriedades como a viscosidade4. raiz é biológica, corresponde à essa sociabilidade
Na continuidade da evolução natural da matéria as compulsória a pulsão ou o impulso psiquico em direção ao
moléculas se agregam quimicamente gerando outro ser humano e ao mundo, uma tendencia para
macromoléculas com propriedades novas ausentes nas suas relacionar-se com o universo inteiro, um desejo irrefreável
moléculas constituintes. A emergência de novas qualidades de conhecimento7. Neste sentido, as Sociedades Humanas
continua progredindo até romper o limiar entre o não vivo e são um conjunto de propriedades (cultura, ciência, filosofia,
o vivo. A matéria viva, finalmente constituida, apresenta religião, valores de uso e troca, estado, família,
um conjunto inusitado de particularidades (reprodução, sexualidade, etc) que existem, em primeiro lugar, nas
adaptação, reflexo psíquico, aprendizagem, produção e interações entre organismos humanos individuais e, só
transmissão de informação, etc) que não existem nas depois, neles individualmente. Ainda que todas as criações
moléculas complexas (não-vivas), que constituem os humanas sejam obviamente feitas por individuos elas só
organismos. adquirem o estatuto de realidade humana quando são
No curso da evolução dos seres vivos surge, no compartilhados e, dessa forma, podem ser interiorizadas
reino animal, o reflexo psiquíco, forma primária e criativamente e passarem a fazer parte dos mundos pessoais
simplificada da existência mental. Todos os animais podem, dos individuos. Esta relação dialética entre o seres humanos
então, refletir estímulos do ambiente na forma de sinais que individuais é decisiva para a formação de uma consciência
orientam suas atividades vitais. Alimentar-se e reproduzir- especificamente humana8.
se, por exemplo, que são comportamentos presentes desde A visão de mundo acima exposta dispensa
os poríferos mais primitivos até os cordados mais qualquer concessão ao reducionismo e exige que se coloque
desenvolvidos, dependem de alguma forma de atividade no centro da produção do conhecimento a compreensão da
psíquica (Leontiev, 1996; Maturana e Varela, 1997, 2001). complexidade, da processualidade e da historicidade do
Entre os mamíferos, a vida psíquica vai tornando-se mundo.
crescentemente mais complexa graças aos efeitos causais No materialismo dominante é impossivel
de uma estrutura corporal mais diferenciada, especializada reconhecer a vida como o resultado de um longo
e hierarquicamente integrada num poderoso aparato movimento de transformação e diferenciação que vem do
sensório-motor e a existência social, que cresce em simples para o complexo, do inferior para o superior sem
intensidade à medida que nos aproximamos dos primatas que, nem o simples nem o inferior desapareçam, mas ao
(idem). Ao final desse processo filogenético surgem os contrário, convivam com as formas mais evoluidas –
fenômenos psicológicos conscientes mais avançados que inclusive como parte delas – e se integrem com elas, numa
são característicos dos seres humanos. Nesta visão de totalidade. Essa linha progressiva prevalece através de um
mundo a Consciência é uma propriedade psicossocial da encadeamento causal sujeito a zigue zagues e recuos
matéria, um conjunto de qualidades (pensamento, momentâneos.
linguagem, sensação, percepção, atenção, emoção) que
5
emergem de uma rede de muitos neurônios (células O ser humano nasce incompleto biologicamente. O sistema sensorial e
individuais incapazes de pensar, falar, perceber, etc.) motor do bebê continuam a se desenvolver em aspectos vitais após o
interagindo entre si e com o mundo interno e externo ao nascimento e sob a influência ativa dos estímulos ambientais,
especialmente aqueles de natureza social.
organismo (Tomasello, 2003). 6
Entre todos os mamiferos os seres humanos são os “O terceiro aspecto que intervém diretamente no desenvolvimento
histórico é o fato de os homens, que a cada dia renovam a sua própria vida,
únicos que conseguem, porque necessitam, desenvolver criarem outros homens, reproduzirem-se; é a relação entre o homem e a
uma vida individual radicalmente social. Sua mente e seus mulher, os pais e os filhos, a família”. “Esta família, que é inicialmente a
comportamentos, sua vida subjetiva e sua atividade pratica única relação social, transforma-se numa relação subalterna (...) quando o
se entrelaçam num emaranhando de co-determinações acréscimo das necessidades engendra novas relações sociais e o
crescimento da população dá origem a novas necessidades” (Marx e
orientadas pela profunda dependência que os seres Engels, 1986).
humanos tem uns dos outros para produzirem sua própria 7
“O homem é imediatamente ser natural. Como ser natural, e como
ser natural vivo, está, por um lado, munido de forças naturais, de forças
vitais, é um ser natural ativo; estas forças existem nele como
3 possibilidades e capacidades, como pulsões; por outro lado, enquanto ser
Propriedades combinatórias e transformativas das substancias da
natureza, propriedades relativas aos estados físicos da matéria, natural, corpóreo, sensível, objetivo, ele é, um ser que sofre, dependente e
propriedades classificatórias que identificam os grupos de substancias. limitado, assim como o animal e a planta, isto é, os objetos de suas pulsões
Uma substância é formada por átomos de elementos específicos em existem fora dele. Mas esses objetos são objetos do seu carecimento,
proporções específicas. Cada substância possui um conjunto definido de objetos indispensáveis para a atuação de suas forças” (Marx, 2004).
8
propriedades e uma composição química (Salem, 1995). “ Através da relação com o homem Paulo, na condição de seu
4
Viscosidade descreve a resistência ao escoamento de um fluido ou gás e semelhante, toma o homem Pedro consciência de si mesmo como homem.
resulta da fricção interna que se manifesta quando regiões distintas no Passa então a considerar Paulo – com pêlos, cabelos, em sua materialidade
interior do fluido em movimento se deslocam com velocidades diferentes paulina - a forma em que se manifesta o gênero homem” (Marx, 1984).
(idem)

3
Em cada nível da realidade, componentes básicos físicos e químicos da realidade ficam mais por conta de
interagem formando objetos, agregados de objetos, sistemas critérios epistemológicos.
de agregados de objetos e seus respectivos processos de O mesmo tipo de relação não ocorre entre os
mudança. As transformações resultam muitas vezes em fenômenos sociais e psicológicos. Não é possível reduzir o
variações ou diferenciações quantitativas nas propriedades psicológico ao social e vice-versa, e nem explicar as
já existentes, mas também podem produzir novas propriedades dos fenômenos sociais ou psicológicos como
qualidades; algumas dessas novas qualidades fazem surgir emergências de qualquer um deles a partir do outro. São
novos objetos ou sistemas em outro nível da realidade. A níveis paralelos, pois, desde sua origem, co-existem no
figura 1 expressa esse ponto de vista. tempo e emergiram do nível biológico quando este
alcançou certo grau de diferenciação e complexidade. Num
determinado momento da história natural da vida, alguns
Nível Social ou Psicológico animais passaram a desenvolver uma dependência ativa
entre os membros da mesma espécie e, paralelamente, se
tornavam sensorialmente mais habilidosos para lidar com o
ambiente natural e com os desafios oriundos da nova
Nível Biológico sociabilidade. Nos mamíferos, finalmente, estas duas
vertentes evolutivas se cruzam e passam a sofrer
Objetos e determinações mútuas. A maioria dos fenômenos sociais
Propriedades
agora pode ser interiorizada psicologicamente e os
Nível Físico-Químico fenômenos psicológicos podem se expressar socialmente
através do comportamento e da linguagem. (Tomasello,
2003; Rogoff, 2005)
Figura 1(adaptada de João Bosco, 2007): Visão de mundo
Um caso exemplar para entendermos tanto a
materialista do marxismo: os diferentes níveis da realidade estão superveniência quanto o paralelismo entre os níveis da
integrados mas não se reduzem nem se confundem entre si. realidade é o Ser Humano. A expressão “o Homem é um ser
biopsicossocial” procura dar conta da complexidade do
Desta forma, dentro de um mesmo nível, as humano. Mas está descrição, ainda que acertada, é
interações entre seus componentes resultam em insuficiente. É necessário incluir a dimensão físico-química
transformações e diferenciações quantitativas e qualitativas e explicitar pelo menos alguns dos graus de complexidade
que podem expressar a emergência de novas propriedades. da dimensão biológica além do paralelismo entre os níveis
Estas propriedades emergentes podem ser tão diferentes psicológico e social. A Figura 2 representa a complexa
que já não se expressam mais nos termos do nível no qual unidade do ser humano.
se iniciou o processo de criação. Quando isso acontece
estamos diante de fenômenos de uma ordem superior ao Nível Psicológico: propriedades mentais
nível anterior, pois, além de possuírem as características individuais e coletivas
básicas que caracterizam o 1º nível, as novas entidades do Nível Social: propriedades
nível 2 são dotadas de propriedades supervenientes não- comportamentais de indivíduos,
redutíveis às qualidades subjacentes de cuja interação elas
emergiram. Por exemplo: a viscosidade é uma qualidade Subnível Neural: propriedades das
Nível redes neurais
presente em agregados moleculares e ausente em átomos Biológico Subnível Celular: propriedades
isolados, mas é redutível a uma descrição em termos do dos neurônios
transporte microscópio de certa quantidade de movimento
por difusão molecular; entretanto, a visão de uma águia,
apesar de contar com uma grande quantidade de processos Dimensões Química e
Nível Físico-
Molecular: propriedades das
físicos e químicos atuando não pode ser reduzida a eles pois Químico
proteínas, neurotransmissores e
envolvem um conjunto de fenômenos supervenientes de suas interações.
ordem biológica e psicológica tanto para a sua efetivação
concreta quanto para a sua descrição e explicação.
Na figura 1 vemos que objetos do nível físico- Figura 2. A unidade do ser humano representada pela integração
químico ou biológico podem se agrupar de diferentes de níveis e alguns subníveis9.
formas gerando novos objetos e propriedades no mesmo
nível ou num nível superior. Essa multiplicidade de
possibilidades produz resultados mais ou menos próximos 9
da sua origem. Os níveis físicos e químicos são muito Os subníveis que podem ser relacionados são bem mais numerosos. O
nível biológico comporta pelo menos as dimensões orgânicas mais gerais –
próximos entre si, ou seja, são ontologicamente sistema nervoso, sistema motor, sistema digestivo e respiratório, etc – e
equivalentes. Historicamente, a realidade primordial que se suas respectivas articulações, além da totalidade do próprio organismo. O
segue imediatamente ao bigbang já pode ser descrita em nível psicológico pode ser dividido de diferentes maneiras a depender do
termos físicos – por meio de grandezas como radiação, critério de classificação – inconsciente e consciente; cognitivo, afetivo e
comportamental; atenção, memória, percepção, etc. O nível social também
tempo, espaço e matéria – e das interações químicas que admite pelo menos as seguintes divisões: familiar, comunal e societal.
formaram os primeiros elementos (H, He, Be e traços de Foge ao escopo deste trabalho descrever e explicar essas múltiplas
Li). Portanto, as diferenças existentes entre os aspectos articulações. A intenção fundamental é explicitar uma visão de mundo na
qual a realidade material se expressa em níveis hierarquicamente
articulados e, em grande parte, irredutíveis uns aos outros.

4
No Homem, a Consciência – conceito que designa sentimentos compartilhados em relações face a face) e as
o conjunto dos fenômenos psicológicos superiores como o representações sociais são alienadas ou emancipadas. Estes
pensamento abstrato e simbólico, a linguagem e as emoções diferentes tipos de consciência, por sua vez, podem ser
especificamente humanas – é socialmente determinada10. conscientes ou inconscientes a depender do grau de
Da mesma forma, a sociabilidade humana, dominio ou explicitação que as pessoas tem sobre si mesmo
particularmente o trabalho, é psicologicamente construída. e seu entorno social. Por outro lado, os estados mentais
A co-determinação entre o mental e o social não elimina as conscientes e inconscientes influenciam poderosamente as
diferenças ontológicas e epistemológicas entre eles. Cada varias dimensões mentais e suas propriedades. A realidade
um tem sobre o outro efeitos causais que podem ser social determina a realidade mental (a linguagem, o
claramente discriminados e explicados cientificamente pensamento, a memória) através de todos estes processos
(Wallon, 1979; Vigotsky, 1991, 1993; Vigotsky e Luria, de mediação. Inversamente, a base social se expressa numa
1996; Valsiner e van der Veer, 2000). forma psicológica (consciência alienada ou emancipada).
A sociabilidade e a consciência são os níveis Essa conversibilidade é uma das propriedades do
superiores da realidade do Universo11 e formam uma paralelismo entre a existência social e a realidade mental.
complexa estrutura que se diferencia e se transforma ao As formas alienadas ou emancipadas de consciência são a
longo do tempo. A Figura 3 mostra os diversos aspectos do porta de entrada por onde o mundo social vai determinar o
Nível Psicológico e como eles se articulam. mundo psíquico acionando uma série hierarquicamente
articulada de processos propriamente psicológicos.
Seres humanos, com sua complexa e dinâmica
estrutura psicológica, transformam a natureza e criam uma
Mente intricada vida social que determina sua existência cognitiva
Linguagem, Pensamento, Memória, etc e afetiva e cria as condições e os meios com os quais
modificam o mundo e a si mesmo12.

Dimensões Cognitiva Afetiva Motora


Ser Humano

Biológico Psicológico

Estados Conscient Inconsciente


e

Tipos Subjetiva Intersubjetiva Pública Social

Natureza

Condição Alienada Emancipada

Figura 3. Uma visão ampla da Consciência (ou Mente) Humana Figura 4. As relações sociais fazem a mediação entre as
segundo a Psicologia. interações metabólicas do Homem com a Natureza.

Dotado de capacidades biológicas e psicológicas


Na base da estrutura do nível psicológico as
socialmente construídas os homens produzem a si mesmos
relações sociais determinam se a subjetividade (crenças e
através da mediação das relações que estabelecem com
sentimentos pessoais), a intersubjetividade (crenças e
outros seres humanos. Como Marx e Engels acentuaram, o
10 trabalho é a relação social que mais concentra esse poder
“Desde sempre pesa sobre o «espírito» a maldição de estar «imbuído»
de uma matéria que aqui se manifesta sob a forma de camadas de ar em
criativo, pois ao transformar o mundo sensível, o mundo
movimento, de sons, numa palavra, sob a forma da linguagem. A objetivamente dado aos sentidos, transformam seus corpos,
linguagem é tão velha como a consciência: é a consciência real, prática, suas mentes e sua existência social. Por outro lado, a
que existe também para outros homens e que, portanto existe igualmente realidade social construída pelo animal humano consciente,
só para mim e, tal como a consciência, só surge com a necessidade, com a
exigência dos contatos com os outros homens”. ou o nível social da realidade como aqui esta se
“A consciência é, pois um produto social e continuará a sê-lo enquanto denominando, também é uma estrutra complexa que se
houver homens. A consciência é antes de tudo, a consciência do meio diferencia e se transforma ao longo do tempo.
sensível imediato e de uma relação limitada com outras pessoas e outras
Na tradição marxista tem-se usado muito dois
coisas situadas fora do indivíduo que toma consciência; é simultaneamente
a consciência da natureza e consciência da necessidade de entabular conceitos para designar as totalidades sociais: modo de
relações com os indivíduos que o cercam, consciência de que vive produção e formação econômico-social. Para entendermos
efetivamente em sociedade” (Marx e Engels, 1986) .
11
A mente humana é a propriedade suprema da matéria, expressa a 12
“O desenvolvimento da sociedade difere substancialmente, num ponto,
capacidade da matéria pensar sobre e conhecer a si mesmo. Por outro lado, do desenvolvimento da natureza”. “... Na história da sociedade, os agentes
a sociabilidade humana é o desenvolvimento supremo de uma são todos homens dotados de consciência, que atuam sob o impulso da
propriedade comum a todos os seres vivos e, portanto materiais, reflexão ou da paixão, buscando determinados fins”. (...) “Entretanto, se o
qual seja: a de reagir a estímulos do ambiente. O neurônio é a os objetivos visados pelos atos são produto da vontade, não o são os
forma viva mais simples especializada nesta função (Leontiev, já citado). resultados que decorrem deles” (Engels, 1979).

5
a complexidade dos fenômenos humanos, cuja natureza, Aqui Marx acentua que as condições naturais
como aqui demonstrada, é fortemente determinada pela envolvem mais do que o homem e suas competências e
interação entre as dimensões biológica, psicológica e social habilidades físicas em relação com a natureza, o produtor é
nenhum dos dois é suficiente. Em Marx, a produção pode um ser social em cooperação e competição com outros
ser concebida de duas formas conexas. Numa forma mais seres humanos. Mais na frente, ao se referir a atitude do
restrita a produção se refere ao ato produtivo em si mesmo, produtor frente a terra fonte de toda a riqueza produzida
à operação e concretização do trabalho em unidades pelo trabalho, Marx afirma que o individuo é mais do que
produtivas e em mercadorias. Num sentido mais amplo se ...
refere a todo o processo de produção, incluindo aí a
distribuição, a troca e o consumo; neste caso a Produção “a abstração do "indivíduo que trabalha", tendo um
envolve todo o processo social que se concretiza na modo objetivo de existência (...) que antecede sua
produção de consumidores e seus atos/hábitos de consumo. atividade e não surge como simples conseqüência dela,
A Produção produz além de bens suas próprias condições sendo tanto uma pré-condição de sua atividade, como é
de continuidade no tempo e no espaço (Marx, 1998). É essa sua própria pele, como são os seus órgãos sensoriais(...).
capacidade de auto-organização que leva muitos autores a Ou seja a existência – como membro de uma
comunidade... (Marx, 1998).
incluírem no conceito de modo de produção as variáveis
relativas aos elementos chamados superestruturais. Já o
conceito de formação econômico-social apesar de abarcar Ao longo do Capital Marx ora usará o conceito de
todos os processos sociais não lida de forma explícita com modo de vida para se referir as condições materiais da
as dimensões biológicas e psicológicas presentes no produção, ora para se referir àquela parte da vida que está
fenômeno humano. fora da produção, mas que é por ela influenciada
Proponho, então, recuperar e desenvolver uma constituindo uma espécie de estilo de vida:
outra estrutura categórica e conceitual para dar conta da
complexidade do nível social da realidade em torno da idéia “ Passando o trabalhador a maior parte do tempo da vida
no processo de produção, as condições desse processo
de modo de vida.
constituem em grande parte aquelas em que se
Originalmente, a noção de "modo de vida", desenvolvem suas atividades e as condições de sua
encontra-se claramente explicitada nos escritos de Lewis vida,” (Marx, 1984)
Morgan (1977), um dos precursores da antropologia no
século passado, cuja obra inspirou Engels Origens da
família, da propriedade privada e do Estado (Engels, 1972) O conceito de modo de vida chegou a ser
e Marx em diversos momentos de sua obra máxima O empregado no contexto da Antropologia Soviética:
capital (Marx, 1984). A expressão "modo de vida" foi
empregada por Marx e Engels como conceito que destaca a “El modo de vida es la esfera del consumo individual de
natureza não somente material e física da reprodução bienes materiales y espirituales, es la esfera de la vida
cotidiana fuera del tiempo de trabajo. (...) es una parte
social. Em A ideologia alemã (Marx & Engels, 1977 –
especial de la vida social, vista la necesidad que tiene
grifos dos autores), apresenta este conceito da seguinte cada persona de reponer sus fuerzas gastadas en el
forma: proceso de la actividad laboral”. (Kelle & Kovalzon
,1975).
“O modo pelo qual os homens produzem seus meios de
vida depende, antes de tudo, da natureza dos meios que
Curiosamente este conceito foi abandonado pela
eles encontram e têm de reproduzir. Este modo de
produção não deve ser considerado, simplesmente, como economia e sociologia marxista contemporâneas, mas
a reprodução da existência física dos indivíduos. Trata- encontrou um campo fértil entre os estudiosos marxistas no
se, antes, de uma forma definida de atividade destes campo da saúde. Atualmente, nos estudos sobre modo de
indivíduos, uma forma definida de expressarem suas vida, destacam-se grupos de especialistas ligados ao CIPS -
vidas, um modo de vida determinado. Assim como os Centro de Investigación Psicológica e Social de Havana, ao
indivíduos expressam suas vidas, assim eles são”. INIE - Instituto de Investigação Econômica de Cuba e à
Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociais de Cuba
Marx e Engels estão chamamando a atenção para o além de outros pesquisadores latino-americanos. Entre os
fato de que o modo de produção é uma forma de expressar estudiosos cubanos prevalece uma compreensão sobre
algo mais amplo, um determinado modo de vida. Nos modo de vida centrada na expressão das motivações
Grundrisse (Marx, 1998), encontramos um aprofundamento essenciais do ser humano no interior de um sistema de
deste conceito: atividades concretas e nos fatores sociais que induzem e
possibilitam estas atividades (Sampedro, 1984; Rutevick,
“Essas condições naturais de existência, com as quais 1989; Rey, 2004).
ele [o produtor] se relaciona mesmo como com um
corpo inorgânico, têm caráter duplo: elas são (i) Entre outros pesquisadores latino-americanos o
subjetivas e (ii) objetivas. O produtor existe como conceito foi desenvolvido de forma mais abrangente e mais
membro de uma família, de uma tribo, um agrupamento
de sua gente, etc. – o que adquire historicamente formas
enraizada nas idéias clássicas e embrionárias de Marx e
diversas resultantes da mistura e conflitos com outros Engels sobre a questão. Neste sentido destacam-se como
(Marx, 1998 – grifos do autor). componentes do modo de vida, além das condições
materiais da existência, os estilos de vida delas derivados
(Menendez, 1990 e 1995; Possas, 1989). Só posteriormente

6
foram incluídas como dimensão do modo de vida as materiais – incorporação crescente das mulheres no
respectivas idéias e representações simbólicas que, mercado de trabalho – não ocorrerem consequentemente
refletindo as condições e o estilo de vida, concretizam um mudanças nas atividades concretas que as mulheres
desenho mais real da “pele” e dos “órgãos” que esta realizam. Se a incorporação ao mercado se der em
dimensão da existência representa dentro de um “profissões femininas”, com salários e prestigio desiguais
determinado modo de produção. aos dos homens, ocorrerão mudanças das rotinas, hábitos e
Proponho, então que se defina o modo de vida tradição na vida das mulheres, mas ainda persistirá um
como o conjunto das condições socioeconômicas, leque enorme de atividades tradicionais e,
ambientais e corporais (condições materiais de vida), consequentemente, dubiedades e paradoxos nos
hábitos, rotinas e tradições presentes no sistema de comportamentos, valores e idéias que dão fôlego e
atividades que compõem o cotidiano das pessoas, grupos e longevidade aos modos patriarcais de exercício do poder
classes sociais (estilo de vida) e as visões de mundo, social.
teorias, conceitos, princípios e valores (concepção de vida)
que descrevem, explicam e prescrevem suas ações. O conceito de modo de vida nos permite ver com
Mulheres e homens vivem sua existência sempre clareza o processo de mudança social mais amplo e dentro
de um modo determinado. Este modo decidirá como suas dele em que pontos e dimensões ocorrem modificações,
características biopsicossociais se desenvolverão ao longo qual o peso dessas mudanças, e qual a sua natureza e
do tempo de suas vidas pessoais, no interior de um alcance estratégicos. E mais ainda, possibilita adotar
determinado grupo ou classe que compõe um certo tipo de conscientemente diferentes e múltiplas frentes de lutas pela
sociedade. Um modo de vida é determinado, em primeiro emancipação e relacioná-las com coerência. Sabemos que
lugar, pelas condições materiais da vida entre as quais se não adianta mudar as condições de vida se não alterar-se
incluem a posição de classe, o tipo de profissão, o sexo, a concomitantemente as atividades que materializam um
idade, as características físicas do lugar onde mora e determinado estilo que aquelas condições idealmente
trabalha, a saúde e a doença, etc. Os Homens são diferentes exigem. Uma das lutas feministas mais importantes na
um dos outros, no tempo e no espaço, de acordo com as atualidade é fazer corresponder às transformações em
condições materiais de sua existência. Estas diferenças não algumas das suas condições materiais de existência um
existem só entre classes opostas mas também no interior conjunto igualmente inovador de rotinas e hábitos. Aqui,
das mesmas classes e grupos sociais, das mesmas famílias e trava-se uma luta secular para que os homens aceitem e
profissões e estas diferenças podem estar relacionadas a participem de “atividades femininas”, e para que atividades
fatores ecológicos, ao tipo de do meio ambiente em que consideradas essencialmente femininas, como a
elas vivem e com os quais se relacionam. maternidade, por exemplo, sejam assumidas socialmente.
Um modo de produção pode mudar por inteiro e
Na dependência direta destas condições está o continuarem a existir entraves patriarcais à emancipação
conjunto de atividades que os seres humanos realizam no das mulheres e dos homens por conta de que prevalece um
seu cotidiano e que materializam as posições que ocupam estilo de vida antigo, isto é, um conjunto de atividades
no interior das classes e dos grupos sociais e dos lugares cotidianas socialmente designadas para as mulheres que
que habitam e trabalham. Estas atividades se concretizam lhes subtrai poder em relação aos homens ou a mulheres
por meio das rotinas e procedimentos que os caracterizam e das classes sociais dominantes.
dos hábitos e tradições que eles geram e representam.
Hábitos, rotinas e tradições compõem um determinado Sabemos por experiência própria que em muitas
estilo de viver. Por exemplo: as mulheres possuem um situações as idéias são as últimas coisas a mudarem. O
estilo de vida diferente dos homens por essa razão e pelo modelo teórico do modo de vida permite que tenhamos
mesmo motivo se diferenciam e se assemelham uma às plena consciência deste fenômeno e que associemos à luta
outras. Mulheres de épocas diferentes, e de classes sociais pela mudança das condições e estilo de vida a
distintas, tem estilos de vida tão distantes uns dos outros transformação das idéias. Idéias não se consolidam
quanto mais forem diferenciadas suas condições de vida. socialmente, não se convertem numa força social
transformadora se elas não se expressam como
Associado intrinsicamente a um determinado estilo representações de uma vida realmente vivida, se elas não se
de vida surgem princípios, valores, conceitos e teorias que organizam em ações concretas e persistentes, se elas não
articulam visões de mundo e sociedade dentro de alguma cordenam novas rotinas e novos hábitos, se elas, enfim, não
concepção de vida socialmente compartilhada. Os seres fazem parte da construção de uma nova tradição. Para
humanos irão, então, compartilhar visões de mundo que se mudar ampla e profundamente as idéias de homens e
separam e se unem a depender do estilo de vida que adotam mulheres a respeito da dominação e alienação presentes no
ou que assumem compulsoriamente. Tais concepções são patriarcado ainda dominante, por exemplo, é fundamental
necessárias para produzirem sentido pessoal e social para as envolvê-los na construção de atividades transformadoras,
condições e o estilo com o qual se vive. As condições que alterem e alterne os papéis sociais de gênero
materiais e econômicas determinarão os limites e as tradicionais.
possibilidades da consciência, por intermédio de um estilo
de vida característico, e pelos tipos de atividades cotidianas A Figura 5 descreve o modo de vida nas condições
nas quais as pessoas participam. Por exemplo: modelos de históricas concretas do capitalismo onde prevalecem as
socialização patriarcais não podem ser alterados formas alienadas de consciência pessoal e social.
radicalmente se, mesmo ocorrendo mudanças nas condições

7
totalmente compreendidos e representados adequadamente.
Disso decorre que: a) O conhecimento é necessariamente
limitado, representa apenas parte do mundo. b) O
conhecimento é distinto do mundo, é um esforço de
do Trabalho ao
do outro e da Capital de si mesmo e da entendimento com o nosso corpo externo13. c) O
natureza natureza conhecimento é parte do mundo e forma, com os
fenômenos objetivos, aquilo que chamamos de realidade. A
Realidade é um conceito filosófico que expressa a unidade
ALIENAÇÃO entre matéria e consciência 14.

2. A Dialética no Marxismo – visão de mundo e


método
MODO DE
VIDA
O par complementar da visão de mundo de Marx é
Condições de Estilo de
Vida Vida a Dialética. Não há neste capítulo espaço para descrever os
Econômicas Hábitos diferentes conteúdos que essa filosofia apresentou ao longo
Sociais Rotinas da história do pensamento humano. Na versão marxiana,
Ambientais Concepção de herdeira da filosofia de Hegel, a dialética descreve as
Vida
formas, os mecanismos e a direção geral do movimento da
Idéias Valores
consciência e também da matéria, portanto, da realidade
Figura 5. O nível social da realidade descrito pelas interações como um todo. A dupla pertinência matéria-
entre o modo de vida e a forma dominante da consciência no pensamento implica que o materialismo, na sua forma
capitalismo. dialética, diz respeito a uma ontologia que se desdobra
em epistemologia. Os princípios tem validade idêntica
nos dois domínios da filosofia.
Em síntese, a visão de mundo do materialismo em
Por exemplo. A dialética marxista situa a
Marx (e Engels), pode ser apresentada através de duas teses
consciência na história da Natureza, como uma entidade
ontológicas e uma epistemológica:
suprema, cujas propriedades não se confundem com as
Teses Ontológicas: 1) A natureza é primaria e o
propriedades físicas ou biológicas da mesma matéria. Como
espírito é derivado. A matéria é anterior à consciência. A
qualidade derivada, a consciência reflete, conhece e age
consciência surge ao longo da história da Natureza. Estes
sobre o mundo do qual se originou, modificando-o.
argumentos não implicam em nenhum conceito positivo de
Logicamente, compondo uma só totalidade, matéria e
matéria ou de consciência. Este será o terreno da ciência.
consciência podem se comportar segundo leis e princípios
Derivado dessa concepção geral Marx propõe uma
comuns. O mais geral destes princípios estabelece que a
ontologia materialista para o Ser Humano: 2) O Homem é
unidade matéria-consciência existe em movimento eterno.
um ser natural que tem a natureza e a si mesmo como
A unidade e a mutabilidade são características absolutas da
objetos; o Homem é um ser social que tem o outro e a si
realidade. Sendo assim, este princípio vale tanto para a
mesmo como seus objetos de realização.
definição sobre a essência do fenômeno – quais são suas
Em relação à natureza e aos outros homens, o
propriedades relevantes - quanto para a escolha de como
Homem (genérico) se exterioriza, e concretiza enquanto ser
eles devem ser estudados e explicados – em sua dinâmica e
vivente, por meio do trabalho e da linguagem
concatenação com outros fenômenos.
respectivamente. Não há prioridade ontológica, nem
As interações mais gerais entre estes dois termos
epistemológica para qualquer um dos dois termos (natural
já foram apresentadas. Cabe agora explicitar formas
ou social), pois, os seres humanos são naturalmente sociais
universais que regem, igualmente, o movimento da matéria
(a sociabilidade é uma conquista evolutiva de muitas
e da consciência.
espécies vivas) e socialmente natureza, já que o
Formas Gerais do Movimento. O mundo está
desenvolvimento biológico humano ocorre sob a influência
sempre mudando seja por diferenciação, variação ou
da cultura, inclusive na escala de tempo filogenética.
transformação. Uma determinada totalidade se transforma
Tese Epistemológica: O conhecimento humano
quando cada objeto individual que compõe esta totalidade
pode representar verdadeiramente objetos realmente
existentes, mas nem pode capturá-los completamente e nem
13
se pode definir, diante mão, o que não é acessível ao “Mas o homem é um ser existente para si mesmo, que toma a si mesmo
conhecimento. Só é possível conhecer aquilo que se tornou como objeto. Consequentemente, nem os objetos humanos são os objetos
objeto para o pensamento. Sendo objeto para o pensamento, naturais assim como estes se oferecem imediatamente, nem os sentidos
humanos, tal como são imediata e objetivamente, são sensibilidade
a prática (a ciência, a tecnologia, enfim a indústria), prova a humana, objetividade humana. A natureza não está, nem subjetiva nem
veracidade ou a falsidade da realidade pensada. objetivamente, imediatamente disponível para o ser humano de modo
O homem e suas propriedades intelectuais são adequado” (Marx, 2004).
partes da natureza e surge num determinado momento da 14
história universal. Todo o conhecimento produzido por ele “O homem está perante uma rede de fenômenos da Natureza (....) os
conceitos são degraus da separação do Homem em relação à Natureza, isto
ou por qualquer outro ser consciente tem, antes e depois de é, do conhecimento do mundo, pontos de junção na rede que ajudam a
si, uma infinidade de fenômenos impossíveis de serem conhecê-la e a apreendê-la” (Lênin, 1979)

8
sofre, durante o seu tempo de existência, os efeitos de uma capital financeiro imperialista. Já os processos de reforma
mesma história geral, cujo resultado é a criação de uma comportam diferenciações não-transformativas ou
outra entidade ou objeto. São transformações os processos insuficientemente transformativas, ainda que, em um
que geram uma planta a partir de uma semente, que grande numero de casos, sejam necessárias ao processo
geraram o capitalismo a partir do feudalismo ou do revolucionário, em suas fases de transição.
escravismo, que criaram o pensamento simbólico a partir Como se vê também a descrição das formas de
dos reflexos psíquicos primitivos, que criaram os planetas e movimento tem finalidade ontológica e utilidade
a vida a partir da radiação original. Uma totalidade também epistemológica.
esta sujeita a processos de diferenciação que podem ou não Os processos de diferenciação, variação,
resultar em transformações. Uma entidade da realidade se transformação, hierarquização e complexificação podem
diferencia quando uma seqüência de alterações em cadeia resultar dos seguintes mecanismos:
ocorre no interior de um objeto. É o caso da semente, citado Quantidades se transformam em qualidades e
acima, ou do óvulo e sua seqüência embrião, feto, bebê, em vice-versa. Quantidades são unidades de qualidades
que a diferenciação é um caso especial de transformação. descritas matematicamente. Qualidades são propriedades de
Também ocorre diferenciação quando uma língua, o latim, elementos ou sistemas, portanto, quantidades são medidas
por exemplo, dá origem a diversas outras próximas entre si, matemáticas das propriedades de um sistema (tomadas
como o português, o francês e o espanhol. Nestes casos não isoladamente dentro da tradição reducionista, ou
se pode falar de transformação, pois as propriedades das computadas globalmente dentro da tradição dialética15).
novas línguas são bastante próximas entre si e não diferem Temos, portanto, medidas reducionistas das qualidades e
muito da língua materna. Línguas, quaisquer que sejam, medidas complexas das qualidades. Dizer que quantidades
possuem basicamente as propriedades de representação e se transformam em qualidades é equivalente a afirmar que:
comunicação e se estruturam segundo regras sintáticas ea) Pelo mínimo, a interpenetração entre elementos da mesma
semânticas das quais são historicamente dependentes. classe, tipo ou espécie gera propriedades novas bastando
Mudanças por variação acontecem por causa de uma para isso que se acrescente na interação certa quantidade de
alteração na representação proporcional das diferentes novos elementos com as mesmas propriedades. É afirmar
variantes que constituem uma determinada totalidade. As também que existe alguma forma de realizar o calculo do
espécies biológicas muitas vezes se modificam – desde que mínimo de quantidades da mesma qualidade necessárias
tenham ocorrido transformações genéticas relevantes em para que ocorra uma variação ou transformação.
seu interior – devido a seleção natural eliminar certosb) Pelo máximo, a agregação de elementos e/ou propriedades
indivíduos e favorecer outros; com o passar do tempo a diferentes das já existentes gera elementos novos com
composição global dos indivíduos vai mudando em uma novas propriedades e formas de agregação mais ou menos
certa direção em detrimento de outra. A diversidade de hierarquizadas e mais ou menos complexificadas do que as
formações econômico-sociais capitalistas existentes no anteriores. É afirmar também que existe ou que é necessário
passado sofreu uma redução drástica em direção a formas existir algum meio para calcular o valor mínimo de
mais assemelhadas devido a pressão exercida sobre elas elementos ou propriedades novas que é necessário agregar
pelo capital financeiro e atualmente pelos processos ou retirar para que o sistema se diferencie ou se transforme.
econômicos e culturais de intensificação da globalização.
Da mesma forma que a diferenciação pode ser uma forma Interpenetração dos Contrários. As unidades que
necessária de dar curso às transformações, sem que elas constituem um objeto, evento, processo ou sistema não tem,
ocorram não pode haver variação. Mas enquanto as no interior desses fenômenos, uma existência isolada e
diferenças se devem principalmente à ação de fatores autônoma cuja relação, necessária para garantir a existência
endógenos, a variação exige a atuação de forças externas do fenômeno, seria dada apenas pelas funções que cada
aos objetos que estão se modificando. uma das partes exerce, de acordo com suas qualidades, na
As inúmeras descrições sobre os processos de manutenção do objeto, evento, etc. Além das relações
mudança ocorridos em fenômenos físicos, químicos e funcionais, as partes constituintes se modificam, perdendo
biológicos apresentadas por Engels em Dialética da ou adquirindo propriedades, graças às interações entre elas.
Natureza mostram como se alternam e se sucedem Estas interações ocorrem com a mediação das propriedades
processos de transformação de diferenciação e variação. Ao globais do sistema ao qual as partes pertencem. Está claro
longo do tempo transformações, diferenciações e variações que a formulação par dialético não é adequada para
geram novos objetos ou fenômenos, que se articulam descrever a interação de oposição e complementaridade
hierarquicamente em novas estruturas e sistemas dialética existentes entre as partes de qualquer unidade,
crescentemente mais complexos. Complexificação e pela simples razão de que essa interação é geradora de
Hierarquização identificam a formação de ordem qualidades novas inexistentes em cada uma das partes
(estruturas, funções, mecanismos dinamicamente estáveis) individualmente. Essas propriedades instituem um terceiro
no interior de qualquer sistema e na agregação ou separação ente – a totalidade resultante – que interfere fortemente na
entre eles. A natureza, assim como a humanidade, é interação fornecendo as condições e os meios para a
história, é gênese e desenvolvimento (Engels, 1975, 1976). interpenetração entre os pares e para a sua própria
Na ciência política marxista compreende-se a produção. Nas mãos de Marx, essa lei dialética, define a
revolução como um processo de transformação iniciado por
movimentos de diferenciação interna em formações
15
econômico-sociais concretas, cujas particularidades são A perspectiva dialética ganha enorme impulso na atualidade no recente
variações, em um mesmo sistema, condicionadas pelo campo de estudo dos sistemas dinâmicos complexos (Lewin, 1994; Casti,
1998; Johnson, 2003).

9
possibilidade mesma de objetividade e, portanto, de
existência para o pensamento, de qualquer ente. O reconhecimento desse aspecto da realidade implica em
A Figura 6 mostra as duas possibilidades lógicas que a unidade mínima de descrição de qualquer entidade
de relação entre entes objetivos sejam eles pares opostos- objetivamente pensada – um objeto, evento ou fenômeno
complementares constituintes de um terceiro ou material ou mental – é uma tríade dialeticamente articulada
simplesmente enteidades que estabelecem relações de e não uma díade.
diferença constituidoras de suas objetividades. No primeiro
caso têm-se todas as entidades que compõem um sistema Negação da Negação. Este mecanismo geral de
qualquer em qualquer um dos níveis da realidade, por mudança indica a direção do movimento e tem validade
exemplo: valor de uso e valor de troca são opostos- para fenômenos que:
complementares da entidade mercadoria, cujasa) Reproduzam a si mesmos. Fenômenos deste tipo são todos
propriedades determinam como os valores se interpenetram os seres vivos, os agregados moleculares auto-catalíticos, e
na criação da própria mercadoria. As relações entre outros sistemas estudados na categoria dos fenômenos auto-
operário e burguês, que constituem o sistema capitalista são organizados (como a economia, os aglomerados urbanos, o
mediadas pela reprodução do capital, propriedade global comportamento coletivo das formigas, etc).
resultante contínua exploração do burguês sobre o operário.b) Acontecem numa seqüência temporal irreversível. Seres
Nessa relação, operários e burgueses se modificam vivos reproduzem outros seres vivos a partir de células
enquanto classes (e não apenas enquanto indivíduos) que especializadas numa seqüência unidirecional. Entretanto,
cooperam e competem pela manutenção e modificação do enquanto existem, os seres vivos produzem e reproduzem
sistema. sua própria existência, isto é, reproduzem cópias
No segundo caso estão as entidades que não ligeiramente diferentes de si mesmo. Essa forma de negar a
compõem um mesmo sistema ou entidade, mas fazem parte negação ocorre numa seqüência temporal irreversível, mas
de uma mesma classe de sistemas, por exemplo: homens e circular, pois a criatura é o próprio criador e vice-versa.
macacos são mamíferos, não são opostos complementares, Não se deve confundir negação da negação com a
mas as relações de diferença entre eles definem a tríade tese-antítese-síntese. Na maioria dos fenômenos
objetividade de cada um deles em relação ao outro. A estritamente físicos a síntese indica as propriedades globais
relação homens-macacos define o que são cada um em de um sistema que estão mediando a relação entre os
relação ao outro e o que ambos são em relação aos diferentes elementos que o compõem. Estes elementos e
mamíferos, classe a qual pertencem. suas diferenças podem ser agrupados numa classe de
“Um ente que não tenha nenhum objeto fora de si não é um opostos (tese-antítese). Tais opostos interpenetram-se por
ente objetivo. Um ente que não seja ele mesmo objeto para meio de uma ou mais das propriedades gerais do sistema
um terceiro não se comporta objetivamente, seu ser não é (síntese). Nestes casos nenhuma novidade está sendo criada
objetivo” (Marx, 2004). e a negação da negação se converte num tipo comum da
segunda lei, a espera de uma síntese que transforme o
“O Outro (o oposto) contém em si a determinação do sistema em outro.
primeiro que é, assim, conservado e mantido também no A proposição de que existem mecanismos
Outro. Reter o positivo em seu negativo é o mais universais ou leis universais da dinâmica dos processos da
importante no conhecer racional”. Lenin , 1989) realidade coloca o problema do controle da mudança. Nas
máquinas supõe-se controlar totalmente o processo de
mudanças pelas quais elas podem passar. Desde a fundação
da cibernética que se tem plena consciência de que existem
máquinas que se auto-controlam, ou seja, é possível
C C construir mecanismos automáticos que funcionem com
relativa autonomia diante dos seus criadores. Engels, já
tinha identificado esse tipo de processo nas relações sociais
particulares e na própria construção mais geral da
sociedade, realizada, até então, “sem nenhum plano de
A B A B
conjunto”. A ordem e os padrões observados na história
resultam do efeito organizador e dirigente que as relações
econômicas exercem sobre as outras formas de interação
social.
Relação triádica entre entes não Relação triádica entre entes O papel do fator econômico na história humana
complementares: A é objetivo complementares: A é objeto de B e B põe em destaque duas questões fundamentais: o problema
por que B é seu objeto e A é é objeto de A se e somente se A e B
objeto de C. mais geral da causação na visão de mundo do marxismo
forem simultaneamente objeto de C.
original e como se pode conceber a proposição de que os
fenômenos humanos são determinados em última instância
pelo modo como produzem sua existência material e
Figura 6. Interpenetração de contrários opostos-complementares espiritual.
de uma mesma unidade e de opostos não-complementares de uma As relações econômicas influenciam
mesma classe de unidades diferentes. generalizadamente todas as outras relações sociais e a
dimensão biológica – pessoal, através da alimentação, por
exemplo; e coletiva, por meio do impacto que exerce sobre

10
o ambiente ecológico – e psicológica – determinando a outros fenômenos (igualmente complexos, isto é,
condição social mais geral dos processos psicológicos – multicausados e mediados por outros fenômenos). Além
alienados ou emancipados. Por outro lado, cada dimensão disso, Marx e Engels substituem o modelo da causação
da realidade derivada, no curso da história humana, dos direta ou mesmo binário, pela demonstração de que o
processos econômicos torna-se, ao longo do tempo, mínimo necessário para explicar qualquer coisa é por em
relativamente autônoma em relação à sua origem relação três entidades como é característica da tradição
econômica. Essa autonomia não reduz a determinação dialética. Por exemplo: a economia não é a causa da
econômica, mas aumenta os poderes de cada uma das filosofia sim o fator (complexo) que a determina em última
dimensões não-econômicas sobre o conjunto da vida social. instância através da mediação do político, jurídico e da
Por isso é que as outras dimensões sociais da realidade, moral.
além da econômica, têm também efeito causal sobre a Todo fenômeno, ao ser gerado (como efeito de
realidade humana. As influências econômicas passam a outros), retroage sobre a base da qual surgiu, produzindo
ocorrer indiretamente através de outras relações sociais nela novos efeitos. A unidirecionalidade na relação causa
mais diretamente influenciadas pelos interesses efeito, em que, a causa, sendo anterior ao efeito não pode
econômicos. Foi se montando, ao longo da tempo histórico, sofrer dele nenhuma influência relevante é amplamente
uma estrutura hierárquica de determinações em que cada rejeitado pelos fundadores do marxismo. Para eles a
dimensão da realidade impõe restrições e condições às filosofia retroage sobre a economia justificando ética e
influências externas vindas das outras dimensões, inclusive epistemologicamente os valores, a técnica e a racionalidade
às econômicas. A conclusão é que a causa imediata de um burguesa.
fenômeno sempre é determinada nos termos da dimensão à A influência que um fenômeno pode produzir em
qual ele pertence. outro ou que uma instância da realidade pode produzir em
A Figura 7 ilustra uma estrutura de causação outra obedece rigorosamente às condições prescritas pelo
bidirecional onde o fator econômico atua na função fenômeno ou campo em questão. À divisão mecânica entre
orientadora do processo histórico concreto. interno e externo, Engels afirma que o fator determinante
pode ser externo, mas dentro dos limites do interno, que
tem suas próprias contradições e dinâmica
desenvolvimental. Ex: A economia não cria nada de novo
(conteúdo) na filosofia, mas determina como (o modo de) se
Relações Econômicas
modificarão as idéias já existentes nesse campo16.
As relações causa-efeito são uma forma particular
de explicação e não tem validade a não ser no estudo de
fenômenos particulares e suas interações locais.
Instâncias Explicações globais não usam a lógica causal-
Mediadoras consequencial, pois não dão conta da complexidade de alto
grau, inerentes às totalidades mais universais, por exemplo:
não podem ser utilizadas para explicar o fenômeno da vida
numa escala planetária, ecológica (Engels, 1976; Hut,
Goodwin e Kauffman, 1997; Foster,1999)
Instituições Sociais Finalmente, a visão de mundo marxiana, implica
Idéias Comportamento entender os fenômenos humanos dispostos no tempo, como
Valores processos dinâmicos e mutáveis. O tempo, dimensão da
realidade na qual se desenvolve a existência humana é,
também, uma entidade complexa. Filosoficamente, o tempo
Figura 7. Determinação econômica e suas mediações. é uma unidade de medida do movimento, da mudança. Ora,
os processos de mudança na existência dos seres humanos
A compreensão da causação econômica é ocorrem em unidades de tempo diferentes a depender do
fundamental dentro da visão de mundo materialista de tipo de fenômeno que está mudando.
Marx. É o caso mais desenvolvido dessa visão aplicada ao
estudo da realidade humana. Em oposição às concepções
mecanicistas de causalidade, Marx e Engels afirmaram que
todo fenômeno é efeito de múltiplas causas e,
simultaneamente, toda causa é síntese de múltiplas
determinações. Aplicaram esse método a fenômenos
diversos como a ciência, a família, o estado, a habitação, a 16
ideologia, a filosofia e, é claro ao modo de produção Uma das principais divergências entre revolucionários
capitalista. O conhecimento resultante dessa empreitada brasileiros foi, até muito recentemente, o peso das questões
nacionais na revolução brasileira. Boa parte dos equívocos aí
fantástica é um exemplo incomparavelmente bem sucedido cometidos ficou por conta de uma falsa dicotomia entre os
de pesquisa cientifica realizada fora do e contra o modelo fatores internos – contradição entre as classes na formação
uni-causal predominante em muitos meios científicos e, social brasileira – e externos – influencia da dependência ao
ainda hoje, entre os militantes marxistas. É também um imperialismo e ao capital financeiro. Uma compreensão
exemplo contrário a compreensão da causa como uma correta, fundada na concepção de causação de Marx seria a
entidade simples. Toda relação causa-efeito é mediada por de que o externo determina nos termos prescritos pelo
interno.

11
Engels, F. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do
Estado, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977.
Níveis

Foster, J. B. Ecologia em Marx: Materialismo e Natureza, São


Biológico Psicológic Social
o
Paulo, Civilização Brasileira, 2005.
Filogenético
Henry, J. A Revolução Cientifica. Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Histórico Editor, 1998.
Tempo
Ontogenético
Holland, J.H. A Ordem Oculta. Lisboa, Gradiva Editora, 1997.

Hut, P.; Goodwin, B.; Kauffman, S. Complexity and Funcionality:


Figura 8. Os fenômenos humanos se distribuem ao longo de uma A Search for the Where, the When, and the How. In: Y. Bar-Yam
existência multitemporal. (ed). Proceedings of the Internacional Conference on Complex
Systems. New England: Complex Systems Institute, 1997.
A Figura 8 ilustra como devemos compreender a
relação entre as dimensões temporais mais gerais e a Johnson, S. Emergência. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003.
complexidade do Homem. Demonstrou-se, ao longo deste
capitulo, que o ser humano é uma síntese de níveis Kelle A & Kovalzón K. Cultura y formación social, Moscou,
diferentes da realidade e que os mecanismos e processos de Editorial Progresso, 1975.
mudança estão distribuídos num tempo evolutivo ou
filogenético – onde o movimento é medido em grandes Lenin, V I. Cadernos Filosóficos. Lisboa, Edições Avante, 1989.
unidades de tempo de séculos e milênios –, num tempo
histórico – onde as mudanças ocorrem em unidades de
Leontiev, A. O Desenvolvimento do Psiquismo. São Paulo,
tempo geralmente de anos ou décadas – e num tempo em Editora Moraes, 1996.
que as mudanças ocorrem em dias ou semanas, o tempo da
história de vida dos indivíduos e grupos, ou ontogenético.
Lewin, R. Complexidade. São Paulo, Editora Rocco, 1994.
O Materialismo e a Dialética, núcleos da filosofia proposta
por Marx e Engels, são simultaneamente visão de mundo e
método de conhecimento. Defende-se neste capítulo a Marx K. Grundrisse,, México, Siglo XXI Editores, 1998.
atualidade desta abordagem para a compreensão dos
intricados fenômenos humanos e suas possibilidades “O Marx K. O capital: crítica da economia política Livro 1 vol 1 São
Outro (o oposto) contém em si a determinação do primeiro Paulo, Abril Cultural, , 1984
que é, assim, conservado e mantido também no Outro.
Reter o positivo em seu negativo é o mais importante no Marx K & Engels F. A Ideologia Alemã, vol. 1. Lisboa, Editorial
conhecer racional”. Lenin , 1989) Presença, 1986.
de compreensão e transformação como parte dos
processos de mudança da Natureza imediata da qual Marx K. Manuscritos Econômicos Filosóficos, São Paulo,
fazemos parte e do Mundo em sua Universalidade. É claro Boitempo Editorial, 2004 .
que um tanto de temas e questões problemáticas estão em
aberto – e sequer foram aqui discutidas – mas espera-se que Marx, K . O Método da Economia Política. Os Pensadores, São
as idéias apresentadas possam suscitar a reflexão criativa e Paulo, Ed. Abril Cultural, 1978.
o debate crítico.
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