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Roger dos Santos Almeida

O Movimento Manguebeat.

Monografia apresentada ao Departamento de


História da PUC-Rio como parte dos requisitos
para a obtenção do grau de Licenciando em História.

Professora orientadora Graça Salgado

Rio de Janeiro
Junho de 2010.
Agradecimentos:
À minha Mãe e toda minha família. Aos colegas, professores e a toda
comunidade PUC-RJ.
À Vice-Reitoria Comunitária e o Ministério da Educação pela concessão
da bolsa de estudos PROUNI.
À professora Maria da Graça Salgado e professora Santuza Cambraia
Naves
À Elaine e meu filho Pedro.
E Uther Maia, Natalia Dalier, Heitor Velasco, Carlos Taveira, Eduardo
Gonçalves, Leandro, Elizabeth Aleixo e Anderson Barbosa.
RESUMO:
O grupo Chico Sciense & Nação Zumbi uniu elementos globais e
regionais, juntou tradição com modernidade, misturou côco e embolada com rock,
maracatu com hip hop. Este hibridismo musical foi a síntese do Movimento
Manguebeat, surgido em Recife no início da década de 1990. Os principais temas
desenvolvidos neste trabalho foram a relação do movimento com a globalização,
com a antropofagia cultural e com a obra Homens e Caranguejos de Josué de
Castro. Desta análise é possível compreender as principais motivações do
Manguebeat. O trabalho tem como fonte as músicas de Chico Sciense & Nação
Zumbi, assim como os manifestos publicados para o movimento.

PALAVRAS-CHAVE:
Manguebeat; Antropofagia; Chico Sciense & Nação Zumbi; Globalização
2

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO – “Um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar”...... 1
CAPÍTULO 1 – Os anos 90 na Manguetown.......................................................... 6
CAPÍTULO 2 – “Contra todos os importadores de consciência enlatada.”.......... 16
CONCLUSÃO....................................................................................................... 23
REFERÊNCIA BIBLIOGRAFICA....................................................................... 25
DISCOGRAFIA .................................................................................................... 28
ANEXO I – MANIFESTOS.................................................................................. 30
1º Manifesto do Movimento Manguebeat – Caranguejos com cérebro / Fred
Zeroquatro ......................................................................................................... 30
2º Manifesto do Movimento Manguebeat – Quanto Vale uma Vida / Fred
Zeroquatro e Renato Lins. ................................................................................. 32
Manifesto Antropófogo – Oswald de Andrade.................................................. 38

ANEXO II – MÚSICAS........................................................................................ 42
Um Passeio no Mundo Livre – Chico Sciense & Nação Zumbi ....................... 42
Manguebit – Mundo Livre S/A ......................................................................... 42
Concorra a um carro – Mundo Livre S/A.......................................................... 43
Antene-se – Chico Sciense & Nação Zumbi ..................................................... 44
Cidadão do Mundo – Chico Sciense & Nação Zumbi ...................................... 45
Monólogo ao pé do ouvido – Chico Sciense & Nação Zumbi .......................... 47
3
INTRODUÇÃO – “Um passo à frente e você não está mais
no mesmo lugar” 1.

Conheci o movimento Manguebeat2 através de um amigo carioca que tinha


ido morar em Recife no final dos anos 90. Ele havia me dito que Chico Sciense
poderia ser considerado pelos pernambucanos um grande herói regional por ter
colocado a cidade de Recife novamente no mapa cultural brasileiro, elevando a
auto-estima da juventude daquela região. Há quem diga que o Manguebeat foi o
último instantâneo realmente criativo da música brasileira.
De Recife, meu amigo trouxe o primeiro CD lançado pelo grupo Chico
Sciense & Nação Zumbi, o Da lama ao Caos, e logo a primeira música do disco
me fez arregalar os olhos e sentir no coração o peso do som dos tambores e da
guitarra. Descobri que o som percussivo e pesado presente nas músicas era
oriundo do ritmo maracatu. A partir daí passei a pesquisar ainda mais sobre o
grupo e sobre o movimento, o que despertou um mim um singelo interesse pela
riqueza cultural do nordeste.
Descobri que o movimento surgiu, inicialmente, como Cena Mangue. A
cena passou a ser chamada de Movimento quando o release Caranguejo com
cérebros, escrito por Fred Zeroquatro e publicado para divulgação das bandas do
Movimento chegou à imprensa brasileira. Além de divulgar o release como um
manifesto, a imprensa também acrescentou a palavra beat (de batida) ao rótulo
Mangue. Pode-se dizer que este acréscimo foi inspirado na música Manguebit, do
grupo Mundo Livre S/A que também é integrante deste Movimento.
“Sou eu transistor
Recife é um circuito
O país é um chip
Se a terra é um rádio
Qual é a música?
Manguebit
Ideologia Mangue
Mangue Manguebit” 3
Quando a imprensa começou a divulgar o Movimento, os integrantes
rejeitaram tal denominação, pois consideravam o termo “movimento” muito

1
Chico Sciense & Nação Zumbi “Um passeio no mundo livre” IN: Afrociberdelia.
2
Mangue, Manguebit ou Manguebeat. A grafia do Movimento é utilizada dessas três formas.
Segundo Roberto Azoubel “a denominação Manguebeat, com o sufixo inglês significando
“batida”, deve-se ao fato de que ele foi iniciado com a música através de seus dois grupos
principais: Chico Sciense & Nação Zumbi e Mundo Livre S/A. Já a grafia Manguebit, de unidade
cibernética bit, faz referência ao uso da tecnologia e da informação.”
3
Mundo Livre S/A “Manguebit” IN: Samba esquema noise.
2

pretensioso. Consideravam Cena ou Cooperativa Cultural um termo mais


adequado que poderiam corresponder as suas intenções. Porém, gradativamente, a
definição dada pela imprensa foi sendo incorporada pelos grupos de Recife. A
aceitação do termo pode ser comprovada com a publicação do 2º Manifesto do
movimento, intitulado “Quanto vale uma vida” 4, também escrito por Fred
Zeroquarto em parceria com o jornalista Renato Lins na ocasião da morte de
Chico Sciense em 1996. Se os autores chamaram este texto de “segundo”
Manifesto então pode se considerar que haja a existência de um primeiro. Então, o
texto Caranguejos com cérebro que antes fora considerado um simples release de
divulgação agora pode ser denominado o texto inaugural do Movimento
Manguebeat.
Devo alertar que o foco desta pesquisa se limita apenas ao estudo dos
textos e das músicas do grupo Chico Sciense & Nação Zumbi, estendendo-se
timidamente a algumas citações do grupo Mundo Livre S/A. A opção exclusiva
pelo grupo Chico Sciense & Nação Zumbi se dá por que este grupo foi o
precursor do Movimento Manguebeat. Além disso, é no som produzido por esta
banda que as características do hibridismo musical são mais visíveis.
Contudo, a mistura de sons que fez de Chico Sciense um artista original e
singular em seu tempo não pode ser estendida a outros grupos do Manguebeat. A
mistura de hip hop com embolada, e rock com maracatu não é uma condição para
todas as bandas de Recife. Como exemplo, temos o grupo Mundo Livre S/A que
não apresenta na sua música a mistura de ritmos regionais do Nordeste, assim
como foi feito por Chico Sciense. O Mundo Livre S/A é uma banda de rock e os
seus integrantes possuem uma bagagem musical muito diversificada.
“Mangue não é fusão de coisas eletrônicas com ritmos locais, por exemplo. O
Mundo Livre, que é a banda parceira da Nação Zumbi nessa história, quase não trabalha
com sons regionais; a parada deles é música pop. Hoje em dia, acho que não é mais
Mangue o chapéu de palha e os óculos escuros (...). Mangue, hoje em dia, continua sendo
a diversidade, o senso de cooperação entre as bandas que vêm se espalhando por outras
áreas.” 5
Apesar disso, podemos dizer que o grupo Chico Sciense & Nação Zumbi é
uma mescla entre tradição e modernidade, como um hibridismo musical. Porém
os outros grupos do Manguebeat, como Mundo Livre S/A, Devotos, Eddie, Sheik
Tosado, Via Sat, Jorge Cabeleira, todos contemporâneos da Nação Zumbi, não

4
Cf. ANEXO I.
5
Lins, R. Manguebit não é fusão. P.1
3

exploram a fusão de elementos tradicionais com modernos, nem populares com


pop. Entendo que o Manguebeat é a convivência entre essas diversas
manifestações culturais, é o respeito à diversidade. A proposta do Manguebeat foi
apreender a interação de diversas manifestações culturais não apenas de Recife,
mas do Brasil e do mundo.

. . .

O Manguebeat surgiu da insatisfação de um grupo de jovens amigos da


cidade de Recife contra o marasmo cultural instalado na cidade. Da criatividade
desses jovens surgiu um “núcleo de pesquisa e produção de idéias pop” – que na
verdade nunca foi um núcleo institucional. Este núcleo, composto de jovens
pobres da periferia ou engajados de classe média das mais variadas profissões
haviam detectado o estado lamentável das condições culturais estabelecidas em
Recife.
A estratégia era produzir uma cena na cidade que criasse o maior número
possível de produções culturais, gerando trabalhos e formas de ganhar a vida. O
resultado produzido foi bastante satisfatório para os integrantes, como podemos
observar a transcrição de um trecho do Segundo Manifesto do Movimento
Manguebeat:
“Depois de vários shows e eventos muito bem sucedidos, e do manifesto
“Caranguejos com Cérebro” (que transformou, de uma hora para outras centenas de
arruaceiros inocentes em mangueboys militantes), parecia que a cidade realmente
começava a despertar do coma profundo em que esteve mergulhada desde a guerra dos
80. (...) Para todos os agentes e operadores culturais que viam seu talento e potencial
atrofiados pela desmotivação, era o estimulo que faltava. Afinal, queiram ou não, discos
pop lançados por multinacionais movimentam várias áreas de expressão ao mesmo
tempo: moda, fotografia, design, produção gráfica, vídeos, relações públicas, assessoria,
imprensa, marketing, música etc.
Daí em diante, pode-se dizer que teve início um efetivo “renascimento” recifense.
Todo mundo gritou mãos à obra! E partiu para o ataque. As ruas viraram passarelas de
estilistas independentes; bandas pipocaram em cada esquina; palcos foram improvisados
em todos os bares; fitas demo e clipes novos eram lançados toda semana, e assim por
diante, gerando uma verdadeira cooperativa multimídia autônoma e explosiva, que não
parava de crescer e mobilizar toda cidade. De headbangers a mauricinhos, de punks a
líderes comunitários, de surfistas a professores acadêmicos, ninguém ficou de fora.” 6
Como prova pode-se afirmar que o Manguebeat, como movimento
cultural, ganhou uma dimensão e foi estendido para diversos campos de atuação

6
Lins, R. & Zeroquatro, F. Quanto vale uma vida.
4

artística e cultural. No cinema, por exemplo, a cidade de Recife presenciou a


retomada das produções da sétima arte. Um movimento paralelo e complementar
ao Manguebeat surgiu com o nome de Árido Movie, cujos principais filmes
produzidos foram O Baile Perfumado, de 1996 dirigido por Lírio Ferrera e Paulo
Caldas e Amarelo Manga, filme de Claudio Assis lançado em 2003, além da
produção de centenas de filmes de curta metragem. 7

. . .

Esta monografia trata o Manguebeat de uma forma particular. Nas


primeiras linhas do capítulo 1 apresentamos os resultados de uma pesquisa
socioeconômica realizada em 1990 na cidade de Recife. A pesquisa foi citada no
Manifesto Caranguejos com Cérebro e na música Antene-se de Chico Sciense &
Nação Zumbi. A relação estabelecida entre a pesquisa, a música e o manifesto é o
passo inicial para desenvolver uma relação entre a estagnação econômica de
Recife e a alienação cultural da cidade – que foi o mote para a criação do
Movimento Manguebeat.
A proposta do primeiro capítulo é localizar o Manguebeat em um contexto
histórico. A época da criação do Movimento era singular para o Brasil e para o
mundo. A proposta neoliberal dominou geopoliticamente os países sugerindo que
as nações fossem interligadas por redes de comunicação e interesse. A ascensão
da ideologia neoliberal que sugeria o fim das políticas de incentivo a programas
sociais e culturais deixou entregue à própria sorte a juventude da cidade de Recife
que não se satisfazia com produtos mal acabados e de difícil digestão oferecido
pela aldeia global. Os efeitos da globalização acabam sendo sentidos, direta ou
indiretamente, sobre todos os aspectos da existência: a vida econômica, social e
cultural.8
“Não adianta, não há como escapar do mundo livre” 9
Apesar do verso pessimista, os mangueboys tiveram criatividade e
inteligência para driblar esta profecia.

7
Cf. Bonetti, M. Manguebeat e Árido-Movie: o som em Baile Perfumado. .
8
Cf. Santos, Milton. Por uma outra globalização. Do pensamento único à consciência universal.
P.65
9
Mundo Livre S/A. “Concorra a um carro”. IN Por pouco.
5

No capítulo 2, o Manguebeat migra do campo da economia e da política


para o mundo literário. As referências às obras de Josué de Castro e Oswald de
Andrade são inevitáveis. Homens e Caranguejos de Josué de Castro é um texto
fundamental para aqueles que desejam compreender o Manguebeat. Foi deste
livro que as metáforas sobre manguezais e caranguejos foram surgindo na mente
criativa de Chico Sciense e de seus amigos.
Todavia, as idéias antropofágicas de Oswald de Andrade não foram tão
explícitas na época da criação do Manguebeat. Não há entrevista, música ou texto
produzido pelos mangueboys que façam alusão direta ao Manifesto Antropófago.
Contudo, mesmo que indiretamente pôde-se perceber que a Antropofagia, tão
desprezada nos meios acadêmicos, encontrou no Manguebeat um parentesco
cultural nos anos 90.
6

CAPÍTULO 1 – Os anos 90 na Manguetown

“Entulhados à beira do Capibaribe


Na quarta pior cidade do mundo
Recife cidade do mangue” 10

O trecho da música Antene-se lançada no disco de estréia do grupo Chico


Sciense & Nação Zumbi atribui uma qualificação negativa à cidade de Recife.
Esta desqualificação refere-se à pesquisa de um Instituto de estudos populacionais
de Washington, publicado em novembro de 1990 no Jornal do Commercio de
Pernambuco 11, na qual a cidade de Recife foi considerada a quarta pior do mundo
para se viver. Em diálogo com a letra da música de Chico Sciense, Fred Zero
Quarto – autor do texto inaugural do movimento – também cita este fato no
documento que é considerado o primeiro Manifesto do Movimento Manguebeat.
“O Recife detém, hoje, o maior índice de desemprego do país. Mais da metade
dos seus habitantes moram em favelas e alagados. Segundo um instituto de estudos
populacionais de Washington, é hoje a quarta pior cidade do mundo para se viver.” 12
“Neste mesmo ano, segundo os levantamentos mensais do DIEESE
(Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos), o Recife tinha
conseguido manter a impressionante e isolada posição de campeã nacional do
desemprego por nada menos que dez anos seguidos, (...) de acordo com o Censo 2000,
metade da população da cidade – 1,3 milhões de pessoas – vive em favelas e mocambos.”
13

É este o contexto que o primeiro capítulo desta monografia irá centralizar


sua atenção. O que os artistas do Movimento Manguebeat tinham em mente
quando consideravam que a cidade de Recife, nos anos 90, não possuía um

10
Chico Sciense & Nação Zumbi. “Antene-se” IN: Da Lama Ao Caos.
11
Cf. Calazans, R. “Mangue. A Lama, a parabólica, a rede”. P. 38
12
Zeroquatro, F. “Caranguejos com Cérebro”.
13
Azoubel, R. “Mangue: uma ilustração da grande narrativa pós-moderna”. P. 54
7

ambiente cultural digno de seus anseios? Este capítulo pretende esclarecer o que
foi dito nas letras das músicas de Chico Sciense & Nação Zumbi e no texto
Caranguejos com cérebro sobre a cidade de Recife. Por que Fred Zeroquatro
sentenciava no manifesto: “Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de
infarto.”?
Se estas questões colocadas acima forem respondidas integralmente nós
teremos uma explicação muito convincente sobre os motivos da criação do
Movimento Manguebeat. Pelo conhecimento que temos das músicas e da
motivação das bandas, além da análise bibliográfica sobre o tema, podemos
afirmar que o Manguebeat surgiu da recusa e da insatisfação com o que era
oferecido para os jovens de Recife naqueles anos, em termos de cultura e de
política. Para compreendermos o contexto histórico de Recife dos anos 90,
ampliemos um pouco nosso raio de ação para uma perspectiva global e façamos
uma menção ao período do neoliberalismo e da globalização, tendências que
marcaram a economia e a política brasileira no período.
A década de 1990 no mundo foi marcada pela ascensão econômica e
ideológica da política neoliberal. Podemos dizer que esta década – após o fim da
União Soviética, da queda do muro de Berlim e da extinção do bloco socialista no
Leste europeu – foi marcada pela derrocada do Estado forte e suas possíveis
políticas de incentivo a programas sociais e culturais. Seguindo a ideologia
neoliberal de enfraquecimento das políticas estatais, em certos campos de atuação,
as organizações não-governamentais, ou do terceiro setor, passaram a assumir um
papel que deveriam ser de responsabilidade do Estado.
“Estas organizações ganharam importância nos anos 90, por serem potenciais
parceiras do poder público, em decorrência de sua estruturação. Esta relação de parceria
passou a ser estimulada, a partir do discurso neoliberal que pressupõe a retirada do Estado
de uma série de atividades” 14.
Com a mudança no foco das políticas estatais, conforme fora determinado
pelas ideologias neoliberais, um número cada vez mais significativo de
organizações não-governamentais se fez atuante nas mais distintas esferas sociais.
O mundo globalizado sugere um Estado mínimo, com responsabilidades sociais
reduzidas, já que estas responsabilidades foram transferidas ao “todo poderoso”
mercado e à iniciativa privada.

14
Vieira, N. A globalização e o papel das ONG’s na sustentação da economia Informal. P.12
8

Em Recife, uma ONG foi muito importante para a formação da banda


Chico Sciense & Nação Zumbi. Foi no Centro de Educação e Cultura Daruê
Malungo, localizado na comunidade do Chão de Estrelas, na zona metropolitana
de Recife, que Chico Sciense iniciou a sua mistura de sons. O Centro Daruê
Malungo realizava cursos e oficinas de arte e cultura, além de formação musical e
dança popular com foco na cultura africana. O significado da expressão daruê
malungo é “companheiro de luta” em dialeto ioruba e foi citado por Chico em
uma de suas composições. “Daruê Malungo e Nação Zumbi é o zunzunzum da
capital, só tem caranguejo esperto saindo desse manguezal”.15
Rejane Calazans, autora da tese de doutorado Mangue. A lama, a
parabólica, a rede, defendida na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e
co-diretora de um filme-documentário homônimo, afirma que o Centro Daruê
Malungo além de atuar na esfera artística e cultural, procura garantir a retirada de
crianças e jovens das ruas, e também promover oportunidades de
profissionalização na área de promoção cultural. A tentativa de inclusão social e
cultural proposta pelo Centro exploram, principalmente, os aspectos da cultura
negra com a preocupação de criar um sentido de identidade afro-brasileira e de
afirmação da cidadania.16
As primeiras experiências de Chico Sciense ao misturar sons de guitarra
com batidas de tambores aconteceram no Centro Cultural da comunidade de Chão
de Estrelas. Foi lá que Chico Sciense convenceu seus amigos roqueiros da classe
média de Olinda a se misturarem com os ex-meninos de rua tocadores de música
afro. O depoimento de um integrante do Daruê Malungo tenta explicar como eram
os ensaios do grupo musical que nascia.
“Só tambor, caixa, repique, eu passava os arranjos da guitarra pro repique, sopro
pros tambores. Era meio confuso porque não tinha definição de melodia. (...) Chico
insistiu para eu participar, mas dei preferência pros meninos, porque eles não tinham
perspectiva de vida nenhuma. Eram maloqueiros de rua.” 17
O apelido Chico Sciense foi dado por seus amigos a Francisco de Assis
França, nome de batismo do líder da Nação Zumbi, por considerarem o líder da
Nação Zumbi um alquimista dos sons.
As experiências musicais da banda Chico Sciense e Nação Zumbi
receberam forte influência das manifestações culturais tradicionais de
15
Chico Sciense & Nação Zumbi. “Cidadão do Mundo” IN: Afrociberdelia.
16
Cf. Calazans, R. Op.Cit.
17
Telles, J. Do frevo ao manguebeat. P. 46.
9

Pernambuco, com as quais os músicos tiveram contato desde a sua infância,


principalmente os percussionistas da banda – os ex- moleques de rua da
comunidade de Chão de Estrelas.
“A presença mais constante nas músicas de Chico Sciense e Nação Zumbi é a do
maracatu, folguedo pernambucano, muito vinculado à cidade do Recife, mas também
presente de maneira tênue em Alagoas e na Paraíba. São agremiações e blocos que, desde
meados do século XIX, saem no carnaval comemorando a coroação de Rei e Rainha
negros, embalados por uma música de forte ritmo sincopado e com marcante presença de
instrumentos de percussão. As agremiações são vinculadas aos terreiros de candomblé e
têm como chefes os seus babalorixás. O vocábulo maracatu, de raiz africana, teve como
sentido inicial em Pernambuco um ajuntamento de negros para um batuque.” 18
Entendemos que a preferência pelo maracatu, associada às experiências
tradicionais afro-brasileiras, se dá pelo fato de os jovens recifenses não estarem
satisfeitos com o que lhes era oferecido em termos musicais. Os ‘enlatados’
americanos não faziam a cabeça daqueles artistas – era hora de buscar algo novo.
Da tese de Azoubel, mestre em Letras pela PUC-Rio e que também refletiu sobre
o Manguebeat na sua vida acadêmica, foi retirada uma declaração do cantor Alceu
Valença sobre a “apatia cultural” do seu estado, em março de 1992:
“Pernambuco está velho. O novo é Jomard Muniz de Brito, Alceu Valença,
Flaviola e Ave Sangria. Por que eu falo esses nomes? Eu estou louco que apareça o novo,
mas não está aparecendo. O que acontece em Pernambuco é que nós somos extremamente
conservadores. A gente quer que o forró seja exatamente do mesmo jeito. Nós amamos
Luiz Gonzaga, e nós não temos a noção de que Gonzaga morreu, que Alceu e Jomard vão
morrer. O problema é que Pernambuco não quer a nova ordem, Pernambuco está
morrendo de mofo, E nós, os grandes loucos, com tantos anos e cabelos brancos, estamos
atrasados.”19
O conservadorismo dos produtores culturais de Recife é conseqüência de
outro movimento cultural pernambucano datado dos anos 70, conforme a citação
de Alceu Valença acima. O chamado Movimento Armorial, cujo principal
expoente era o escritor e dramaturgo Ariano Suassuna, tentava salvaguardar as
tradições populares dos contatos e das influências de elementos culturais externos
e usá-las na criação de uma arte erudita que tivesse as marcas ancestrais e
originais da música do sertão nordestino.20 Esta era uma visão tradicionalista dos
armorialistas que nos anos do surgimento do Manguebeat produziram debates
públicos sobre o uso e desusos das manifestações tradicionais de Pernambuco.
Ariano Suassuna, então Secretário de Cultura de Pernambuco, no governo
de Miguel Arraes (1995 – 1998), trazia o espírito armorialista para a política de

18
Vargas, H. Hibridismos musicais de Chico Sciense & Nação Zumbi. P. 116.
19
Azoubel, R. p. Cit.. P. 54.
20
Cf. Mattos, A. O encontro do Velho do Pastoril com Mateus na Manguetown ou As tradições
populares revisitadas por Ariano Suassuna e Chico Sciense.
10

sua secretaria e criticava publicamente as atividades realizadas pelos artistas do


Manguebeat. O foco dos investimentos culturais do seu governo seria para as
manifestações populares marginalizadas pela indústria cultural, como a literatura
de cordel, o côco, o maracatu rural. O som produzido pelo Manguebeat, recheado
de influências estrangeiras, era considerado por Suassuna como um movimento de
grande apelo comercial e bastante atraente aos patrocinadores privados.
“Ele [Chico Sciense] foi me procurar dizendo: “Eu sou um armorial”. Ele sabia
que eu fazia certas oposições ao Movimento Manguebeat. Tinha restrições tremendas. O
que eu discordava era exatamente porque ele tentava fundir duas coisas de forma
equivocada. Ele dizia que tentava valorizar o maracatu rural, por exemplo, através da
junção com o rock. Eu gosto muito de maracatu rural (...) e perguntei ao Chico Sciense:
“No que uma coisa ruim como o rock pode valorizar o maracatu?”E completei: “Você
está servindo de ponta-de-lança para os piores inimigos do Brasil, aqueles que tentam
descaracterizar a nossa cultura. Mude o nome de Chico Sciense para Chico Ciência que
eu subo no palco do seu lado”. 21
O trabalho de Anna Paula de Oliveira Mattos, que teve sua dissertação de
mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC-Rio,
discorre sobre a relação entre o movimento Manguebeat e o Armorialismo. A
autora traz à luz questões bem desenvolvidas sobre os dois movimentos
pernambucanos, bem como o debate sobre a abertura da cultura de massas aos
bens simbólicos periféricos. Seu trabalho nos chama atenção para o impasse entre
Chico Sciense e Ariano Suassuna que evidencia um dilema característico dos anos
90, nos primeiros anos de um mundo neoliberal e interligado. Anna Paula nos
alerta sobre a questão das aspirações culturais tradicionais em meio ao mercado
cultural globalizado, preocupação típica de um intelectual tradicionalista como
Suassuna.
A posição de Ariano Suassuna em relação ao Manguebeat deixa escapar
sua preocupação, no momento em que a conjuntura internacional dificilmente não
deixaria de atingir de forma negativa as manifestações tradicionais de
Pernambuco. Segundo a lógica da globalização, o que é produzido pelos países
centrais também deve ser consumido nas regiões periféricas e em países como
Brasil.
Assim, as manifestações tradicionais de Pernambuco, como a literatura de
cordel e os maracatus, não teriam vez frente aos produtos internacionalmente
massificados, e irremediavelmente seriam colocados nos confins do
esquecimento, na marginalidade. Porém, Chico Sciense ao criar o movimento

21
Suassuna, A. apud. Mattos, A. Op Cit. P. 11.
11

Manguebeat, com todas as suas características particulares, sugere uma alternativa


à ordem estabelecida pela cultura de massas. Quando foi dito que os mangueboys
rejeitavam a ordem cultural estabelecida na cidade de Recife, eles estavam
também rejeitando esta cultura de massas que era importada pelas grandes
corporações sem que houvesse uma avaliação prévia por parte dos consumidores.
“Um esquema grosseiro, a partir de uma classificação arbitrária, mostraria, em
toda parte, a presença e a influência de uma cultura de massas buscando homogeneizar e
impor-se sobre a cultura popular. (...) Sem dúvida, o mercado vai impondo, com mais ou
menos força, aqui e ali, elementos mais ou menos maciços da cultura de massa,
indispensável, como ela é, ao reino do mercado, e a expansão paralela das formas de
globalização econômica, financeira, técnica e cultural.” 22
Este fenômeno, característico da globalização, de homogeneização da
cultura foi discutido pelo geógrafo Milton Santos num capítulo sobre a cultura de
massas. Mais adiante neste trabalho, pretendemos mostrar como o Manguebeat,
segundo a explicação de Milton Santos, foi vitorioso no duelo com a cultura de
massas. Por hora pretendemos fundamentar teoricamente as alternativas buscadas
por Chico Sciense em relação à cultura de massas a partir da leitura do teórico
sobre estudos culturais, Stuart Hall.
No livro A identidade cultural na pós-modernidade, Stuart Hall nos
informa que antes do fenômeno da globalização, as culturas nacionais dominavam
a modernidade e as identidades nacionais tenderiam a se sobrepor a outras fontes
de identificação cultural, pois a identidade nacional naquele momento estava
diretamente relacionada com a cultura nacional. Só se identificaria a nação
quando o sujeito manifestava sua cultura local. A nacionalidade, antes de imperar
o discurso da globalização, fez da cultura local um elemento fundamental para a
construção de uma identidade nacional.
A globalização, segundo Stuart Hall, é o motivo das mudanças de
identidades culturais nacionais no fim do século XX. Entendemos que
globalização se refere “àqueles processos, atuantes numa escala global, que
atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e
organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo, em
realidade e em experiência, mais interconectado.” 23

22
Santos, M. Por uma outra globalização. Do pensamento único à consciência universal. P. 143.
23
McGrew, A. A sociedade global. Apud. Hall, S. A identidade cultural na pós-modernidade. P.
67.
12

Contudo, a globalização como um fenômeno dos anos 90 no Brasil, não foi


um evento recente e a conexão das redes mundiais ocorreu de maneira gradual ao
longo das décadas, chegando ao auge no fim do século XX. O autor nos mostra
que o próprio capitalismo foi, desde o início, um elemento da economia mundial e
não dos estados-nação. As fronteiras dos países seriam um incômodo obstáculo ao
fluxo de capitais e mercadorias. A autonomia e a soberania dos estados-nação,
conforme as indicações do autor, não estavam sob total domínio dos líderes
nacionais.
Tendo como referência essas idéias acima expostas, seguiremos o
raciocínio no tocante às conseqüências da globalização sobre as identidades
culturais. O autor delimita três possíveis conseqüências: a desintegração das
identidades culturais como resultado da homogeneização cultural; o surgimento
de novas identidades híbridas diante do declínio das identidades nacionais; e o
reforço das identidades nacionais e locais como resistência à globalização. O
interesse pelas definições teóricas de Stuart Hall nesta monografia resulta do
tratamento que o autor dá ao tema da globalização e os seus efeitos sobre as
identidades culturais. E é neste ponto que tiramos proveito da reflexão de Hall
para pensar o movimento Manguebeat, e tentar compreender por que Chico
Sciense escolheu a tradição cultural de Pernambuco para enriquecer o seu som.
Stuart Hall nos informa que as conseqüências da globalização realmente
têm atenuado as formas nacionais de identidade cultural. As identificações
comuns dos indivíduos que davam forma à Nação, como uma alma ou um
24
princípio espiritual , conforme definia Ernest Renan, são solapadas diante dos
efeitos da aldeia global. Contudo, outros “laços e lealdades culturais” se
sobrepõem às identidades nacionais – as identidades locais, regionais e
comunitárias passam a ter um efeito mais significativo.
“À medida que as culturas nacionais tornam-se mais expostas a influências
externas, é difícil conservar as identidades culturais intactas ou impedir que elas se
tornem enfraquecidas através do bombardeamento e da infiltração cultural.(...) Quanto
mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens,
pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação
globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas.”25
Como ilustração, o autor se refere à presença maciça de produtos ingleses
nas mais remotas regiões da Ásia, ou a insistente tentativa dos Estados Unidos em

24
Cf. Renan, Ernest. O que é uma nação
25
Hall, Stuart. Op. Cit. P. 70.
13

consolidar sua soberania em escala mundial através da produção cinematográfica


de Hollywood – são milhares de televisores no mundo assistindo a bandeira norte-
americana balançando ao vento nos filmes. É a produção visando o consumo
global.
Os autores citados são unânimes em afirmar que os efeitos da globalização
foram sacrificantes para as identidades nacionais. A proposta de homogeneização
cultural para fazer da aldeia global um mercado consumidor comum desalojou as
culturas nacionais. Contudo, novas formas de articulação dos aspectos locais de
identidade surgem como alternativa aos que rejeitaram a proposta oficial da
globalização26. Estas alternativas, apresentadas a seguir, foram absorvidas por
Chico Sciense e pelos artistas do Manguebeat e poderiam ser um conforto para o
armorial Ariano Suassuna.
Se considerarmos a possibilidade de homogeneização das identidades
nacionais não podemos deixar de mencionar que alternativas a esta possibilidade
surgiram e deram novas formas às culturas nacionais e que, a partir desse
processo, passam a ser culturas locais. Em oposição à homogeneização cultural
surge um fascínio pelo diferente. E juntamente com o impacto global, surge o
interesse pelo local.
Entretanto, Stuart Hall nos alerta para o fato que a globalização explora a
diferenciação local. Não há uma substituição do global pelo local, mas uma nova
articulação entre essas duas dimensões. O que ocorre não é a pura e simples
valorização de velhas identidades locais, mais o surgimento de novas identidades
locais e novas identidades nacionais – retificando a idéia de que as identidades
nacionais seriam solapadas pela globalização.
Tal argumentação parece colocar abaixo todo o raciocínio sobre o
Manguebeat, no tocante à sua postura diante do que lhe era oferecido pelo mundo
globalizado. Vimos que Chico Sciense manteve firme sua posição de dizer “não”
aos enlatados e criou seu próprio som. Teve a coragem de desafiar um dos
principais intelectuais do nordeste e utilizou a cultura local pernambucana a seu
favor. Consideramos esta atitude semelhante ao que propõe Stuart Hall ao afirmar

26
Referimos-nos à globalização como um fenômeno que afeta o mundo inteiro, todavia nossa
ingenuidade não deixa escapar que, essencialmente, a globalização foi mais marcante no mundo
ocidental.
14

que “as identidades nacionais e outras identidades locais ou particularistas estão


sendo reforçadas pela resistência à globalização”. 27
Para nós é válido insistir na idéia do movimento Manguebeat como uma
forma de resistência à globalização, valorizando a cultura local e propondo uma
nova postura de identidade local, conforme o pensamento de Hall propôs
anteriormente. Pensar que o Manguebeat foi uma articulação ou uma nova
estratégia da globalização não faria do movimento um caso de resistência cultural.
O Manguebeat eleva ao mais alto patamar a cultura local de Pernambuco e faz
dela seu guia e sua identidade.28
Ainda assim, o Manguebeat não se propôs a tratar os ritmos regionais
como se fossem guardiões da ancestralidade e da essência da cultura local. Eles
optaram por outra relação com a tradição cultural pernambucana. Não havia a
intenção de fossilizar essas músicas, conforme a proposta do Movimento
Armorial, mas que elas pudessem se relacionar com a cultura pop contemporânea,
seja com a mistura com o rock, seja pelo apoio a divulgação desses tradicionais
artistas através de festivais ou em participações musicais. 29
Apesar de serem jovens antenados e influenciados pela cultura pop global,
os artistas do Manguebeat tinham todo o direito de fazer uso das manifestações da
cultura tradicional de Pernambuco. Os blocos de maracatu e as festas tradicionais
da cultura pernambucana faziam parte do cotidiano dos mangueboys, conforme
relato de Lucio Maia, guitarrista da banda Chico Sciense & Nação Zumbi.
“A gente conviveu com a cidade. Por exemplo, em São Paulo, você tem acesso às
coisas, mas você precisa buscá-las. Se você quiser conhecer um bloco afro, você tem de ir
ao local. Aqui, no Recife, não. Eu convivi com isso no meio da rua. Quando estava
jogando bola, passava o Caboclo de Lança indo para a Sambada. Você convive
naturalmente, sem ter que ir procurar. Este é o ponto fundamental. (...) Aí, quando as
pessoas perguntam “como vocês fazem as músicas”, eu digo “a gente fecha os olhos”.
Não tem o que fazer, é uma coisa natural. Rola porque a gente se une. ”30
O enquadramento das propostas musicais do Manguebeat às referências
teóricas de Stuart Hall são possíveis em nosso entendimento, pois Chico Sciense
utilizou-se das raízes tradicionais de Pernambuco e fez dela sua importante fonte
estética e cultural. Eles fizeram desta fonte uma arma para resistir à massificação
27
Hall, Stuart. Op. Cit. P. 79.
28
Lembremos das apresentações de Chico Sciense, que após as batidas dos tambores iniciava seus
shows surgindo no palco vestido de Caboclo de Lança, com óculos de sol, cravo na boca, roupas
coloridas, cabeleiras fartas como jubas de leão e lanças seguradas em mãos firmes.
29
Se não fosse pelo Manguebeat, creio que dificilmente teríamos conhecimento de artistas como
Lia de Itamaracá, Dona Selma do Côco, Dona Sila, Erastos Vasconcelos ou Mestre Salustiano.
30
Maia, L. entrevista à agência Carta Maior. Apud. Calazans, R. Op. Cit. P. 67
15

e a homogeneização cultural. Entretanto, os mangueboys resistiram de maneira


particular. Ao contrário dos armorialistas que valorizavam sobretudo uma marca
ancestral livre de influências estrangeiras, o processo criativo do Manguebeat
apoiava-se na idéia de mistura, fusão e diversidade, retiradas da própria vivência
dos músicos e do rico caldeirão sonoro de Pernambuco. “Modernizar o passado é
uma evolução musical” 31 - esta foi a opção dos mangueboys.

31
Chico Sciense & Nação Zumbi. “Monólogo ao pé do ouvido” IN: Da Lama Ao Caos.
16

CAPÍTULO 2 – “Contra todos os importadores de


consciência enlatada.” 32

“Posso sair daqui pra me organizar


Posso sair daqui pra desorganizar.
Da lama ao caos, do caos a lama
Um homem roubado nunca se engana
O sol queimou, queimou a lama do rio
Eu vi um chié andando devagar
E um aratú pra lá e pra cá
Vi um caranguejo andando pro sul
Saiu do mangue, virou gabiru
Ôh Josué, eu nunca vi tamanha desgraça
Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça
Peguei um balaio fui na feira roubar tomate e cebola
Ia passando uma véia, pegou a minha cenoura
"Aê minha véia, deixa a cenoura aqui
Com a barriga vazia eu não consigo dormir"
E com o bucho mais cheio comecei a pensar
Que eu me organizando posso desorganizar
Que eu desorganizando posso me organizar
Da lama ao caos, do caos a lama
Um homem roubado nunca se engana.” 33

Neste capítulo utilizaremos, inicialmente, a letra da música Da lama ao


Caos de Chico Sciense & Nação Zumbi como documento histórico. A partir dele
construiremos um breve cenário sócio-cultural da cidade de Recife, segundo o
imaginário do seu autor. Chico Sciense quando compôs esta canção, fez algumas
referências sobre o universo urbano de Recife e da sua cantoria popular, dos
caranguejos, da fome e, principalmente, de Josué de Castro, cientista e professor
recifense morto em 1973.
A letra nos remete à miséria, à destruição do mangue e à necessidade de
alterar essa situação pela desorganização/organização do sistema. Chico Sciense
utiliza palavras do dialeto local para designar alguns personagens: “chié”, um
caranguejo pequeno que vive grudado nas pedras da praia e, no contexto popular,
significa menino pobre de rua; “aratu”, também um tipo de caranguejo e, na
música, significa uma pessoa ingênua sempre passada para trás por algum

32
Andrade, O. Manifesto Antropófago. P.1
33
Chico Sciense & Nação Zumbi. “Da lama ao Caos” IN: Da Lama Ao Caos.
17

malandro; e “gabiru”, um tipo de rato que vive na sujeira e designa um mendigo


de rua. 34
De alguma forma, podemos dizer que essas figuras são citadas como
metáforas dos manguezais e da cidade de Recife. Os aratus e os chiés do mangue
podem ser vistos como os meninos de rua do centro da cidade de Recife. Nota-se
que na organização da poesia, Chico primeiro cita os bichos do mangue para
depois comentar a fome dos meninos numa feira livre da cidade. Da lama ao caos
é uma canção livremente inspirada na dialética do romance de Josué de Castro
chamado Homens e Caranguejos.
Este romance descreve o cotidiano de uma comunidade erguida num
manguezal do bairro de Afogados, na cidade de Recife, na primeira metade do
século 20. É a história de pescadores de caranguejos, pessoas que tiram do
mangue seu sustento. Suas casas são construídas à beira dos manguezais e de lá a
comunidade tira sua fonte de nutrição – a sua principal alimentação são os
caranguejos. Nesta obra, Josué diz que os homens são irmãos de leite dos
caranguejos, pois desde a infância são alimentados pelo caldo dos caranguejos – o
“leite da lama”. A vida dos habitantes daquela comunidade gira em torno dos
manguezais e dos caranguejos.
A relação entre homens, caranguejos e manguezal aparece no livro como
um circuito em que cada elemento é fundamental para a sustentação do outro.
Josué de Castro nomeia este arranjo de “ciclo do caranguejo” ou “ciclo da fome”,
pois a vida daqueles homens é guiada pela miséria e pela falta de condições
básicas de vida. Acreditamos que o caranguejo não faça parte de uma dieta ideal
para que crianças recém-nascidas resolvam seus problemas de subnutrição.
Homens e caranguejos é, sobretudo, um livro que aborda o fenômeno da fome e
da miséria. Esta obra ultrapassa os limites de um romance, pois desenha para nós
leitores um quadro social típico das regiões mais pobres do Nordeste brasileiro,
cenário de uma comunidade imprensada entre uma estrutura agrária atrasada e a
modernidade capitalista de algumas regiões brasileiras.
“Os mangues do Recife são o paraíso do caranguejo. Se a terra foi feita para o
homem, com tudo para bem servi-lo, o mangue foi feito especialmente para o caranguejo.
Tudo aí é, foi, ou está para ser caranguejo, inclusive a lama e o homem que vive nela. (...)
O caranguejo nasce na lama, vive na lama, cresce comendo lama, engordando com as
porcarias dela, fabricando com a lama a carne branca de suas patas e a geléia esverdeada

34
Cf. Vargas, H. Hibridismos Musicais de Chico Sciense & Nação Zumbi.
18

de suas vísceras pegajosas. Por outro lado, o povo vive de pegar caranguejo, chupar-lhe
as patas, comer e lamber os seus cascos até que fiquem limpos e com sua carne feita de
lama fazer a carne do seu corpo e a do corpo de seus filhos. São duzentos mil indivíduos,
duzentos mil cidadãos feitos de carne de caranguejo.” 35
Este fenômeno observado pelo autor às margens do Rio Capibaribe, nos
bairros miseráveis da região metropolitana de Recife é o mesmo cenário em que
Chico Sciense fundamentou sua personalidade poética, observando a precariedade
de vida dos habitantes e a sua relação com os manguezais. Os olhos do cantor
foram guiados pelo pensamento arguto de Josué de Castro e daí a presença
constante da metáfora do mangue e dos caranguejos nas canções do grupo Chico
Sciense & Nação Zumbi.
Por vários aspectos, a obra de Josué de Castro será referência para o
Movimento Manguebeat. A idéia da lama como espaço sujo, porém regenerador
que encontramos na obra Homens e caranguejos será aproveitada por Fred
Zeroquatro36 na composição do primeiro Manifesto do Movimento Manguebeat.
“Não é por acaso que os mangues são considerados um elo básico da cadeia
alimentar marinha. Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas, inimigos das donas-de-
casa, para os cientistas são tidos como símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza (...)
Não é preciso ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um
sujeito é obstruindo as suas veias. O modo mais rápido, também, de infartar e esvaziar a
alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que
fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o
ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um
pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.
(...) Em meados de 91, começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um
núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo era engendrar um “circuito
energético”, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de
circulação de conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama.” 37
De acordo com o Manifesto, conectar idéias através de redes mundiais é
um fenômeno típico que se iniciou com a globalização e com a internet. Este
raciocínio traz à tona uma discussão levantada no capítulo anterior.Ou seja,
naquele momento a idéia de globalização, fundamentada em discursos teóricos de
Stuart Hall e Milton Santos, não era vista como fator positivo e fora até mesmo
combatida pelos artistas do Manguebeat. Desse modo, a idéia de globalização
com que trabalhamos no capítulo anterior estava vinculada à noção de

35
Castro, J. Homens e Caranguejos. P. 26 et. seq.
36
Importante ressaltar que neste trabalho chamamos o texto de Fred Zeroquatro de Manifesto, pois
como ele, acreditamos que o Manguebeat seja realmente um Movimento cultural. Por isto, o texto
que inaugura o Movimento pode ser visto como um Manifesto, isto é, um texto que explicita as
principais idéias e propostas do Manguebeat.
37
Zeroquatro, Fred. “Caranguejos com Cérebro”.
19

homogeneização da cultura, fenômeno que está intrinsecamente relacionado com


a estagnação cultural de Recife.
O principal argumento do Manifesto do Manguebeat é relacionar a riqueza
e a diversidade biológica do ecossistema manguezal à cultura recifense, ou
simplesmente à vida cultural dos mangueboys. Utilizado como metáfora, o
conceito de mangue foi a base para o movimento. As noções de fertilidade,
riqueza e mistura foram aproveitadas pelos jovens do Manguebeat, que segundo a
própria dinâmica do ecossistema, o manguezal, por conta da troca de matérias
organicas entre a água doce e água salgada, se tornou um dos ecossistemas mais
ricos do planeta, além do mangue ser um habitat onde algumas espécies de peixes
fazem a sua reprodução 38.
A diversidade sempre foi tema requisitado pelo Manguebeat. Os
idealizadores do movimento, conforme relatado anteriormente, se diziam
insatisfeitos com a situação de Recife na passagem da década de 1980 para 1990.
Vimos que este descorfonto se caracterizava não apenas pela situação sócio-
econômica, mas sobretudo pelo ambiente cultural da cidade. 39
Nesse sentido, poderíamos concluir que a inquietação e insatisfação dos
mangueboys, tanto com a cultura pernambucana quanto com a cultura nacional,
resultava do fato de que a oferta cultural do mercado globalizado era insuficiente
qualitativa e quantitativamente para satisfazer a juventude recifense.
“Isso remete a um caráter comum a toda identidade nacional a necessidade de
construir como um referencial que a diferencie de outras nações, a busca por um lugar no
mundo. No caso da Cena Mangue, tal necessidade foi impulsionada pelo imaginário pop.
A relação do Brasil com o mundo não foi acionada apenas pelos mangueboys, mas em
diversos momentos.” 40
Quando observamos Fred Zeroquatro sugerir no manifesto uma nova
configuração de conceitos pop, percebemos a necessidade que levanta de
elaboração de um novo conceito brasileiro diferenciado do que seria o pop
internacional. A preocupação em se misturar e criar novos sons do Manguebeat
era recorrente, pois os modelos estrangeiros oferecidos pela mídia nacional não
satisfaziam aqueles artistas. Era necessário a criação, segundo podemos entender
do Manifesto, uma música pop brasileira que se diferenciasse do pop
internacional. Entretanto, a oferta internacional não fora totalmente menosprezada

38
Idem.
39
Cf. Ribeiro, G.Do tédio ao caos. Do caos à lama.
40
Calazans, R. Mangue. A Lama, a parabólica, a rede. P. 283.
20

pelo Manguebeat. Eles souberam fazer uma articulação do global com o local e
produziram novos sons.
A idéia proposta pelo Manguebeat era juntar as riquezas culturais de
Recife e de Pernambuco com as referências globalizadas, principalmente as
musicais, que perpassavam os canais de comunicação de massa. A imagem de
uma antena parabólica enterrada na lama, sugerida pelo manifesto, ilustra esta
idéia de troca e criação de novas informações. Todas as definições da cultura pop
são captadas pela antena parabólica e na lama do manguezal as informações são
reprocessadas gerando novas idéias e novos conceitos.
Um dos momentos, anterior a este a que nosso trabalho se refere, em que
“a relação do Brasil com o mundo foi acionada”, conforme destaca o fragmento
transcrito acima de Rejane Calazans, foi o do modernismo brasileiro –
principalmente quando um dos seus protagonistas, Oswald de Andrade, elaborou
o conceito de antropofagia no Manifesto Antropófago de 1928.
Na década de 1920, a questão da valorização da brasilidade passou a ser
um tema importante na literatura brasileira, sobretudo no tocante à necessidade de
se adequar á modernidade urbana que o Brasil começava a experimentar naqueles
anos. Para alguns pensadores daquele período, o ingresso na modernidade deveria
41
ser mediado pelo caráter nacional. É neste contexto que Oswald de Andrade
publica, em 1924, o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, onde, além de combater os
cânones da poesia parnasiana e bem acabada, sugeria a liberdade (“ver com olhos
livres”) e o incentivo à originalidade nativa da cultura brasileira.
Foi numa viagem à Paris, num jantar com a artista plástica Tarsila do
Amaral, cujo prato principal era carne de rã, que Oswald de Andrade desenvolveu
42
sua principal tese sobre a cultura brasileira. Ele cria o conceito de antropofagia
cultural, no qual nossa cultura devora as referências da cultura estrangeira – e, a
partir dessa incorporação (um corpo que devora o outro / uma cultura devora e
digere a outra), há uma constituição artística autêntica e original.
Oswald de Andrade incentivou abertamente o livre câmbio entre as
culturas, sem a preocupação de estabelecer marcos divisórios entre cultura local e
cultura estrangeira. Nos termos de Oswald, a “originalidade nativa” enquanto
matéria-prima deveria impregnar de forma espontânea e harmônica os produtos
41
Cf. Velloso, M. A brasilidade verde-amarela: nacionalismo e regionalismo paulista
42
Cf. Andrade, Joaquim Pedro de. “O homem do Pau-Brasil”. São Paulo: Embrafilme, 1981.
21

43
exportados pela civilização técnico-industrial e assimilá-los através de um
processo de adaptação ao contexto local.
Em seu Manifesto Antropófago, Oswald propôs que os elementos da
cultura estrangeira fossem deglutidos e reprocessados pelo primitivismo nativo na
forma de um elemento novo. É assim que o autor encontra, nos preceitos estéticos
da antropofagia, possibilidades frutíferas de diálogos interculturais. Seu interesse
estava centrado na produção de uma arte nacional que fosse autônoma e que
tivesse, ao mesmo tempo, potencial de exportação. Para tanto seria necessário,
primeiramente, absorver o elemento estrangeiro, o que se realizaria de forma
crítica e seletiva. O canibalismo (antropofagia) seria uma solução já que este ato,
realizado por algumas tribos indígenas, era feito com o intuito de captar e
absorver as virtudes do inimigo.
A imagem da antena parabólica enterrada na lama, do Manifesto
Manguebeat, mostra que a proposta de Oswald de Andrade ainda se mantém atual
quando o tema discutido é a relação da cultura local com as manifestações da
cultura globalizada. É importante frisar que o debate modernista não ficou restrito
à cidade de São Paulo ou à década de 1920. As idéias não são estáticas e são
disseminadas tanto no espaço quanto no tempo.
As questões sobre a essência cultural brasileira, presentes no Movimento
Manguebeat dos anos 1990 – no tocante ao conceito de antropofagia cultural –,
têm uma relação direta e importantíssima com o Movimento Modernista dos anos
20, ao reatualizarem os debates sobre a relação da cultura local com a cultura
global. Além da imagem, o Manguebeat criou uma sonoridade ímpar a partir de
ritmos proveniente de diversas partes do mundo e do Brasil e, por isso, se fez
original e criativo, assim como o pensamento original de Oswald de Andrade nos
anos 20.
O título deste capítulo, como já foi dito, é a transcrição de uma parte do
Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade. O poeta sugere um
posicionamento crítico na absorção de influências estrangeiras e originalidade na

43
O Brasil dos anos 20, vividos por Oswald de Andrade, era sustentado pela economia cafeeira de
exportação. O próprio Oswald de Andrade era descendente de uma família de cafeicultores do
Oeste paulista. A civilização técnico-industrial referida no texto diz respeito aos grandes centros
urbanos da Europa. Paris, para os intelectuais brasileiros deste momento, era a principal referência
de civilização e de cultura.
22

criação de uma arte nacional. Este ensinamento foi incorporado de forma louvável
por Chico Sciense e a turma do Manguebeat.
23

CONCLUSÃO

A intenção de localizar o Manguebeat no contexto histórico foi a peça


chave para compreendermos a motivação de Chico Sciense na criação do
Movimento. As dificuldades de uma juventude engajada e comprometida com
seu meio social foram expostas quando a proposta da globalização alcançou seu
auge no início dos anos 90. Quando o Manguebeat foi inserido no contexto de um
mundo neoliberal e globalizado uma série de resistências foram observadas. E
dessas resistências, desse choque de ideologias que nasceu o Movimento
Manguebeat – que foi uma resposta ao processo de homogeneização sugerido pela
globalização através da cultura de massas.
Ariano Suassuna criou reservas em relação aos interesses políticos e
econômicos que permeavam a absorção da riqueza cultural do nordeste. O
mercado cultural globalizado criaria uma hierarquia que faria o maracatu e a
literatura de cordel, por exemplo, ocupar lugar inferior na pauta cultural mundial.
Por isso, as produções artísticas culturais nacionais deveriam se adequar
esteticamente à lógica comercial. Podemos considerar que Suassuna fora um
intelectual radical em relação às influências estrangeiras, mas na verdade seu
receio era de que as experiências culturais estrangeiras fossem absorvidas de
forma alienante.
Entretanto, a saída do Movimento Manguebeat foi a de reordenar a
estrutura oferecida pela cultura de massas. A revolução de Chico Sciense foi
realizada de acordo com que Milton Santos chamou de “a revanche da periferia”.
Quando Chico Sciense misturou elementos da cultura pop (originário dos países
centrais) com referenciais da tradição cultural do nordeste, sua intenção era
inverter a lógica da globalização. Sciense utilizou-se de métodos que foram
originalmente produzidos para oprimir ao seu favor. Assim, podemos afirmar que
o contato de Chico Sciense com as propostas culturais dos países centrais ocorreu
de forma crítica e criativa.
A definição clássica de revolução não se adequaria ao que fora sugerido
pelo Manguebeat já que o desenvolvimento das tecnologias oriundos dos projetos
de globalização foi utilizado, ou reapropriado pelos mangueboys. E esta foi a
24

maneira que Manguebeat encontrou para driblar a homogeneização cultural


sugerida pela cultura de massas.
Podemos dizer que o Manguebeat seguiu a risca a proposta de
antropofagia de Oswald de Andrade – absorver e digerir criticamente todas as
propostas culturais. A percepção do Manguebeat como resultado de um processo
de mistura critica, por sua vez, também está remetida à ideologia do Manifesto
Antropófago. Chico Sciense come o ‘inimigo’ para dele extrair o seu melhor, sem
desprezar o que já tem de melhor.

Outros exemplos são explicitados no filme de Silvio Tendler sobre Milton


Santos (“Encontro com Milton Santos ou o Mundo Global visto do lado de cá”,
2007). No filme a revolução se faz de uma maneira particular. Foi possível prever
formas de reação das classes populares, não mais nos moldes das guerrilhas
armadas. De posse de uma microcâmera é possível produzir informação
alternativa que lançada na grande rede nos permite mobilizar gente do mundo
inteiro em prol de uma causa coletiva.
“Sciense opera pela incorporação criativa dos elementos étnicos e estéticos
marginalizados, no momento em que a nação deixa de ser o norte das produções culturais
subalternas e a idéia de periferia passa a referenciar as propostas de desvirtuamento das
imposições das culturas hegemônicas. (...) Ele se coloca então como porta-voz dos
anseios das culturas periféricas por auto-representação. Considerado o cenário político-
cultural traçado pelas especificidades do cosmopolitismo contemporâneo, sua criação
parte de uma realidade híbrida, fortemente marcada pelo avanço das redes de
comunicação, para atingir a estetização e a politização do cotidiano por meio da
linguagem pop” 44
A idéia do Manguebeat, ao propor a unificação de duas realidades opostas
(cultura local versus cultura de massas), era colocar os ritmos regionais num lugar
de destaque. As expressões musicais populares ocupam um lugar de destaque
tanto em seu valor original, quanto como importante ingrediente sonoro de
misturas. Chico Sciense não tinha como finalidade gerar uma hierarquia ou até
mesmo o submergir da essência da cultura popular nordestina. Sua intenção era
fazer com que surgissem novos admiradores para o maracatu, o forró, o coco, a
ciranda, a literatura de cordel.
Minha paixão pelo nordeste e todas as suas formas de expressão é prova
de que Chico Sciense realizou a sua missão.

44
Mattos, A. O encontro do Velho do Pastoril com Mateus na Manguetown ou As tradições
populares revisitadas por Ariano Suassuna e Chico Sciense. P. 12.
25

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28

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Mundo Livre S/A. Samba esquema noise. Banguela Records, 1994.


29
30

ANEXO I – MANIFESTOS

1º Manifesto do Movimento Manguebeat – Caranguejos com cérebro /


Fred Zeroquatro

Mangue – O conceito

Estuário. Parte terminal de um rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em
suas margens se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou
subtropicais inundadas pelos movimentos dos mares. Pela troca de matéria
orgânica entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre os
ecossistemas mais produtivos do mundo.

Estima-se que duas mil espécies de microorganismos e animais vertebrados e


invertebrados estejam associados à vegetação do mangue. Os estuários fornecem
áreas de desova e criação para dois terços da produção anual de pescados do
mundo inteiro. Pelo menos oitenta espécies comercialmente importantes
dependem dos alagadiços costeiros.

Não é por acaso que os mangues são considerados um elo básico da cadeia
alimentar marinha. Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas, inimigos das
donas-de-casa, para os cientistas os mangues são tidos como os símbolos de
fertilidade, diversidade e riqueza.

Manguetown - A cidade

A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada, é cortada por seis rios.
Após a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex) cidade "maurícia" passou
a crescer desordenadamente as custas do aterramento indiscriminado e da
destruição dos seus manguezais.

Em contrapartida, o desvairio irresistível de uma cínica noção de "progresso", que


elevou a cidade ao posto de "metrópole" do Nordeste, não tardou a revelar sua
31

fragilidade.

Bastaram pequenas mudanças nos "ventos" da história para que os primeiros


sinais de esclerose econômica se manifestassem no início dos anos 60. Nos
últimos trinta anos a síndrome da estagnação, aliada à permanência do mito da
"metrópole", só tem levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos
urbano.
O Recife detém hoje o maior índice de desemprego do país. Mais da metade dos
seus habitantes moram em favelas e alagados. Segundo um instituto de estudos
populacionais de Washington, é hoje a quarta pior cidade do mundo para se viver.

Mangue - A cena

Emergência! Um choque rápido, ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser


médico pra saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é
obstruir as suas veias. O modo mais rápido também, de infartar e esvaziar a alma
de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O
que fazer para não afundar na depressão crônica que paraliza os cidadãos? Como
devolver o ânimo deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples!
Basta injetar um pouco da energia na lama e estimular o que ainda resta de
fertilidade nas veias do Recife.

Em meados de 91 começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade


um núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo é engendrar um
"circuito energético", capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a
rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo, uma antena
parabólica enfiada na lama.

Os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em: quadrinhos, tv


interativa, anti-psiquiatra, Bezerra da Silva, Hip Hop, midiotia, artismo, música de
rua, John Coltrane, acaso, sexo não-virtual, conflitos étnicos e todos os avanços da
química aplicada no terreno da alteração e expansão da consciência.
32

2º Manifesto do Movimento Manguebeat – Quanto Vale uma Vida /


Fred Zeroquatro e Renato Lins.

I - LONGA VIDA AO GROOVE!

Os alquimistas estão chorando. A indignação ruidosa de Lúcio Maia com a


ferocidade carniceira da imprensa nos faz lembrar que nem tudo tem que ser
movido a cinismo e oportunismo no - cada vez mais - cínico e vulgar circuito pop.
Antes de mais nada, salve Lúcio, Jorge, Dengue, Gilmar, Toca, Gira e Pupilo.
Salve Paulo André e longa vida ao Nação Zumbi, com seu groove imbatível, mix
epidêmico e urgente de química e magia que cedo ou tarde vai varrer o mundo! A
primeira vez que vimos Chico juntando a Loustal com o Lamento Negro (o
embrião do que seria a Nação Zumbi, ainda no início de 91), comentamos
arrepiados, eu e Renato L.:"não importa que estejamos no fim do mundo e sem
dinheiro no bolso; não tem errada, não há nada no mundo que possa deter esse
som!" Na nossa ficha, constava a produção de vários programas de Rock na
cidade, onde nos esforçávamos para mostrar sons novos e interessantes de todos
os cantos do mundo. E não havia dúvida de que naquele momento estávamos
diante de algo absurdamente novo e irresistível. Começamos imediatamente a
viajar num conceito capaz de colocar o Recife no mapa. É claro que houve
momentos nos últimos anos em que chegamos a pensar que talvez tivéssemos
ajudado a criar uma espécie de monstro incontrolável. Mas hoje sabemos que
agimos bem, não poderíamos agir de outro modo.
-E agora, mangueboys?
Chico era referência e inspiração para muita gente, talvez para toda uma geração
de recifenses. E a perda para a Nação Zumbi é irreparável em termos de carisma,
energia vocal, gestual, etc. Ninguém questiona isso. Mas o que muita gente
esquece é que a fórmula criada por Chico tinha uma base muito sólida em termos
de cozinha, acompanhamento, groove. A maioria das pessoas desconhece alguns
fatos. Quando eu conheci Francisco França, ele era o lado mais extrovertido da
mais nova dupla do barulho da cidade. Chico e Jorge eram inseparáveis como
unha e carne, egressos da "Legião Hip Hop", que reunia no final dos anos 80,
33

alguns dos melhores dançarinos e djs que o Recife já conheceu ( alguém aí já viu
Jorge Du Peixe dançando "street"? A galera que hoje em dia ensina funk nas
academias de dança não daria nem pro caldo...).
Jorge sempre foi um pouco mais tímido, mas não menos engraçado, e os dois se
completavam em termos de gosto, idéias, visão e criatividade. Chico sempre teve
mais iniciativa e era, como todos sabemos, um letrista formidável. Mas alguém aí
se lembra quem é o autor da letra do clássico "Maracatu de Tiro Certeiro"? Isso
mesmo, Jorge Du Peixe...
Quanto a Lúcio Maia, qualquer um que acompanhe a Guitar Player, sabe que é
cada vez maior o número de pessoas que o consideram um dos mais talentosos e
ecléticos guitarristas brasileiros, uma verdadeira revelação dos últimos tempos.
Dengue, então, é aquele baixista contido, discreto, mas super-eficiente. Desde os
tempos do Loustal, ele sempre conseguiu encaixar a levada perfeita para o estilo
fragmentado dos versos de Chico. E quanto aos tambores e à bateria, nem é
preciso comentar. Não se via, no rock and roll, uma engrenagem tão potente e
envenenada desde a morte de John Bonham.
Quando toda a crítica brasileira caiu de quatro sob o impacto avassalador do "Da
Lama ao Caos", houve no Recife quem apostasse que Chico despontaria em
carreira solo já no segundo disco. Argumentavam que, por um lado Chico tinha
luz própria de sobra e por outro a fórmula do Nação Zumbi não renderia mais
nada interessante, pois já teria se esgotado. Eu e Renato torcemos para que
acontecesse o contrário, para que Chico não se rendesse à vaidade pessoal e
injetasse todo gás possível no fortalecimento da banda. Ele não decepcionou,
mostrou que não era nem um pouco ingênuo ou deslumbrado e que sabia muito
bem do que precisava para se manter no topo. O resultado foi o brilhante
"Afrociberdelia", um trabalho coletivo - com Lúcio mais ativo do que nunca do
que nunca na produção.
Portanto, se existe uma banda que tem total autoridade e potencial para ocupar
condignamente o lugar que o inesquecível Chico Science deixou vago no topo,
essa banda é sem dúvida a Nação Zumbi. Por sinal, o próprio Chico nem cogitava
em dar por esgotado o formato da banda, tanto que já planejava entrar com os
brothers no estúdio ainda este ano para gravar o terceiro disco. LONGA VIDA
34

AO GROOVE!!!

II- BUSCANDO RESPOSTAS

"Something is happening here, but you don´t know what it is. Do you, Mr Jones?"
Essa frase de Bob Dylan me vem à mente sempre que eu penso no tom de alguns
comentários publicados nos maiores jornais do país a respeito da morte de Chico.
Talvez com intenção de pintar o fato com as cores mais chocantes, expurgando,
assim, a dor e a revolta da perda, as matérias acabavam invariavelmente emitindo
um tom derrotista ou até desolador.
Se o caso é especular sobre o que pode acontecer daqui em diante, o mais
oportuno seria tentar identificar na história do Pop, fatos ou situações semelhantes
que possam servir de exemplos. Em se tratando de movimentos de cultura Pop;
gerados em focos isolados; situados na periferia do mercado; e com
reconhecimento mundial, os fenômenos mais correlatos ao Mangue Beat que se
tem notícia - ainda que os estágios de desenvolvimentos sejam distintos - são a
Jamaica pós-Bob Marley e Salvador pós-Tropicalismo.
Sobre Salvador, minha experiência como mangueboy me diz que o Tropicalismo
não surgiu lá por acaso. Nada no mundo poderia ter impedido o caldo cultural da
cidade de gerar posteriormente ( e na sequencia ) os Novos Baianos, A Cor do
Som, os trios elétricos, a Axé Music, o Samba - Reggae, a Timbalada, etc.
Também não foi por milagre que a Jamaica se tornou berço do Calipso, do Ska,
do Reggae, do Dub, do Raggamuffin e de todas as variantes do Dancehall que
hoje, quase 20 anos depois da morte de Marley, contaminam as paradas de
sucesso de todo o mundo.
Esses dois fenômenos foram condicionados por combinações específicas de
fatores geográficos, econômicos, políticos, sociológicos, antropológicos, enfim,
culturais, cuja história eu não seria capaz de analisar. Mas em se tratando de focos
isolados que a partir de um determinado estímulo geram uma reação em cadeia
capaz de contaminar toda a história futura de uma comunidade, meu depoimento
talvez possa ser útil.

III- UMA VISITA MUITO ESPECIAL


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Lembro-me muito bem do nervosismo que tomou conta da cidade quando, em 93


(logo após o primeiro Abril Pro Rock), a diretoria da Sony anunciou que mandaria
um representante ao Recife para contratar Chico Science... Fun! Fun! Zoeira
Total! Diversão a qualquer custo, e a mais barulhenta possível! Esse havia sido o
nosso lema quando, dois anos antes, sentindo o descompasso - o fundo do poço, o
infarto iminente - , resolvêramos tentar de tudo para detonar adrenalina no coração
deprimido da cidade. Depois de vários shows e eventos muito bem sucedidos, e
do manifesto "Caranguejos com Cérebro" ( que transformou, de uma hora para
outra centenas de arruaceiros inocentes em "mangueboys" militantes ), parecia
que a cidade realmente começava a despertar do coma profundo em que esteve
mergulhada desde o início da guerra dos 80.
Parêntese: não é exagero. Segundo os levantamentos mensais do DIEESE, Recife
conseguiu manter sem muito esforço a impressionante e isolada posição de
campeã nacional do desemprego e da inflação por nada menos que dez anos
seguidos!!! Imaginem o efeito devastador que uma situação como essa pode
provocar na alma de uma comunidade com mais de 400 anos de história e que só
neste século havia gerado nomes da dimensão de Manuel Bandeira, Gilberto
Freyre, Josué de Castro e João Cabral de Melo Neto. Para nós, que mal havíamos
saído da adolescência só restavam duas saídas: tentar uma bolsa na Europa ou
ganhar as ruas...
Então, a chegada da Sony representava uma espécie de prêmio coletivo. O
significado simbólico era que finalmente podia estar se abrindo um canal de
comunicação direta com o mercado mundial, como os caranguejos do asfalto
haviam almejado em seu primeiro manifesto. Para todos os agentes e operadores
culturais que viam seu talento e potencial atrofiados pela desmotivação, era o
estímulo concreto que faltava. Afinal, queiram ou não, discos pop lançados por
multinacionais movimentam várias áreas de expressão ao mesmo tempo: moda,
fotografia, design, produção gráfica, vídeos, relações públicas, assessoria,
imprensa, marketing, música,etc.
Daí em diante, pode-se dizer que teve início um efetivo "renascimento" recifense.
Todo mundo gritou mãos à obra! e partiu para o ataque. As ruas viraram
passarelas de estilistas independentes; bandas pipocaram em cada esquina; palcos
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foram improvisados em todos os bares; fitas demo e clipes novos eram lançados
toda semana, e assim por diante, gerando uma verdadeira cooperativa multimídia
autônoma e explosiva, que não parava de crescer e mobilizar toda a cidade. De
headbangers a mauricinhos, de punks a líderes comunitários, de surfistas a
professores acadêmicos, ninguém ficou de fora. Para se ter uma idéia, a frase "
computadores fazem arte, artistas fazem dinheiro" ( Mundo Livre SA ) virou tema
de redação de vestibular de uma faculdade local.

IV - MANGUETOWN, 5 ANOS DEPOIS

O renascimento segue de vento em popa. A noite mais concorrida do último Abril


Pro Rock foi a que reuniu três bandas locais. Mais de cinco mil pessoas pagaram
ingresso e enfrentaram uma chuva intensa para aplaudir e cantar junto com
Mundo Livre SA, Mestre Ambrósio e Chico Science e Nação Zumbi. O festival
"Viva a Música", realizado em setembro passado, reuniu mais de 50 novas
bandas. O disco de estréia da campeã, Dona Margarida Pereira e os Fulanos, está
em fase de gravação. O programa Mangue Beat (Caetés FM 99.1) ocupa há 2 anos
os primeiros lugares de audiência, tocando fitas demo e lançamentos locais, além
de novidades de todos os cantos do planeta. O "Manguetronic", um programa de
rádio idealizado especialmente para a Internet, vem se firmando como um dos
sites mais acessados do Universo on Line. Os últimos cds do Chico Science e
Nação Zumbi e do Mundo Livre SA e a estréia do Mestre Ambrósio figuraram na
lista dos dez melhores do ano da revista Showbizz. Estão em fase de finalização
os aguardados albuns de estréia das bandas Eddie e Devotos do Ódio. O Abril pro
Rock 97 entrou pela primeira vez no calendário de eventos oficiais do Estado,
ganhando assim uma ampla divulgação nacional e uma infra-estrutura mais
organizada. A estréia em longa-metragem dos cineastas pernambucanos Lírio
Ferreira e Paulo Caldas - o filme "O Baile Perfumado", cuja trilha é assinada por
Chico Science, Siba (do Mestre Ambrósio) e Zero Quatro - ganhou vários
prêmios, entre eles o de melhor filme, no último Festival de Cinema de Brasília. O
estilista Eduardo Ferreira já recebeu vários prêmios nas últimas edições do
Phytoervas Fashion. O Mundo Livre S.A. acaba de fazer 4 shows e um clipe no
México, devendo participar de vários festivais europeus no segundo semetre...
37

(Pausa para respirar)


Temos como objetivo imediato pressionar a Prefeitura do Recife para tirar do
papel e colocar no ar a rádio Frei Caneca FM, uma emissora sem fins lucrativos
cujo orçamento para 97, ao que parece, já foi aprovado pela CÂmara Municipal.
Afinal, o único e mais difícil obstáculo que ainda não superamos foi o das rádios
comerciais. Sabemos que na Jamaica e em Salvador foi preciso o uso até de ações
violentas para pressionar os disc - jóckeis. No estágio atual, não achamos que
recursos sejam necessários. O Popspace não é invulnerável e a história está do
nosso lado.
Quem acompanhou no Recife as últimas homenagens a Chico, sentiu a força de
um compromisso coletivo. Hoje cada recifense tem no olhar um pouco de
guerrilheiro da Frente Pop de Libertação. E o recado que queremos enviar para o
mundo não é muito diferente daquele que nos mandam as comunidades indígenas
de Chiapas- que têm no subcomandante Marcos o seu porta-voz. VIVA
SANDINO! VIVA ZAPATA! VIVA ZUMBI! A utopia continua...
"- Quanto vale a vida de um homem, em quanto cada um avalia a sua própria
vida, a troco de quê está disposto a mudá - la? Nós avaliamos muito alto o preço
de nossas vidas. Valem um mundo melhor, nada menos. Homens e mulheres,
dispostos a dar suas vidas, têm direito a pedir tanto quanto valem. Há os que
avaliam suas vidas por uma quantidade de dinheiro, mas nós a avaliamos pelo
mundo, esse é o custo do nosso sangue..." (Subcomandante Marcos).
38

Manifesto Antropófogo – Oswald de Andrade

Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.


Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos
os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupi, or not tupi that is the question.
Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.
Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.
Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama.
Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa.
O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o
mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano
informará.
Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a
hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país
da cobra grande.
Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca
soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no
mapa-múndi do Brasil.
Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.
Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da
vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar.
Queremos a Revolução Caraiba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação
de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria
sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.
A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.
Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre.Montaigne.
O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à
Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de
Keyserling. Caminhamos..
Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos
Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.
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Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.


Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar
comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe : ponha isso no papel mas sem muita lábia.
Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em
Portugal e nos trouxe a lábia.
O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo.
Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de
meridiano. E as inquisições exteriores.
Só podemos atender ao mundo orecular.
Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia.
Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem.
Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do
pensamento que é dinâmico. O indivíduo vitima do sistema. Fonte das injustiças
clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores.
Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.
O instinto Caraíba.
Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos
parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.
Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.
Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do
Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons
sentimentos portugueses.
Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.
Catiti Catiti
Imara Notiá
Notiá Imara
Ipeju*
A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens
morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o
auxílio de algumas formas gramaticais.
Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia
do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comi-o.
Só não há determinismo onde há mistério. Mas que temos nós com isso?
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Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não


datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César.
A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a
maquinaria. E os transfusores de sangue.
Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.
Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um
antropófago, o Visconde de Cairu: – É mentira muitas vezes repetida.
Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que
estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.
Se Deus é a consciênda do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é
a mãe dos vegetais.
Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a
ciência da distribuição. E um sistema social-planetário.
As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra
os Conservatórios e o tédio especulativo.
De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia.
O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas+ fala
de imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa.
É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à idéia de Deus. Mas a
caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci.
O objetivo criado reage com os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que
temos nós com isso?
Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a
felicidade.
Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de
Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.
A alegria é a prova dos nove.
No matriarcado de Pindorama.
Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.
Somos concretistas. As idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças
públicas. Suprimarnos as idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos
sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas.
Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI.
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A alegria é a prova dos nove.


A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição
permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modusvivendi
capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em
totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites
conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da
vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá
não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto
antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor.
Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A
baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a
calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra
ela que estamos agindo. Antropófagos.
Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema, – o
patriarca João Ramalho fundador de São Paulo.
A nossa independência ainda não foi proclamada. Frape típica de D. João VI: –
Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça!
Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o
rapé de Maria da Fonte.
Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade
sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do
matriarcado de Pindorama.

OSWALD DE ANDRADE
Em Piratininga
Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha
(Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928.)
42

ANEXO II – MÚSICAS

Um Passeio no Mundo Livre – Chico Sciense & Nação Zumbi

"Um passo à frente


E você não está mais no mesmo lugar"
Eu só quero andar
Nas ruas de Peixinhos
Andar pelo Brasil
Ou em qualquer cidade
Andando pelo mundo
Sem ter sociedade
Andar com meus amigos, e eletricidade
Andar com as meninas
Sem ser incomodado
Eu só quero andar nas ruas do Brasil
Andar no mundo livre
Sem ter sociedade
Andando pelo mundo
E todas as cidades
Andar com os meus amigos
Sem ser incomodado
Andar com as meninas
E eletricidade
Segura essa levada, segura o maracatu
Segura essa levada, segura o maracatu

Manguebit – Mundo Livre S/A

Sou eu transistor
Recife é um circuito
O país é um chip
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Se a terra é um radio
Qual é a música?
Manguebit
Um vírus contamina pelos olhos, ouvido
Línguas narizes fios elétricos
Ondas sonoras, vírus conduzidos a cabo
UHF, antenas agulhas
Antenas agulhas
Mangue manguebit
Eletricidade alimenta
Tanto quanto oxigênio
Meus pulmões ligados
Informações entram pelas narinas
E a cultura sai mal hálito
Ideologia
Mangue manguebit
Meus pulmões ligado
Se aterra é um radio
Qual é a musica
Manguebit
Manguebit

Concorra a um carro – Mundo Livre S/A

Não adianta
Não há como escapar
Ao mundo livre
Entramos na disputa pra lhe capturar
Porque
O mercado vive em guerra
Lidere ou suma, vença ou morra
No submundo do consumo
Não há lugar para escrúpulos
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Tem que ser um bom produto


Pra sobreviver tem que se reciclar
Cedo ou tarde
Você vai se entregar
Ao mundo livre
Não adianta, não há como escapar
Porque
O mercado é uma guerra
Lidere ou suma, vença ou morra
Na sociedade de consumo
A seleção é desumana
Tem que ser um bom produto
E a grande intenção é monopolizar
-"E atenção! Aqui à sua frente
A grande chance de sua vida
Você ainda pode concorrer em uma sensacional promoção De lançamento
Com sua fé cabine dupla zero km"
Concorra a um caro do ano!
Essa é a voz do mundo livre

Antene-se – Chico Sciense & Nação Zumbi

É só uma cabeça equilibrada em cima do corpo


Escutando o som das vitrolas, que vem dos macambos
Entulhados à beira do Capibaribe
Na quarta pior cidade do mundo
Recife cidade do mangue
Incrustada na lama dos manguezais
Onde estão os homens caranguejos
Minha corda costuma sair de entrada
No meio das ruas e em cima das pontes
É só uma cabeça pendurada em cima do corpo
Procurando antenar boa vibrações
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Procurando antenar boa diversão


Sou,Sou,Sou,Sou,Sou Mangueboy
Recife cidade do mangue
Onde a lama é a insurreição
onde estão os homens caranguejos
Minha corda costuma sair de andada
No meio da rua, em cima das pontes
É só equilibrar sua cabeça em cima do corpo
Procure antenar boas vibrações
Procure antenar boa a versão
Sou, Sou, Sou, Sou, Sou Mangueboy

Cidadão do Mundo – Chico Sciense & Nação Zumbi

A estrovenga girou
Passou perto do meu pescoço
Corcoviei, corcoviei
Não sou nenhum besta seu moço
A coisa parecia fria
Antes da luta começar
Mas logo a estrovenga surgia
Girando veloz pelo ar
Eu pulei, eu pulei
E corri no coice macio
Só queria matar a fome
No canavial da beira do rio
Eu pulei, eu pulei
E corri no coice macio
Só queria matar a fome
No canavial da beira do rio
Jurei, jurei
Vou pegar aquele capitão
Vou juntar a minha nação
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Na terra do maracatu
Dona Ginga, Zumbi, veludinho
E segura o baque do mestre salu
Eu vi, eu vi
A minha boneca vodu
Subir e descer no espaço
Na hora da coroação
Me desculpe, senhor me desculpe
Mas esta aqui é a minha nação
Daruê malungo, Nação Numbi
É o zum zum zum da capital
Só tem caranguejo esperto
Saindo deste manguezal
Daruê malungo, Nação Zumbi
É o zum zum zum da capital
Só tem caranguejo esperto
Saindo deste manguezal
Eu pulei, eu pulei
E corria no coice macio
Encontrei o cidadão do mundo
No manguezal da beira do rio
Eu pulei, eu pulei
E corria no coice macio
Encontrei o cidadão do mundo
No manguezal da beira do rio
Josué!
Eu corri, saí no tombo
Se não ia me lascá
Desci a beira do rio
Fui parar na capitá
Quando vi numa parede
Um penico anunciá
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É liquidação total
O falante anunciou: Ih!
Tô liquidado
O pivente pensou
Conheceu uns amiguinhos
E com eles se mandou, é!
Aí meu velho
Abotoa o paletó
Não deixe o queixo cair
E segura o rojão
Vinha cinco maloqueiro
Em cima do caminhão
Pararam lá na igreja
Conheceram uns irmãos
Pediram pão pra comer
Com um copo de café
Um ficou robando a missa
E quatro deram no pé
Chila, relê, domilindró...

Monólogo ao pé do ouvido – Chico Sciense & Nação Zumbi

Modernizar o passado
É uma evolução musical
Cadê as notas que estavam aqui?
Não preciso delas!
Basta deixar tudo soando bem aos ouvidos
O medo dá origem ao mal
O homem coletivo sente a necessidade de lutar
O orgulho, a arrôgancia, a glória
Enche a imaginação de domínio
São demônios os que destroem o poder
Bravio da humanidade
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Viva Zapata!
Viva Sandino!
Viva Zumbi
Antônio conselheiro!
Todos os panteras negras
Lampião sua imagem e semelhança
Eu tenho certeza eles também cantaram um dia

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