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http://portalsaude.net/at/veridiana_fraguas.htm
Este é um projeto que tem afinidade com a proposta que históricamente deu
origem ao acompanhamento terapêutico, na medida em que o processo de
inclusão promove uma maior disponibilidade para a convivência com a
loucura, ao mesmo tempo em que, acolhendo estas crianças numa escola
regular, lhes é conferido um lugar social (Kupfer, 1997).
Quando o conheci, Pedro tinha cinco anos e quase não falava. Não tomava a
iniciativa da fala a não ser que fosse interpelado por alguém e, mesmo nestes
casos, respondia apenas com uma palavra. Não apresentava falas próprias e
não usava o pronome "eu" para referir-se a si mesmo. Ele preferia brincar
sozinho a entrar em contato com as outras crianças. Passava muito tempo
entretido consigo mesmo, fazendo movimentos repetitivos, como bater as
mãos ou algum objeto no chão ou na parede.
No entanto, apresentava um tipo de produção linguageira que lhe conferia um
certo status dentro da escola: Pedro cantava músicas. Ele tinha um vasto
repertório e, muitas vezes, cantava músicas que se relacionavam com
determinados contextos. Um exemplo foi o dia em que conversávamos com as
crianças sobre a falta de verbas do governo para manter os programas infantis
da T.V. Cultura e, em seguida, Pedro cantou: "Ei , você aí, me dá um dinheiro
aí, me dá um dinheiro aí..." Este é apenas um entre outros exemplos...
Além disso, toda vez que eu percebia que a música cantada por ele tinha
alguma ligação com o que conversávamos ou com alguma brincadeira que
fazíamos, restituía a Pedro o sentido que me parecia ter a sua cantoria, ou seja,
eu lhe dizia que entendia aquela manifestação como uma tentativa de ele
compartilhar conosco aquele momento. A música tornou-se, portanto, um
elemento de ligação entre eu, ele e o grupo.
A mãe de Pedro sempre atrasava cerca de meia hora para vir buscá-lo na
escola e Pedro ficava muito triste com isso. Notei que ficava angustiado toda
vez que se aproximava a hora de ir para casa. Um dia estávamos fazendo uma
atividade física e de repente Pedro parou, sentou-se e começou a chorar.
Perguntei a ele o que estava acontecendo, e ele me disse: "Eu quero a
mamãe". Mostrei a ele o meu relógio e disse que daqui a pouco acabaria a
aula e a mamãe viria buscá-lo. Na hora da saída, o tempo foi passando e a mãe
de Pedro não chegava. Ele começou a chorar, perguntei a ele o que estava
acontecendo e ele apontou para o meu relógio. Entendi que ele estava triste
devido ao atraso de sua mãe. Disse a ele que não se preocupasse, ela estava
demorando, mas viria buscá-lo. Então ele se acalmou e logo ela chegou.
A partir do momento em que Pedro passou a falar o que queria e o que sentia,
mudou a forma como ele era visto em casa e na escola. Com isso, as crianças
começaram a se interessar mais por Pedro. Buscavam aproximar-se dele, mas
eu notava que, quando queriam falar com ele, primeiro se dirigiam a mim. Eu
então procurava estimulá-las a se dirigirem a ele, já que não era comigo que
queriam falar!
Era a véspera do que seria o meu último dia de trabalho na escola. Pedro
brincava com um caminhão de brinquedo e cantava assim: "Eu hoje fui na
praça e encontrei um caminhão...". Pela melodia, eu pude identificar que a
música que ele cantava era uma "versão" de "A Praça". Na verdade ele
cantava o trecho que na música corresponde ao verso "Hoje eu acordei com
saudades de você". Ele cantava apenas aquele trecho repetidas vezes. Decidi
continuar a canção e então chegamos ao trecho mais significativo:
"A mesma praça, o mesmo banco, as mesmas flores, o mesmo jardim, tudo é
igual, mas estou triste, porque não tenho você perto de mim."
Neste dia, uma outra profissional que iria me substituir estava junto conosco
(isso faz parte do procedimento de "passagem" de um A.T. para outro) e eu fui
embora mais cedo. Pedro ficou em companhia de sua nova A.T.. No dia
seguinte a nova A.T. me conta que, num determinado momento, Pedro
começou a chorar. Então ela perguntou a ele: A.T. : "O que foi Pedro ?"
Gostaria de enfatizar algo desta distinção que faz sentido pensar em relação ao
trabalho desenvolvido junto a Pedro. Trata-se de um trabalho cuja ênfase
estava na construção de algo que ainda não estava lá, e não num trabalho de
recuperar algo já conquistado e perdido posteriormente.
Uma outra peculiaridade deste trabalho, apontada pelo mesmo autor, seria que
no caso do acompanhamento terapêutico com crianças "se faz necessário
lançar mão não só de expedientes terapêuticos como também pedagógicos"
(Antonucci, 1994, p.551). Ele entende como "conduta terapêutica" do A.T.
toda conduta que tem como conseqüência modificações no funcionamento
mental do paciente, e como "conduta pedagógica" toda conduta que visa a
adaptação ao contexto social.
A leitura do texto de Antonucci me fez questionar o caráter de minhas
intervenções junto a Pedro, seriam condutas "terapêuticas" ou "pedagógicas"?
Que funções cumpri junto a ele e quais os seus efeitos?
Laznik-Penot (1997) relata sua experiência clínica com três crianças autistas,
e coloca como algo fundamental neste trabalho a escuta atenta aos enunciados
destes pequenos sujeitos. Ela coloca que se tomarmos como mensagem as
produções linguageiras destas crianças, ou seja, se pudermos atribuir algum
sentido a estas produções, isso terá como efeito, a posteriori, o
reconhecimento, pela criança, de que ela é o agente dessa fala. Aqui a autora
está se referindo a algo essencial no processo de constituição do sujeito.
Uma observação: seria importante marcar que durante este período em que eu
trabalhava com Pedro ele não estava se submetendo a nenhum tipo de
tratamento (medicamentoso ou psicológico).
Referências Bibliográficas
Antonucci, R., "Terapias Ressocializantes: o acompanhante terapêutico". In:
Assunção Jr., F.B., Psiquiatria da Infância e da Adolescência. São Paulo,
Livraria Editora Santos, 1994.
Assali, A.M. & Rizzo, C. & Abbamonte, R.M. & Amâncio, V., "O
acompanhamento terapêutico na inclusão de crianças com distúrbios globais
do desenvolvimento". In: A Psicanálise e os impasses da educação. Anais do I
Colóquio do Lugar de Vida / LEPSI, 1999.
Cenamo, A. C. V. & Prates e Silva, A. L. B. & Barretto, C.D., "O Setting e as
funções no acompanhamento terapêutico. O caso Júlia". In: Equipe de
Acompanhantes Terapêuticos do Hospital dia A CASA, A rua como espaço
clínico. São Paulo, Escuta, 1991.
Fernandes, M. H., "Acompanhamento Terapêutico. Relato de um caso
clinico". In: Equipe de Acompanhantes Terapêuticos do Hospital dia A
CASA, A rua como espaço clínico. São Paulo, Escuta, 1991.
Kupfer, M.C.M., "Educação terapêutica: o que a psicanálise pode pedir à
educação". In: Estilos da Clinica: Revista sobre a infância com problemas.
São Paulo, Instituto de Psicologia da USP, ano 2, número 2.
Laznik-Penot, M.C., Rumo à palavra - Três crianças autistas em psicanálise.
São Paulo, Escuta, 1997.
Notas
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