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poemas em carne e osso.

joão ayres

1 eis que o mesmo vento/


prega uma peça quando o chuto
para longe
onde longe nada há
não vou mais para casa
para desencontrar o meu rosto
minha matéria é o chute
sem rumo como as tempestades de ocasião
posso ruir e ruir e ruir
no interior de um cubículo ordinário
para arrancar das horas o que resta da palavra tempo
para chutar e chutar novamente os bagos
de um guerreiro qualquer morto há dois dias
quando sei que vou sentir tanta dor
para nada fazer em minha preguiça de cão morto
minha matéria é o chute
o chute de quem chuta o que tem que ser chutado
o chute chute qualquer em qualquer um
em toda e qualquer batalha
quando sempre preferia os escudos de couro
como um golpe aplicado na genitália
para descobrir os mistérios dos quatro pontos cardeais
pois eu gosto de quem chuta e chuta e chuta e chuta
o tal verbo chutar em chutar e chutar e chutar
de quem chuta o vento quando nada conquista
e sorri aliviado quando nada vem.

2 um alma morta
rasga o fim do mundo
para encontrar o nada
que pulsa no além qualquer
de costas para o sol
que se entrega ao inominável das chamas
para arder intensamente
no interior de uma palavra esquecida.

um alma morta pode ser qualquer um


um quase-nada ou quase-ninguém como esta sombra
um borra-botas que nunca disse coisa alguma
que pisa numa ferida qualquer aberta no cemitério
no túmulo distante de um parente ordinário
prestes a retornar como as cinzas das horas
no interior do interior da palavra forno
no interior do interior da palavra crematório
que se despede como um susto numa vala imunda.

um alma morta
rasga o fim do mundo
para cuspir mais sangue
no interior destas minhas veias senis
para apodrecer como qualquer coisa imprestável
como um cano enferrujado
como uma cadeira sem os tais pés
como esta escova sem cerdas
nos restos daqueles cabelos cancerígenos daquele vulto
que faz questão de pentear e pentear
a catástrofe inevitável das termópilas
apenas e não mais e tão somente
os trezentos homens que ali pelejaram
neste quarto de hospital desfiladeiro
procuro o não lugar
como um alma morta
qualificado no escuro
ou mesmo no interior da palavra penumbra
este tal alma morta que definha como um nada
personificado e avesso aos ditames da concordância
nominal por excelência
que é o que não pode agora ser
neste quarto que se despede
no interior da palavra cama
no interior da palavra alma
no interior do interior do interior
no interior do interior do interior
visto de fora sem dentro de lugar algum.

nunca fui um
nunca fui plural em um
nunca fomos nada em um qualquer
quando tudo parecia ser o que não era
para juntar os cacos
para juntar os trapos
há sempre o resto daquilo que sumiu
sem deixar vestígio nem marca de batom barato
ao ignorar o rosto deste agora
que está a se banhar numa alma esfumaçada
reluzindo no sopro da discórdia
para entortar a mente
ao caminhar sempre na direção contrária
na desarmonia do cosmos
nesta matéria sem rumo
neste um que se vai quando mordo os lábios.

nunca fui um
nem mesmo menos do que um
nem mesmo isto que possa ser o que não é
sempre quando todas as coisas estão portas
que se abrem ao sabor dos ventos de ocasião
não há janela
no ventre desta mãe assassina
que afoga a cria no rio escuro
para que os deuses lhe concedam a honra desta dança
que rege o movimento dos astros
que engolem constelações inteiras
para ruminar a palavra absorto em perpétuo delírio
como um relógio centenário emudecido na parede.

3 nota dissonante em carne-viva


digo que o ponto
agora me sufoca
lamento constatar
o fato de que a chuva não pode ser controlada
nestas palavras macilentas
nesta sintaxe desvairada
que lateja como o dedão do pé
massacrado por qualquer pisão
nas ruas invadidas pelos ônibus com ar-
condicionado
quando saio por aí como uma poltrona
reclinável
para relaxar no abandono de reticências
estremecidas.

lamento informar
no interior deste verbo informar
no interior de toda e qualquer conjugação
parricida
que estou tomado pelo substantivo lama
digo que lama é agora apenas o que deve ser
digo que posso feder e feder mais do que um
porco
anoitecido por uma ausência de gente morta
apodrecido no interior desta tal palavra morta
enterrando o tal pato que deverá ser
devorado aos domingos
frente a um cristo qualquer crucificado no
além
eu bebo o vinho dos assassinos de um
guerreiro desconhecido
eu bebo agora o sangue de qualquer perna
amputada.

4 sempre que anoiteço em vertigem/


a hora se desfaz como um vento frio que me devassa
perco o chão ao me ocultar em palavras vazias/
quando escorro o não ser das coisas nas sombras de um
acaso distante.

estrelas frias crivam esta minha angústia de incerteza/


e meu olhar macilento procura a imensidão do que
desconheço
alguém em mim se atira contra a parede insidiosa/
e assim desfaleço ao ignorar meus sentidos vãos.

5
sei pouco acerca do que nomeio
creio que o faço por tédio profundo em relação a tudo que
me cerca.
aprendi a silenciar quando criança
a ver o não visto quando retirava os retratos da parede.

nunca estive sentado à mão direita de um todo poderoso


sempre prestes a cair do parapeito de uma janela
enfeitiçada
com frio ou sede ou calor e desejo de morte em minha alma
com frio ou sede ou calor e no mais vazio e sombra.

6
eu chuto o vento como se este fosse uma lata vazia
falo sozinho ao me desencontrar na noite
os becos mal iluminados me acolhem sem pudor
e eu acompanho com interesse o destino de um roedor
desavisado.

morto com as vísceras expostas ele lá se encontra


bem em frente ao poste de luz e prestes a cair como uma
torre inviolável/
vejo o carro desgovernado que explodirá como o fim do
mundo
no tempo e no vazio de minha alma que sucumbe.

7
minha hora há de chegar num dia frio
triste e cinzento como todas as coisas que caem no chão
meu corpo tombado na cozinha de um antigo depósito de
bebidas
quando da visita a um amigo ainda mais nédio do que este
porco sobre a mesa.

meus parentes hão de me ver pela última vez


duro como uma rocha e impassível como um móvel secular
lá fora uma chuva intermitente pedirá ao tempo que silencie
nesta minha alma macerada na distância da memória.

8
ando por aí com os olhos turvos
vendo coisa alguma sempre quando nada de fato exista
peço aos sentidos apenas um pouco de ordem no caos
aos sentidos um pouco do pouco para que eu não
desapareça como um fantasma no tempo.

sombras ocultas rondam minha alma


e eu me escondo na noite para que não seja mais do que um
inseto
palavras estranhas martelam agora minha mente
quando circulo absorto pelo interior do interior do que não é.

9
as horas já se foram e estou onde não mais posso estar
lá onde tudo escorre como as invisíveis águas do acaso
fora de mim no espaço entre duas mortes
quando assim mergulho resoluto minha cabeça no além.

este além de mudez e sussurros inaudíveis


destes espectros que se esgueiram frente ao muro insidioso
do abandono
onde quem e quando se perguntam
sem motivo algum em nada que os justifique.

10
venho de onde nunca realmente fui
o que fui sem antes nem depois ao não ser coisa alguma.
uma árvore sempre no sempre do que é ser árvore
uma árvore qualquer que nunca foi uma raiz.

não há em minha alma nada que agora escorra.


o pensamento ocupa seu lugar na estante imóvel quando
morro para o mundo.
leio muito mais quando nada almejo:
um pouco de tudo quando encontro esta minha angústia de
dias infindáveis sem ninguém.

11
meu nome era este quando pensei em não mais ser apenas
este substantivo próprio.
mais tarde resolvi abrir a mente ao que então se insinuava.
contornos e formas habitavam meus pesadelos noturnos
quando roçava o final das coisas.
foi assim que me transformei em fumaça de cigarro numa
hora distante e fria.

eu não sou agora quase nada como esta sombra


esta sombra que se arrasta como se arrastam todas as
coisas em mim
digo que minha fome de palavras é maior quando desfaleço
quando procuro a escuridão das coisas em meus fantasmas
que sobem as escadas.

lá fora uma lua qualquer me olha misteriosa


e digo que conheço aquele vulto que passou por mim há
pouco
nem sempre como este que me devora como um animal
faminto
prestes a sucumbir manco e arfante como um felino
ensangüentado.

12
muitas coisas passam por mim.
a linha do horizonte me incendeia.
minhas pernas formigam quando me perco.
minha mente se esquece num beco abandonado.
a casa de meus iguais e o número ilegível
para a dor que caminha em meus gritos enlouquecidos.
o tempo de minha tristeza é um só como um caderno
fechado
o tempo de minha tristeza como um casaco no canto do
armário
o tempo de minha tristeza como um buraco:
como uma rachadura na parede que desaba por sobre este
nada.

muitas coisas passam por mim.


não tenho tempo de pontuar o que digo.
minhas horas não me obrigam a ser qualquer isto.
o tempo em mim se desgoverna.
a taça de vinho espatifada no chão
algo me dilacera quando estou quase nenhum
qualquer no ritmo frenético das grandes cidades
mais do que um continente inteiro submerso
mais do que esta falta de ar que me aproxima dos mortos de
ocasião.

13
escrevo um poema
esguio como um vulto
que se arrasta como uma serpente
num cubículo ordinário
para estar proparoxítono
basta estender o braço como um nome
no catálogo qualquer sobre a mesa
ao discar um número mortal
como quem vai embora
enclausurado na palavra partir
como um pedaço de queijo branco no prato
mofando como a vida no interior do nada
como um pedaço de qualquer coisa pedaço
trissílaba com jeito de defunto fresco
nem pai e nem filho e muito menos qualquer santo espírito
mas cruz encravada nas tripas mundanas do acaso.
14
eu ando por aí
com os órgãos na gaveta
À procura de um lugar
para me esquecer do que não sou
cansado como toda e qualquer palavra fria
que descreve movimentos inertes
debruçado no precipício
enfraquecido de incertezas.

eu ando por aí
com os órgãos na gaveta
que sucumbem na manhã seguinte
como um prisioneiro enforcado
na praça na qual ninguém
esteja a desviar o curso dos rios
para assim melhor entender
o que não é dito pelas águas.

15
o tempo não esquece
daquilo que ali está
prestes a não ser coisa alguma
como esta sombra vazia que se esgarça
na tarde deste instante qualquer
no cão morto que fareja o infinito
repleto de estrelas pusilânimes na lua torpe.

eu vou assim andando


como se nada mais fosse sem reflexo no espelho
quebro copos e derrubo vasos de plantas distantes
para encontrar a fúria das tempestades imprevistas
no vento que agora esbofeteia minha face
para dizer o indizível afogado no além.

16
a solidão me lacera no escuro deste quarto
e eu sangro a incerteza deste dia frio e cinzento
a morte invade agora minha alma em pouco a pouco
e eu me perco no abandono de ruas e becos escuros.

o tempo devora minha sina de não ser


nem menos no que resta em todos os restos e nada mais
já perdi muito tempo a procurar palavras
que rangiam em minha alma acorrentada nas sarjetas.

17
caminho sem ter para onde ir
meu destino jogado contra o vento
procuro-me incessantemente onde não me vejo
estou cheio de buracos e fendas impenetráveis
caminho sem ter para onde ir
quase nenhum no abandono das horas que se arrastam.

18
encontro vez por outra o fim
trago a vida que não vejo como quem morre
falo ao jamais ser ouvido em meu abandono
atiro pedras no rio onde escorro o sangue dos proscritos.

eu corro de um lado a outro como um louco suicida


minha mente agora vacila no escuro
amanhã deverei encontrar o silêncio das coisas no além
sem alarde como quem guarda um segredo antigo.

19

estou próximo ao sumo que se desprende das palavras


sentidos ocultos espocam no interior de meu ninguém
minha alma circula por aí como se nada fosse
minha alma que se procura no interior da hora insana.

não sei mais dizer o que digo


o lugar de meu desejo está perdido num corredor escuro
encontrei a indiferença das palavras no além
quando sangrava em desatino as vertigens da memória.

minha alma se arrasta pelos corredores do acaso


e eu me desconheço como se não mais tivesse rosto
e assim minha mente escorre como as águas de um turvo rio
para longe de meu longe no torpor de um dia sem mácula.

falo sempre em tons de nada


para não mais ser ouvido por quem quer que seja
perdi o rumo ao esconder o tempo na gaveta
na palavra espremida sem lugar em minha alma.

fui andando sem andar até não ser mais ninguém


indefinido em qualquer um em portas e janelas afins
chutando pedras na calçada para que tudo então não
passasse
de um tanto de coisa alguma que arde e queima no além.

20

eu quero muito pouco


quase nada em muito pouco no prato
pouco em qualquer coisa que assim esteja
prestes a ruir por motivo ignorado
menos e menos e ainda menos e menos ainda
subtraído em qualquer coisa morta
pouco e muito pouco em muito pouco
quero estar pouco e pouco em muito pouco
pouco como estes restos de qualquer coisa pouca
pouco menor e indecifrável
pouco como esta letra que não enxergo
como este gosto amargo na boca que não sei de onde vem
pouco e pouco e muito pouco e quero estar pouco
assim deste jeito em jeito algum em quase nada.

21
este meu jeito de dizer o que não sei
vem das entranhas que me servem um prato frio
o gosto estranho que domina minha boca
e que sorri como um demônio embriagado
e que vibra na cútis de fantasmas idos
ao meu lado no desterro desta hora
que faz com que os ponteiros do relógio
agora mintam mais do que a eternidade
podemos abrir as cortinas lentamente
para que este sol queime o que resta do destino
daquela alma dilacerada sem alarde
no abandono de uma noite febril.
22
procuro o que não acho
eu sei que nunca vou parar
de dizer coisas vazias
de bater contra paredes
há tanto calor e frio
tanta sede e fome e tanto
neste jeito qualquer de escutar
o silêncio do escuro
que invade minha alma
como quem abre uma porta infinita
eu não mais sei que digo o que digo
quando sangro de olhos fechados.

23
o nome de um morto
pouco me diz
quando falo sozinho
como se apenas o vento bastasse
para tirar do lugar
todas estas medidas vazias
no seio do além
que range ao sangrar indefinidamente
como as águas deste rio
que correm para o fim
como o nome de um morto
em qualquer sonho noturno
no interior de um silêncio agonizante
quando falo sozinho
quando o quando nada diz
como estas sombras que se ocultam.

24
a noite me devora
como um pedaço de carne fresca
estou para a mastigação
deste cosmos impiedoso que me dilacera
os dentes cada vez mais felinos
deste nada que me invade
no interior de meus pensamentos
como uma chaga imperturbável
neste espelho em qualquer lugar
que se atreve a fugir de si mesmo
como esta noite que me devora
como um resto de qualquer resto.

25
um pouco de água no copo
um pouco do copo na água
qual será a transparência do invisível
quando sangro o interior do que não vejo?

um pouco de água no copo


um pouco de palavra na água
um pouco deste pouco que escorre
sem água e sem copo em nenhum
qual será a transparência do invisível
quando sangro o interior do que não vejo?

25
esta angústia por certo me ausenta
quando acordo como se nada fosse
procuro o lugar onde não sou
no ventre da palavra delírio.
esta angústia me ausenta
quando acordo como se nada fosse
despejo este minha náusea no além
que me olha indiferente no escuro.

26
eu tenho um jeito
de dizer a todo mundo
de dizer o que deve ser dito
como um sentir que estas palavras
não tem o mesmo valor do que o silêncio
daquele quarto vazio
daquele momento desfalecido
daquela mudez naquele tom
ou daquele canto qualquer em qualquer.

27
ninguém está a falar coisa alguma
no escuro da mente à deriva
jamais conquistei cidades
como cabe a quem nada almeja
e por isso já verteu
um lugar qualquer em seu espírito
para além do além de todo sempre
que se esfarela no interior de um vento inusitado
a palavra é prata, o silêncio é ouro
como diz o provérbio
em séculos de reclusão absoluta.

28
eu tenho um ventre
retalhado como um pênis torto
imundo e muito mal conceituado
no sopro de palavras escuras
atiradas na lata do lixo
como as cerdas da escova de plástico
repletas de uma gosma insana
no além da palavra caquético
no tédio da palavra dentadura
no fosso da palavra fosso
no buraco da palavra buraco
no desterro da palavra desterro.

29 o rosto da desconstrução:

tambores:

digo como todos


digo de uma vez
por todos com todos os sentidos
de uma vez com todas ou com todos
de uma vez por todos com todos os sentidos
jamais por cristo
jamais em cristo
jamais com cristo
por todos com todos os sentidos
entortem, ludibriem a concordância
nominal em um alma torta
personificado no semblante de um demônio
enegrecido como um desgraçado que agoniza
digo no interior do verbo dizer
digo que a hora é esta
de descontruir o temor da ordem por dentro
digo que a preposição de é com
digo que ela está para o fim do fim da palavra
mundo
digo que de é com e com é de
digo que a dor é proveniente com o estado
digo que a palavra proveniente passa agora a
dizer
de um acordo tácito e suicida entre a sombra e
a escuridão.

digo que nada é mais cruel


do que dizer que o sujeito desta frase
do que dizer que pedro sofreu um acidente
digo que nada é mais cruel do que dizer
que o verbo dizer é de segunda conjugação
digo agora que o verbo dizer é mais do que
isto
digo que não há conjugação que o agüente
pelo fato deste dizer apontar sempre para um
abandono fantasma
digo que a terminação er é ar ou ir e nunca
isto que parece ser
digo agora que todos os verbos se perdem
em nadar
digo que todos estes verbos se perdem em ir
e ir e ir.

digo que o feminino é masculino


e o comum de dois gêneros é nenhum em
ninguém em muito em menos:
digo:

menos ou talvez ainda mais:

digo que o sujeito desta frase


pode ser quem realmente é
digo que o sujeito também pode ser
simplesmente
o tal indivíduo que não pratica ação alguma
digo que talvez seja melhor dizer
que este tal indivíduo não passa de sujeito
paciente
digo que toda e qualquer definição
donde pedro sofreu um acidente pelo
fato de nada haver feito

carece de força quando não mais se


aguenta

digo e digo e digo e digo,

digo que a hora é esta


de inventar este estar dor que é uma
sombra
esta dor e este estar dor que come e defeca
esta minha dor que é dor em estar
digo ainda:

digo do verbo dizer que dizer é définam


digo que définam é um verbo que não
existe em lugar algum
digo que définam é um verbo apólito
digo que a palavra apólito também não existe
e digo que ao não existir ela pertence a si mesma
e digo que définam e si mesma se completam de forma
arrebatadora
conjugáveis apenas neste tanto de papel
eu définem si mesma tão composto neste dia
digo que eu définem si mesma quer dizer que não vi mais o
meu rosto no escuro.

digo que estes verbos apólitos


não encontram o rosto ou a cara das
almas de ninguém
digo que eles são inspirações do vento
que despeja o além nas coisas vãs
apólito como um sem lugar que jamais
se encontra
como quem não sabe com que roupa vai
sair
apo na sua raiz desterrada no idioma
eban
lito no espelho do nunca na hora de não
dizer
apólito como um verbo naturalmente
desvairado
como quem ignora a vida no interior da
palavra tempo.

30 mutações sem cristo


cartas aos homens do mal.

o evangelho se foi
quando o cristo tal morria na cruz
devo lamentar
o fato de que nos tornamos mais mornos
quando a decadência encontrou o seu par
ao beijar a boca torta de uma fé enferrujada
como a tal bicicleta que não pode me levar
ao destino de sangue que entorpece meus
sentidos inertes
preciso dizer
aos homens do mal
que a visão está sempre próxima do fim
não há paraíso ou redenção alguma
enfurnada nos mosteiros ou nas igrejas
milenares
só restou aquela lembrança
trissílaba e paroxítona
que cicia ao cedilhar
a correr pelas ruas despojada
que perseguia a memória com os pés
descalços
para que a palavra então se disseminasse
como um rio que não seguisse jamais o
curso de sempre
quando fecho os olhos e deixo que a
mente se perca
sem desejo como um túnel escuro
sem desejo como um buraco aberto
por entre o entre da falta absoluta
como um ninguém que recai como a
noite.

ii este cristo filho de deus vale pouco


pelo fato de ser substantivo
pelo fato de ser tão concretamente qualquer um
pregado no crucifixo de uma natureza jamais errante.
posso olhar para os lados
e ser assassinado por um sacerdote medievo
que me confunda com o diabo
ou com alguém que esteja a combater as cruzadas.

eu sei orar o frio


quando sinto a presença da morte sempre assídua
eu não peço nada a ninguém
quando atiro a primeira e última pedra
no muro vazio que desaba
no ventre da palavra trombeta
para que a tal mulher soterrada
continua a pecar solenemente
ao tomar a hóstia como um corpo desejoso.

iii tanta dor desde muito cedo


alijada de toda e qualquer inconsciência
sempre tive os pés descalços
numa estranha sensação
de quem olha do vigésimo andar
lá para baixo e quando as pernas formigam
o desejo se instaura
pregado em algum lugar
como um quadro incendiado
e repleto de sangue podre
ou pisado antes da morte
como quem se atira
no além de qualquer espaço
como numa última ceia
inebriado pelo vinho da loucura.
31 ode à inquietação dos mortos ii

as estranhas no além
ignoram o nome daquilo que é
por isso devoram os seres
que delas se aproximam
e se perdem nas águas indiferentes da memória
como quem conhece mais e mais buracos
absolutamente sem luz e rarefeitos
posso então enfiar a cabeça
que jamais comportará o peso de minha mente.

a palavra mente
diz pouco acerca do que não é
vejo coisas vazias
formas que batem em meu rosto senil
e a força deste nada
É ainda mais imensurável do que o nunca
este nunca na única e vacilante certeza
antes do nascimento e depois de minha morte
este algo que aí está incolor e deveras indiferente
como uma voz solitária sempre e sempre
de qualquer um que esteja agora a murmurar
como se fosse possível falar o para si mesmo
como quem abre as cortinas
e sabe que nada disso
revelará coisa alguma
como o desejo inexpugnável
de resgatar sombras arredias
por isso uma ou mais palavras
que latejam na sua ausência que transborda
neste encontro com a morte
como as chamas que se extinguem
ao parir um sentido qualquer.

meus membros agora


dilacerados pela palavra faca
de cozinha ou de qualquer coisa
que tenha dentes poderosos
e que seja plenamente comestível
nesta gosma arrebatadora
que fica na boca quando do vômito implacável
entre o vômito e a garganta
deve se mexer a alma
para restaurar minuto a minuto
a completa desordem de um desaparecimento.

32 É morte contar aos outros


eu digo que é e morte não combinam com o que eu
agora digo
digo que é morte e não mortal contar aos outros
como quem diz que levou um chute nos bagos há
poucos minutos.

digo que é morte contar o que conto


sempre deste jeito que faz as honras ao escuro
como quem sai pela porta de trás do salão
para urinar nos fundos de sua angústia.

digo que a preposição sem é sempre agora


como um advérbio vagabundo que perdeu o chão
quando se vestiu todo de vermelho na palavra
cemitério
no interior das chamas vazias aceso como um
nada.

33 acordo definitivamente impossível estando


nem e sim e sim e nem
não em talvez embora não haja
ninguém que me perturbe como uma boca
suja.

acordo como um sem boca seco na palavra


garrafa
gargalo destino o coração deste instante
ordinário
banheiro se levanta e carrega o cheiro de
desinfetante
nas fezes que aproximam o além de seus
mortos.

34 pelo sem lado


digo coisas que não são
para arder como um fúria sem artigo bem
comportado
retiro o a de uma para ser apenas sem coisa
um fúria e não uma fúria
para abrir um buraco na parede de minha alma
sequiosa.

pelo sem lado


rasgo a angústia de sempre
por carro posso chegar a não ser
por carro e não de carro como se diz
por carro posso desvirtuar esta minha
mente
para chegar aqui com jeito de quem não vai
a lugar algum.

35 dentro ou dentro ou fora


nem e nem dentro e nem fora
nem cedo nem tarde ou tão tarde
pois não houve tempo
para dizer que a hora era aquela
que poderia e ser e não ser
não há mais resquícios ou talvez
apenas a mais vaga dentre as mais vagas
lembranças
de um pedaço de coisa alguma que ludibrie os
sentidos
como algo enterrado na memória dos aflitos
deste jeito ordinário de pontuar o que digo
desta pausa com cheiro de flor de defunto
quando estou a devorar este tanto de comida
quente
que arrebenta esta minha garganta
combalida
como uma deserta ilha destituída
deste jeito de substantivo que a sufoca
uma paisagem ou talvez uma outra
coisa
apenas mais uma clareira que se
insinua
no interior daquilo que não vejo.

36 o verbo não concorda com o pronome


pois o pronome não é nome e não merece a sorte que
tem.

o verbo deve concordar com o tal substantivo.

estar dor é um jeito de não ser


como quem diz que vai comprar cigarros e não volta
jamais
estar dor é como uma sombra no interior da palavra muro
que se agiganta para cair sobre nossas cabeças
como uma bola de papel atirada no escuro
do escuro do escuro do escuro da vertigem.

estar dor é como esta dor que se torna ainda pior


quando alguém diz que sabe que chegou a hora de ir
como quem abre a boca para engolir o mal
que sorri maliciosamente como um chão imundo.

caso haja em houver


alguma outra simpatia
passe esta tal
para qualquer um que faça tudo ao contrário
caso haja
uma inversão radical de valores
vamos tomar água suja
e destruir nossos órgãos comportados
esta corrente sem elos definidos

ode maligna -tambores

estes tambores vieram de longe


como um advérbio
que assim descobre
que nunca esteve em lugar algum
como quem não sabe de onde vem
como estes tambores
que dizem que os verbos devem dormir um pouco mais
como uma palavra que surge
quando ignoramos ainda mais as coisas
como se as coisas fossem
o que não pudessem ser
por isso este pesadelo
que redescobre o que está ali
bem sem frente na cara de quem quer que seja
para dizer que o objeto indireto
passou a ser tão direto
como em pedro deu a maçã ao indivíduo
este que deixou de ser o que é
ele passou a ser maçã
ele agora objeto direto na boca do inferno
com gosto de fruta fresca
pois foi esmagado por um carro
quando atravessava sua mente sem rua.

estes tambores vieram de longe


para destronar a virulência da crase
que diz de uma mistura de porções malignas
no ventre de um demônio embriagado
como este tal que se foi
dilacerado pelo tal veículo
eu me lembro daquele tanto de carne
flexionado na distância de uma sentença fria
nesta ordem sem brilho em voz passiva
esta voz que diz que ele foi atropelado
que diz que ele ia à casa de sua avó
que nunca diz que a mistura que ia à casa de sua avó
estava a martelar a mente daquele individuo atormentado
como a tal preposição a e o artigo tão estranhamente
definido a
ressoando no infinito de sua angústia de corpo.

estes tambores vieram de longe


para estranhar as coisas do sempre
como vinho que escorre da cabeça
de qualquer deus ou diabo enfurecido
que esteja a falar sozinho
no interior de qualquer coisa qualquer
como alguém que lambe os dedos
saciado após um banquete fantasmagórico
estes tambores estão na alma
dos nédios reis que gargalhavam a morte dos convivas
e deturpavam a serenidade da hora
nos coitos proscritos com mulheres que pariam a desgraça
como nuvens negras por sobre todo e qualquer resto de
comida
ingerida vorazmente por um ou mais cães de dez cabeças
a palavra cabeça cortada
servida com salada fria num dia cinzento
como estes tambores
que assolam estes meus tímpanos
em sua lonjura
surdos
mudos
irritantemente compassados
irritantemente descompassados
como tudo e como todos
sempre estes tambores
a martelar a mente
a martelar a alma
a martelar o verbo martelar.

37 o sempre da água
gerou a palavra maldita
no ventre desta mãe sem rabo
que mexia as orelhas nas florestas
há milhares de séculos
enquanto não havia
tanta humanidade assim
como quem não diz
o que não é dito pelo vento
no sempre da água
e nas florestas
e nos animais que pressentiam
o que não deveria nunca acontecer.

38
se cavalo não percebe
o fato de que cresceu
eu não posso então dizer
que faço o mesmo quando nada sei
como o tal hífen logo após o tal se
que surgiu como todas as coisas que surgem
quando não sei quanto possa medir
pois joguei minha mente no lixo
para que a mesma fosse pisoteada
por um cão sem dono
como uma palavra arredia
que nada sabe acerca deste cheiro de nada
como quem come algo estragado
no interior da palavra intestino
para absorver o que não resta
deste vazio infindo
como algo que já foi
menor do que um grão de areia
antes que as ondas quebrassem
antes que a chuva viesse
como ninguém que em ninguém não
sabe
sem hoje ou amanhã ou ainda depois.

39 o olhar se acostuma
com as palavras inquietas
com um jeito de dizer em carne-viva
como dizer que estar nada
É como um túnel escuro
que teve a boca aberta
por um descaso da terra
que o destruiu numa avalanche que regurgitava
no horror de um dia enlameado e cinzento

o olhar se acostuma
naquele boca aberta
naquele boca sem boca
a engolir a poeira do além
deste nada de nada
com gosto de cimento e serragem
este gigantesco túnel boca aberta
afogado na sequidão daquele instante
neste boca aberta e só
sem dente, asqueroso e pachorrento.

40 bem que ele merecia


algo como um tapa do vento
como quem bate na cara do nada
que pisa em seus testículos emplastados
com o mel proveniente de fazendas distantes
como um louco que estupra animais num canto
imundo
como um porco que chafurda na lama deste agora
para se lambuzar com seu gozo com cheiro de
manteiga rançosa
passada no pão que assola sua mente ordinária e
cruel.

bem que ele merecia


algo entre o til e o circunflexo em reticências
como um chute com a ponta da faca
no nariz com jeito de latrina inútil
as essências o matariam
no excesso do excesso daquela hora maldita

41 falo o que não devo


por ser assim de natureza enviesada
como um garfo qualquer rigorosamente amassado
no interior do substantivo papel.

eu gosto de rolar
ladeira abaixo como uma lata de salsicha
repleta de palavras estragadas
no ventre combalido em botulismo.

eu gosto de ver
a cara vendida daquele tal cão que pede clemência
eu gosto de ser cruel e negar ao mesmo
a carne que por certo saciará sua fome em sempre.

eu faço sempre o que não deve ser feito


ao urinar nos postes e andar com a bragueta aberta
eu faço o que faço ao não saber o que faço
quando me perco no lugar sem lugar das coisas mortas.

42 o que é um pedaço/
de pão por sobre a mesa/
quando sei que como o que como/
no além que me dilacera como um susto

o que é mastigar intensamente/


algo que nem sequer existe/
e que invade esta alma sem mais nem menos/
para me atirar de encontro ao nada emparedado

o que é o que é/
quando o fundo se perde ainda mais fundo/
mais além do que um buraco/
no ponto maior que se interroga/
mais fossa do que nunca/
mais caverna/
ou abissal/

o que é o que é/
por sobre a mesa como este prato/
consumido pela bocarra incauta
e mais do que indiferente nesta agora.

43 para contar uma morte/


É preciso ser nada/
É preciso não ser/
como um vazio num final de tarde.

para contar uma morte/


É preciso ser nada/
como um número qualquer inaudito/
numa série enlouquecida.

para contar uma morte


É preciso celebrar
a data do desaparecimento
da palavra assombro.

44 eu durmo com os mortos/


que se levantam em meus pesadelos/
para beber este pouco de qualquer coisa/
no mistério de uma cozinha vazia/
para tilintar como os copos
no silêncio da noite/
estremecido por este vento/
que faz balançar as cortinas.

45 para tirar as coisas


de seu lugar de sempre
É preciso estar rubro
como o vinho do amanhã.

as coisas não podem mais servir de exemplo


em quando ou onde ou quem
como um louco que leva agora este vaso qualquer
e o coloca dentro da palavra planta.

46 posso não mais ver o que vejo.


pouco importa o fato de que seja torto.
meus pensamentos esbarram nesta minha vida sem
rosto.
procuro sem procurar um lugar qualquer em coisa
alguma.
meus pensamentos esbarram na esquina do final do mundo:
gosto do calor e do frio quando não estou ninguém.

47 o pássaro agonizante
ainda não morreu na palavra asa
ele ainda cisca no verbo ciscar
o interior de suas feridas arroxeadas.

este pássaro agonizante


atira pérolas aos porcos
por estar muito próximo
ao além do além de seu vazio.

o pássaro agonizante
já perfurou a terra de ninguém
ele agora nada mais é
do que o sempre do sempre desmedido.
48 abandono abre a janela
a janela que roça o inominável
o verbo ver alijado de seu sempre
para sempre na friagem em pés descalços.

a água é a mãe que agoniza


nas mãos de um herodes assassino
no escuro das ruas sujas e vazias
vire sempre à direita para encontrar o inferno em chamas.

49 escuro então se agiganta


no verbo ser que se ausenta inquieto
como a água chacoalhada no tal copo
atirado ao chão pelo tal verbo impiedoso.

cortinas e janelas fechadas


escuro é o suor que pinga no além
de todas estas almas que sucumbem
inertes num buraco ordinário.

50 estar tarde seiva


escorrendo em meu além
meu rosto tem gosto de menta
sorvida na boca de um monstro
que busca com apenas metade de coisa alguma
cortar a pachorra desta hora
vertida em banho morno
como um ferimento em carne-viva.

estar tarde seiva


escorrendo neste verbo de nada
como qualquer coisa escondida
na gaveta quase sempre inviolável
sempre podre como toda e qualquer coisa podre
como um bolo solado na palavra fogão
estar tarde seiva neste dia fatídico
neste algo que escorre como as águas de um rio seco.

52 estar porta é fácil


difícil é adentrar o indizível como um nada
parece difícil separar as sílabas do inseparável
quando estar dor é como um prenúncio na palavra vazio.

estar vazio é privilégio de poucos


dos poucos que partem invariavelmente mais cedo
dos poucos que partem para o lugar de sempre
no ventre combalido da palavra frio.

53 as horas de pouco
são horas tão frias
que a boca seca de manhã
e busca um beijo aflito
como um qualquer um
que seja mais indefinido
do que o tal artigo em questão
ainda mais indefinido
do que esta dor que se esconde
na cara de quem quer que seja
que esteja a lixar suas unhas imundas
repletas de esmalte de segunda.

as horas de pouco
são horas de um dentro
como um quadro requisitado
por um pirata sanguinário
que corta a cabeça do inimigo
e a coloca no cesto da gávea
para ter a absoluta certeza
de que o norte é mais cruel do que o sul
como quem joga rum na cara do
subalterno
e o obriga a lustrar as tais botas de
sempre
até que a morte os separe
esquecida numa ilha abandonada
submersa na palavra estupro
como aquele tanto de mulheres mortas
após o coito proscrito.

52 eu sei dizer como quem cala


como quem sorve a cega orgia do instante.
eu sei sumir como quem some
como quem diz que nada é.

sei também fugir sem asas


e comer a borda da palavra oceano.

dentro sem mim um quase nada habita.


de dentro sem fora nem dentro em nenhum.

53 eu tenho uma bota


para abrir a lama
com meus pés sem pés
sem destino alado.

eu tenho uma cisma


como quem só abre a lata daquele tal jeito
uma palavra não vale mais do que um quilo de
bife
temperado nesta cozinha sufocante em
cemitério.

eu tenho um pedaço
de carne sobre os pés
e um riso de nada
que escorre como um rio.

54 eu não sou defunto


mas gosto de dormir como se fosse
qualquer coisa com as mãos sobre o peito
cruzadas por excesso de coisa alguma
como quem diz que vai a algum lugar várias vezes
para urinar o de sempre no white toilet
como quem pergunta se já jantei
ou se já escovei meus dentes esburacados.

eu não sou defunto


pois babo de quando em vez no travesseiro
quando olho o sem lugar em meu escuro
de lençóis sangrentos como uma pancada na cabeça
do pescoço para baixo em suor
nas glândulas que me fazem desorientar a morte
como esta única gota mais do que suficiente
para devassar os meus tímpanos em febre.

55 sofro pelas coisas do sempre


o sempre nestas palavras malditas
eu chuto o além que me dilacera
amordaçado no interior de um forno inútil.

sofro pelas coisas do sempre


sempre em sempre desterrado neste agora
as chamas do acaso que me perseguem enfurecidas
no sempre deste sempre nesta hora vã.

98gosto de morrer sem palavras


mudo e cambaleante como um substantivo letárgico.
gosto de beber o sem corpo e sem garrafa
gosto de beber o sem bebida em um gole só.

gosto de morrer sem palavras


em coisas escuras atiradas no porão da casa
abandonada
gosto de semear a angústia destes dias frios
de morrer e morrer e morrer sem fome e sem palavras.

99calar os nomes
para arder como o além
É lícito supor
que as cortinas estejam fechadas
nesta hora insone
estendida como o vento
esgarçado na hora insana
a conspirar contra as almas
senis no fim do túnel.

100eu já tive rosto


quando era o que não era
num vilarejo esquecido
numa cidade fantasma
como quem já foi medievo
e nunca aceitou os princípios da escolástica
para usar a tal bata
como um devoto qualquer da simplicidade
quando era o que não era
escondido nas cavernas
no ventre de todo e qualquer grito seco
ecoando no escuro.

101o tempo está a afundar


no interior da palavra naufrágio
para usar as mesmas roupas
tremendo na chuva forte.

a tristeza desta hora


vira o mundo de cabeça para baixo
ao se chocar contra o muro do indizível
como um vento de palavras mortas.

102dobre a esquina
e não urine no poste
guarde para sempre
este momento banheiro
ao fazer o que tem ser feito
na latrina de sempre
que é a única coisa
que resta neste mundo
como todos aqueles
que abrem a braguilha
e encontram em seus membros
um motivo qualquer para estar aqui.

dobre a esquina
e cuspa no chão
bem tarde da noite
para que ninguém possa te ver
como esta gosma que é sua
e que toma a calçada
como quem abraça uma cidade
que nunca acolhe os forasteiros
como este cuspe que é seu
como é seu tudo aquilo que é
possessivo como este pronome
enredado
no seio de uma prostituta morta.

103um pedaço de pão velho


e + um copo de leite frio
devo crer que o tempo me atormenta
ao descrever movimentos fantasmas
como este sir que se aproxima
e que corta a cabeça de um rival
bem em frente ao tal galeão espanhol
afundado em minha mente.

eu agora vou rumando


sem destino em timoneiro
sempre vi enviesado
& assim fui me tornando
um pedaço de qualquer coisa
ingerida durante uma batalha
para a prancha com o inimigo
molestado em chibatadas.

104para cada palavra


há um gesto
imperceptível
que transborda
quando o que é dito
então se esquece
como a face do nada
ausente na palavra espelho.

105não dou paz aos artigos


gosto de indefinir as coisas em: as coisas.
um é qualquer um
um carro ou um homem que ninguém conhece.

estes dois invioláveis em os tais:


os não diz coisa alguma acerca deles

os homens e os carros
quem são os homens e os carros
ninguém poderá saber
de nada acerca de qualquer restrição que lhes seja
imposta.

eu digo que os está próximo de uns


digo que a definição e o seu oposto são faces de uma
mesma moeda.

digo que a moeda não é nem nunca foi a tal moeda.

digo que a moeda não é o que é e nem o que


poderia ser.

106tenho apenas alguns minutos


para abreviar esta minha dor
isto quer não dizer
que estarei ainda mais buraco
durante os dias e as noites
durante as noites e os dias
descritos nesta ausência
nua porém vestida
no vazio e na forma encapuzados
com um ou dois machados à mão
para executar o que resta
desta minha mente atormentada.

107quero que o mundo caia


e então me mostre
o lugar sem lugar
para afogar minha alma
para enterrar minha sina
de andar por aí mais torto do que nunca
torto no interior da palavra sempre
torto no ventre da palavra nunca
como nunca
como sempre
antes tarde
do que nunca
antes sempre
do que tarde
como este sol morno
neste corpo arrefecido
nesta lágrima contida
neste dia sangrento
como um tiro de canhão
que ressoa no além.

108o tempo é isto


uma pergunta que escorre
como uma resposta qualquer
quando isto é muito mais
quando quem pergunta já sabe
que quando se pergunta já se está próximo
bem próximo ou então muito próximo
de uma resposta qualquer
como quem sabe
que ao olhar para frente
que ao olhar o olhar
por dentro da palavra dentro
por dentro da palavra olhar
por dentro sem em destituído
como o tempo
o tempo tempo e nada mais
como uma palavra ressentida
que nos aprisiona
neste isto
que apenas demonstra
que estamos vazios
enlameados na palavra qualquer
em substância ou sem coisa alguma
despidos e flamejantes
como um
nada.

109eu era um pedaço de madeira


atirado no canto da oficina
nunca havia prestado para nada
quando as coisas tinham algum valor
quando os homens sorriam e trabalhavam
arduamente
por uma paga que lhes garantissem um futuro menor.

eu era este pedaço de madeira


fora de uso e por vezes chutado por um qualquer
desavisado
a vida urinava em mim como o sol que aos poucos
me tomava
de assalto como cabe a todos que padecem ao
relento.

eu era este pedaço de coisa alguma


fora de uso e por vezes pisado por um nédio
açougueiro pirata
não havia descanso naquele antro amaldiçoado
sempre prestes a subir na prancha com o cutelo em
minha garganta.

eu era um pedaço de coisa alguma


um pedaço de madeira qualquer de um galeão
afundado
um fantasma ou substantivo homicida com os
testículos expostos
na gávea de onde não avistava nenhuma esquadra
poderosa.

eu era o que era


este pedaço de madeira tal
eu tinha em mim este jeito de coisa alguma
em mero pedaço ali deixado como quem costuma
cuspir de forma grotesca no chão sujo.

110quero o que não quero


por isso vivo deste jeito
derretido como qualquer queijo branco
no prato servido pela manhã
para ser consumido
por esta boca esburacada
por uma entidade canal e lesão de furca
no espaçamento entre duas ou mais mortes
como uma gengiva inflamada
ou como uma barata qualquer
pisoteada por um velho desnorteado
que treme mais do que nunca
quando não sabe mais quem é.
111uma casa vazia
tem o dom de ser uma
como um artigo indefinido
numa hora insana
como um artigo qualquer
que beija a boca dos mortos
que andam no papel
sem procura em vertigem
que é como dizer
que o branco sem palavras
tomou conta do tempo
e fechou as cortinas
para que as almas sentissem
um pouco mais de frio
e assim estivessem
mais próximas de nada.

112eu procuro muito pouco


tudo então em aquilo que não acho
conjugo verbos por falta do que fazer
e minha angústia é a mesma na freqüência de um
sempre esquálido.

ando por aí com a vida rasgada


chutando a premência do tempo como quem respira
inquietudes
fumo e bebo um pouco mais em zigue-zague
desgovernado como qualquer coisa virulenta em
pandemônio.

113não é por capricho que entorto coisas


quando o frio desta ordem me sufoca.

o sujeito aqui está entorpecido


na falta de ar que o aproxima do além.

estas árvores me olham como se eu fosse


parte desta inércia em tronco e raiz
mais abaixo da terra encontro meu nome sujo
para crivar o meu rosto de balas de festim.

114eu já sei em ninguém


que meu nome está nas ruas
já morri muitas vezes
quando nasci com a cara retalhada
como um naco de carne de primeira
cortada em bifes para ser servida com
batatas
coradas de tanta angústia
como quem toma um banho quente antes
da hora fatídica.

eu já sei em ninguém
que minha alma está vendida
como qualquer coisa vagabunda
exposta num bazar pouco freqüentado
como os restos de comida dos restaurantes
no azul dos sacos plásticos que iluminam
esta fria noite
eu já sei em mais ninguém
que os becos me pertencem

115cheiro de nada
na hora morta
basta não crer
para então fechar
os olhos e os sentidos
para o lado escuro
lá onde a mente toca
a ponta da alma vazia
no espaço entre o entre
no além que se desintegra
como quem nunca esteve
em lugar algum
para arrefecer
como qualquer verbo ordinário
que tira a sujeira do chão
agora mais limpo do que nunca
como se o nunca
pudesse abrir seu sem braço
e sorrir sem sorriso
como um assoalho lustrado
no ventre convulso
da palavra imóvel.

116derramo a vida
que não cai da estante
e que então se mexe
como qualquer defunto fresco
que agora come
pão e presunto
como qualquer queijo esburacado
como qualquer rosto cheio de espinhas.

derramo a vida
que se arrasta como qualquer coisa
que se estende na hora vazia
para abrir a boca de quem quer que seja
e encher o mundo de ricota temperada
com cheiro de nada e gosto de coisa velha
com cara de medusa ou jeito de besta
enraivecida.

117vou partir
perdido na palavra trem
ausente na palavra ônibus
como um nada
vou adquirir um pacote qualquer
para abrir em mim
a possibilidade de amolecer como um
biscoito velho
num tanto de café na caneca branca
vou ou devo excursionar
até que meus dentes caiam
e eu possa divisar um ou mais buracos
banhados por dois oceanos que ocultam
cem mil corpos de turistas que se foram.

vou partir
repleto de muito pouco
com quem assim parte
para dentro da palavra viagem
este quadro mórbido
há de cravar um punhal em minhas
costas
a palavra costas
deverá encontrar uma irmã há muito
ignorada
que há de prender minhas mãos no
escuro
para que eu não seja jamais servido à
noite
pelo fato de não haver fato algum
no interior da palavra silêncio
no interior da palavra assassinato
vazia no marulhar de vagas inconstantes.

118minha alma é um buraco


aberto na rua fechada
ferido como um sinal de trânsito
inútil na palavra beco.

minha alma é um buraco


escuro na palavra esgoto
distante na palavra asfalto
gelado na palavra sombra.
119troco lençóis
troco toalhas
a mesa está suja
e a cama impura agora
joga este meu corpo para trás.

estou feito de vícios


de restos de comidas espalhados pelo chão
o maço de cigarros amassado em minha angústia
posso espremer o que resta de mim em algum lugar
como o algo que faça arder este meu nada
para trocar de lado
com estes meus fantasmas assíduos.

120eu cavo
um buraco
para não achar
coisa alguma em alguma
não tenho nada em nada
eu não procuro mais palavras
para descrever
este vazio
que agora tem no verbo ter
dentes e mais dentes e mais dentes
e que mastiga mais e mais
a palavra apodrecida
dentro do corpo
de um qualquer morto
como um céu desfigurado
num azul sempre cinzento.

121não há mais susto


quando não mais escuto
o que não é
em lugar algum
como quem diz
o que não sabe
quando risca
o final das coisas
na palavra parede
ainda mais e mais suja
com os cotovelos ralados
como os fantasmas que prosseguem
a dizer mais e mais sandices
como quem compra um remédio
na farmácia de sempre
para que a dor seja ainda maior
ou definitivamente insuportável.

122

não basta dizer


que o caminho é o que importa
importa o começo o fim ou a vitória ou a derrota
importa o corpo gasto nesta sede infinita
o sofrimento na alma, a dor ou medo ou a angústia
importa o chute nos bagos do tempo
o tempo que nada diz quando sempre está
a um palmo de todo e qualquer nariz
olfato a nos perseguir dia e noite numa planície distante
o tempo dissílabo e paroxítono como algo que veio para ficar
cravado em lugar algum neste vazio que nos consome.

não basta dizer


tudo ou nada ou talvez qualquer coisa
importa muito mais o frio
ou o calor que afeta nossos pés
repletos de rachaduras ou frieiras
que são mais definitivamente cruéis
quando usamos chinelos de borracha
a palavra borracha
ainda mais forte do que qualquer onda gigantesca
ela agora dificulta os movimentos
mancomunada com a palavra tempo
o tempo e a borracha
elásticos e precisos
não nos deixam entrar agora
no oceano qualquer
para afundar como qualquer navio
que tenha o casco perfurado por balas de canhão
as águas não nos querem mais lá
por isto este canto de quarto
esta temperatura altíssima em deserto
o deserto
do deserto
tão deserto ainda mais em nunca.

o nunca é ainda mais pleno


do que qualquer um que deseja
esticar os braços e as pernas como uma alma sem corpo
a palavra corpo novamente a pesar como um edifício
prestes a ser demolido
em prol de qualquer causa ordinária
no ventre da palavra pilastra
que não mais suporta
os apartamentos que não gritam como loucos
que se atiram das janelas do além
para baixo e mais fumaça e mais fumaça
e poeira e escombros e mais e mais escombros
deve haver um lugar
pronto para aquietar a mente
que titubeia quando roça
o interminável de uma catástrofe premente
quando as horas alfinetam
sem motivo aparente
a palavra aparente
que oculta quando não pronunciada
nos inóspitos corredores da incerteza.

123diga o quero ouvir


pois não digo nada
quando faço coisas estranhas
como quem fecha a porta
para não mais sair de casa
como quem dentro de casa
abre o gás para que morra mais rapidamente
por isto ou por qualquer outro motivo
diga o quero ouvir
não me fale em salvação
muito menos em deuses ou demônios
diga que devo respirar
esta angústia de coisas caindo aqui e ali
este silêncio de casa secular
este relógio que me atormenta em tic-tac
este calor
este frio
diga o que quero ouvir
diga que meus dentes estão podres
diga que sou canino ou molar
diga que devo mastigar vorazmente
o pedaço de pétala de rosa que agoniza
frente a um tanto de urina de um cão imundo
que baba por babar na face do inferno.

124hoje não mais posso


abrir as janelas
meu nome fraqueja
a bordo de uma nau sem rumo
sou filho dos ventos
minha alma arredia desfalece
não há como negar
que as horas se perderam no além
como se não mais fossem
tão incisivas neste agora.

eu posso ouvir
o que não está em lugar algum assim jamais
como quem sente
o correr das horas deste rio
o instante que se vai
e assim se desintegra
como se o tempo estremecesse
no assombro de um mar bravio
há ondas que me arremessam
contra o inexpugnável da desordem
para que as palavras transbordem
cansadas de véspera e sem desejo
para roçar o impensado
em suas lufadas de nada.

125há um silêncio
de sala vazia
que há muito aguarda
este tiro na boca.

a boca seca
corrompe o alimento
na palavra digestão
hesitante à porta do inferno.

o inferno é este aqui


velado como qualquer palavra agonizante
no silêncio torpe de caixa vazia
no ventre retalhado de um cadáver recente.

126eu tenho vontade/


de parecer coisa alguma/
como quem encontra no espelho/
o reflexo em vertigem/
para retocar a maquiagem/
estragado como qualquer salada crua/
vista de uma dor cinzenta/
amassado no interior de um frio inútil.

127esto é um pronome que não existe/


ele sobe a ladeira como um cheiro de coisa alguma/
esto é como um tanto de queijo parmesão/
cortado em cubos para nada dizer/
esto que não gosta dos nomes e não aponta para nada/
sabe-se que ele afogou a tal letra que o ameaçava.

esto é um pronome que não existe/


esto é um pronome de pouca fala/
de hábitos simples como contar estrelas sem destino/
esto que prefere os dias chuvosos no fundo do oceano/
esto que se perde no ventre convulso da palavra oceano/
como se estivesse sendo tragado pelas águas invisíveis
do além.

128esta dor tem jeito de agulha/


enfiada no corpo sem piedade/
esta dor com jeito de dor/
de dor e mais dor que se espalha como um nada.

esta dor tem jeito de faca


de cabeça cortada por um motivo qualquer
tem jeito de dor esta dor que não pode
aumentar ou diminuir esta angústia infinita.

129acordo com jeito de jeito/


como se a palavra jeito designasse coisa alguma/
como se tudo não passasse de algo inimaginável/
inebriado na palavra além.

acordo com jeito de jeito


como se a palavra jeito simplesmente não fosse
mais sombra do que nunca ao lavar meu rosto
combalido
inerte e abandonado como um barco vazio.

130abandono abre a janela/


a janela que roça o inominável/
o verbo ver alijado de seu sempre/
na friagem de meus pés descalços.
a água é a mãe que agoniza/
nas mãos de um herodes assassino/
abandono de ruas e estradas vazias/
vire à direita para encontrar o inferno em chamas.

131esta hora não me pertence/


pois o tempo comeu os meus olhos/
não mais vejo no escuro que agora sangra/
o que resta de meus restos derramados na sarjeta.

esta hora não me pertence/


pois o tempo pesa mais agora que não sou/
nem mais nem menos do que uma sombra
qualquer/
dilacerada e muda no ventre de um rio seco.

132falo e nada digo/


o silêncio é meu guia no além/
o além é meu escuro/
o além me quer escuro/
quando falo e nada digo/
sem desejo e esburacado/
como um tanto de queijo prato/
como um tanto de queijo suíço/
na boca de um nédio qualquer/
que se senta no lugar de costume/
naquele tal restaurante tal/
para comer e comer e comer/
as minhas entranhas que apodrecem como a
noite
quando falo e falo e nada digo/
ao bater com a cabeça na parede/
ao bater e bater no ventre da palavra
parede/
para sangrar e sangrar como um morto.

133eu procuro o que não procuro/


quando chego ao lugar algum/
o caminho é sempre pedregoso/
e o silêncio infinitamente maior.

minha mente se perde/


nos labirintos de um além que cospe a indiferença/
de um animal que agora devora resoluto/
sua presa num dia qualquer cinzento e triste.

134é um querer-dizer que vem de onde vem/


algo como café quente ou água gelada/
algo como a garganta combalida ou a tal dificuldade/
respiratória
algo como o frio, a sede ou uma fome qualquer
incontrolável.

É um querer-dizer que vem de onde vem/


manifesto nas mãos sempre trêmulas ou num suar frio/
a alma em chamas esteja onde estiver/
como uma seiva absoluta em seu desdém.

135o primeiro dia do ano/


macera meu corpo gasto/
o meu rosto refletido no espelho/
É mais velho do que qualquer um.

o primeiro dia do ano/


traz a sede em meu abandono/
na água que agora bebo/
e que escorre como um tanto de sangue nos becos.

136já tive mais sorte/


ao ser pouco em pouco/
menos ainda do que a palavra menos/
ou menos do que qualquer canto de sala empoeirada.

já tive mais sorte/


ao ser quase um isto/
quando não precisava falar tanto/
e nem compreender e ser compreendido.

já tive mais sorte/


ao ser apenas uma sombra/
arredia por excelência/
em qualquer parede escura.

137as trevas/
não me dizem/
do rigor destas palavras/
sem destino num buraco/
cavado com as mãos sujas de sangue.

as mãos/
não mais tocam agora/
o corpo de quem quer que seja:

estão duras como as mãos de um cadáver:

roxas
inertes
ou mortas de frio.

138há mais tédio/


na palavra cômodo/
quando o acento se concentra/
na antepenúltima sílaba/
como uma chispa de qualquer coisa/
que atormenta vez por outra o olhar/
nesta alma definitivamente derruída/
neste deserto de vigas e escombros.

99-falo aos homens/


aquilo que não devo/
o lugar de minha morte/
celebra o meu aniversário/
no além de becos imundos/
próximo aos roedores que jamais dormitam/
sou todo feito de facas/
pontiagudas e letais/
para assim perfurar os vazios/
que se estendem como um poente repleto de sangue.

100
bebo as ruas desta cidade/
meu sangue destilado ainda corre/
como um louco sem destino sequer procuro
o lugar sem lugar para desencontrar meu rosto.

bebo agora o além de minha angústia/


tropeço ao singrar o abandono das horas/
há mais fuga em qualquer que seja o grito lancinante/
neste jeito de cuspir com as vísceras expostas.

101- uma fruta é o que é/


mas uma laranja pode se transformar num rio/
se estiver devidamente enclausurada/
numa cova qualquer emudecida/
posto que a cova não seja amarela/
e nem possa ser cortada em fatias/
visto que a laranja que agora escorre/
mudou a cor da paisagem.

uma cadeira pode não ser o que é/


se estiver tomada por um desejo de lápis/
para riscar o chão como uma alma de fogo/
ao quebrar toda e qualquer mesa sem os pés.

os pés podem falar do alto/


ainda mais próximos de qualquer chão imundo/
o que é imundo encerra a maior assepsia/
como duas agulhas enferrujadas/
que invadem a cútis de um velho/
que tem jeito de árvore derrubada/
como quem anda descarrilado na palavra
trem.

102 eu digo que não digo


nada que preste afirmo
que não posso e não devo
transformar o que não sou em ninguém mais.

eu digo que não presto


quando solitário escuto o não das coisas.

eu digo que o tempo


sofre de azia e tem hérnia de hiato
e que não sabe ainda
que um parente mais próximo
morreu no hospital
de tanto falar com as paredes.

digo ainda que as paredes


estão todas repletas de sangue
transformadas em carne de açougue
vencidas na palavra mosca
vencidas na palavra mosquito
como qualquer canto vazio
na noite silente e fugaz.

103 digam que estou morto


pois isto me fará muito bem
poucos são aqueles que engolem a sombra
como quem aprecia um bom vinho na hora certa
como se a palavra certa
estivesse deitada ao meu lado
para encontrar a sabedoria
onde nada de fato possa existir.

104 costumo envelhecer mais frente ao espelho


quando busco os lugares de minhas rugas
o mapa que traço está repleto de tropeços
de fracassos e reencontros com a morte em cada canto
escuro.

aprendo a não ter direção


quando penso que vou de um ponto a outro
ressurjo ainda mais insano do que as correntes
de um rio
que arrasta tudo por onde passa
no ventre do ventre de palavras frias.

105 o poente é o mesmo


pelo fato de esconder sua morte
pelo fato de ser notado
apenas quando a alma realmente sangra
e busca na distância
o lugar de onde não vem
como quem fecha os olhos
e respira indefinidamente
a quietude das horas.

106 pouco sei


acerca do caminho
não compreendo
o que sinto
quando nada mais parece ser o que é.

pouco sei
acerca do nem mesmo
pois quando desejo
uma miragem qualquer se apresenta
então eu penso que vejo o que quero ver
sendo isto tão pouco
como esvaziar alma em si mesma.

pouco sei
acerca do caminho
quando escureço
a escuridão
e não mais penso
que estou onde estou
agora a mente
pode roçar o insondável
talvez assim
posso definitivamente andar
ao fechar os olhos
neste agora.

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