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DE ENSINAR FILOSOFIA
Izabela Bocayuva*
Pode soar como óbvio, como uma fala gasta, dizer que a universidade não é
para ser um depositário de “saberes” já prontos que apenas são
reproduzidos por professores e alunos. Entretanto, o que ainda normalmente
acontece é que nos cursos universitários, assim como nas relações as mais
variadas, nada ou quase nada acontece. É Heidegger que nos diz em sua
conferência Língua de tradição e língua técnica, que a universidade é
justamente hoje, entre as formas de escola (conjunto de instituições
escolares), aquela "mais esclerosada, a mais atrasada em sua estrutura"
(1995, p. 8). Certamente isso acontece porque os dias de hoje, orientados
planetariamente pela produtividade, com toda a sua avidez fazem imperar
cada vez mais uma indiferença desesperançosa quanto ao saber e também
quanto aos relacionamentos de um modo geral. Ainda que nunca se tenha
escrito tanto como agora, o volume da produção acadêmica não significa um
real esforço de verdadeiro conhecimento. Infelizmente ela não gera
naturalmente uma verdadeira vida acadêmica a qual hoje se encontra a
mingua. Vivemos tempos de afasia e niilismo, de desenraizamento histórico,
de cegueira para o fruto próprio do pensamento que é o autêntico
crescimento de um ser humano, de um país, do mundo como um todo, à
medida que suas ligações propriamente vitais conscientemente possam vir a
se fortalecer fazendo diferença. Porém, esta é uma situação que não se
restringe ao meio universitário.
Parece que o único que tem importado é o mercado e a mercadoria.
Infelizmente se age também assim no âmbito da filosofia à medida que se
atende simples e prontamente ao apelo ou exigência da produtividade
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Professora Adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
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Devemos indicar aqui que se há algo assim como ensino de filosofia isso não
se deve ao fato de se poder ensiná-la como se fosse um conteúdo pronto,
mas por se poder, praticando-a, deixar o aluno aprender a também praticá-
la. Os gregos são para nós ainda hoje verdadeiros professores nesse sentido.
Com eles aprendemos que não há filosofia sem philía, sem amizade. O que
faz um aluno não é uma condição hierárquica prévia, mas o autêntico
interesse. Quem verdadeiramente é aluno somente é aquele que se põe à
altura da conversa do mestre, alguém apenas mais experiente nos caminhos
de um comum interesse investigativo. De fato estamos hoje muito longe
dessa realidade. Com tantas escolas e obrigatoriedade escolar, quase não há
alunos, e do mesmo modo, quase não há mestres. Acreditamos que todo o
problema se encontra numa profunda crise do ethos humano, sobretudo no
seu relacionamento com a própria condição de liberdade.
Para tentarmos uma aproximação desta questão, faremos um pequeno
desvio à medida que tomaremos uma interrogação feita por Hannah Arendt
no campo da política e que irá trazer para a nossa investigação acerca do
ensino de filosofia um cunho ético-político decisivo. Isso que nos chegará
como uma provocação para pensarmos, mas principalmente agirmos, em
sentido autêntico, se nos mostrará como sendo provocação também para o
deixar pensar (ou deixar agir) também autenticamente.
Numa compilação de fragmentos publicada postumamente intitulada O que é
política? (2002), temos acesso a uma formulação lapidar da imbricação entre
política e liberdade feita por Hannah Arendt. Motivada pelo quadro do poder
político mundial que a qualquer momento pode aniquilar toda a Terra, ela ali
se pergunta não apenas – como inicialmente havia feito naquele mesmo
texto – qual é o sentido da política, mas se a política tem ainda algum
sentido. Vemos que a resposta que ela inicialmente dá ao primeiro modo de
formular essa pergunta foi inspirada pelo pensamento antigo e diz: “[...] o
sentido da política é a liberdade.” (2002, p. 38). É que para os gregos
liberdade e política eram uma e a mesma coisa. Sua dimensão política era
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Esse mesmo tema foi tratado por Kant, na explicação dada por ele à terceira
proposição de seu texto Idéia de uma história universal com um propósito
cosmopolita. Ali ele nos diz:
Ambos os pensadores estão a nos falar da ação como gesto criador, como
espontaneidade e identificam isso com a liberdade num sentido político mais
elevado. Mas, como Hannah Arendt mesmo detecta, temos muita dificuldade
de entender a liberdade identificada com espontaneidade. Isso porque
costumamos entendê-la como livre-arbítrio, ou seja, como sendo o exercício
da escolha entre possibilidades já dadas. É claro que não podemos prescindir
do que já nos está dado e disponível. Mesmo antes de nascermos, no útero
materno, já contamos com o dado. Mas o campo de nossa liberdade não se
limita a optar entre o que já estava aí. É que somos um ser muito estranho
realmente. Somos capazes destes fenômenos imensos que são a arte e o
pensamento! Somos livres para... Para quê? Não é preciso ter uma resposta
acabada para tal pergunta, e não há problema nenhum nisso. Muito pelo
contrário. É a falta de uma resposta definitiva para essa pergunta que
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que se põe a escutar nele o que ainda precisa ser pensado aqui e agora, isto
é, à medida que se dispõe a pensar prontamente os problemas de seu
próprio tempo. Trata-se de uma questão fundamental de exegese. A
autenticidade de uma interpretação filosófica não está em o quanto o que
dissemos concorda com o que os comentadores autorizados já disseram
sobre aquele pensador ou sobre aquela questão. Isso pode sim ser um
começo, mas não significa tudo. Não significa o nosso próprio caminho
investigativo. Aquela autenticidade reside isso sim em o quanto somos
capazes de pensar com a sensibilidade dos problemas de nossa época tal
pensador e tal questão. Somente isso nos leva a pensarmos melhor nossas
próprias questões. É claro que com isso corremos riscos, mas como
professores de filosofia precisamos nos dispor a encarar esses riscos e deixar
também que os que estudam filosofia conosco também se disponham a
correr riscos.
Caso falamos agora, então, de um ensino da filosofia que significa
envolvimento com a construção do próprio saber, não nos contradizemos,
porém, com o que dissemos antes a respeito de a filosofia não poder ser
ensinada ou aprendida ou mesmo sabida. É que se, como dissemos, não é
possível saber ou ensinar filosofia, é por outro lado sempre possível aprendê-
la à medida que se a exerce a ponto de poder partilhá-la como experiência
com outros e que não precisam ser especialistas em alguma matéria; basta
que sejam – como a palavra filosofia originariamente mesmo diz – amantes
do saber, basta que sejam interessados pela conversa investigativa, mas
também e sobretudo amorosa; basta que tenham os olhos brilhando diante
da beleza do mistério da inteligibilidade da realidade. O cultivo apenas dessa
coisa tão pouca já significa a propiciação do milagre do qual nos fala Hannah
Arendt. Nesse sentido, o ensino de filosofia, desde que não se entenda por
isso a mera transmissão de conteúdos prontos para que outros os arquivem,
está sendo já exercício político num sentido elevado ainda possível.
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Bibliografia