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PARA QUE SERVE A FILOSOFIA1

José Gabriel Trindade Santos*


jtrin@terra.com.br

1. Origens da reflexão na tradição grega

Há mais de 25 séculos que a reflexão desempenha o papel de motor


das duas tradições que consubstanciam a identidade cultural do
Ocidente: a humanística e a científico-tecnológica. Na Grécia clássica,
é à prática da reflexão que, a partir de Heraclito (frgm. 1) e
Parmênides (frgm. 7.5), todos os pensadores incitam.

1.1Heraclito

Embora não se encontre nos fragmentos do Efésio um termo que


claramente possamos identificar com a reflexão, só pode ser a ela
que os frags 2 e 50 aludem:
“Por isso, é necessário seguir o consenso (xynon). Pois o consenso é
comum (koinon). Sendo, porém, o logos consenso, os muitos vivem
como se tivessem uma inteligência particular (idian phronêsin).”2
“Escutando não a mim, mas ao logos, é sábio convir que tudo é um.”
No contexto dos dois fragmentos, a reflexão poderia ser identificada
como esse “consenso”, que aos homens falta, a “inteligência”
[comum] da unidade do cosmos. Esta parece ser a lição expressa na

1
Este estudo recolhe mais de três décadas de estudo do ensino da Filosofia, na Escola Média e na
Universidade, acumulando experiências de lecionação em Portugal e outros países. Recentemente o autor
encontrou eco e expressão das suas reflexões na obra de Mario Ariel Porta, A Filosofia a partir dos seus
problemas, Loyola, S. Paulo 2002.
*
Departamento de Filosofia, Universidade Federal da Paraíba. Telefone: 083.32511403

2
Excepto onde indicado, as traduções são da responsabilidade do autor. O fragmento joga com a
sinonímia de xynon e koinon e a decomposição de xynon em xyn e noon (vide frgm. 114). Daí a tradução
“consenso”, em vez do habitual “comum”. Embora essa tradução seja correta, encobre o jogo entre o
sentido do termo composto e os dos elementos que o compõem (vide W. Guthrie A History of Greek
Philosophy I, Cambridge 1971, 425, n. 5). Para a uma leitura ainda hoje inovadora de Heraclito, vide o
clássico de H. Fränkel, “A Thought Pattern in Heraclitus”, American Journal of Philology 59, 1938, 309-
337.
mensagem (logos) que o pensador dirige aos homens e que estes
não entendem quer a tenham ou não ouvido (frgm. 1).

1.2Parmênides

No Eleata, encontramos uma tese análoga, porém, posta em termos


totalmente distintos. O seu Da natureza coloca na boca de uma deusa
um complexo argumento do qual ressalta a unidade lógica,
epistemológica e ontológica da entidade englobante a que chama
“Ser”. Com ela, funda uma única realidade/verdade (alêtheia),
identificada com um único pensamento, ou concebida como uma
única “coisa” pensada e dita: “O mesmo é pensar e ser” (frgm. 3).
Adiante, será para as consequências da admissão desta identidade
que a deusa chama a atenção do jovem:
“Escolhe com razão (“discurso”, “debate”, “argumento”: logos) a
prova muito contestada,
de que falei.” (fragm. 7.5-8.1a).
A deusa desafia-o a defender, através da controvérsia, a conclusão
do argumento, exposto ao longo dos fragmentos 2, 3, 6 e 7. É a ele
que se refere com a expressão “prova muito contestada” (polydêrin
elenchon), no texto, nitidamente contraposta ao “caminho muito
experimentado” (7. 3: polypeiron hodon), dos “olhos, ouvidos e
língua”, ou seja, o complexo gerado pelo exercício da sensibilidade,
identificado com as “crenças dos mortais” (1. 30, 6. 4-9, 8. 51-61,
19.1-3).
Por essa razão, tal como Heraclito, o jovem, é contraposto aos outros
homens (1. 27), em cujas crenças não há “confiança verdadeira” (1.
30). Adiante, a contraposição é objectivada na confrontação da
“errância” (6. 6) das “crenças dos mortais” com a “necessidade” (2.
3, 2.5, 6. 1a) da decisão imposta pelo argumento.
Poderá dizer-se que aqui a reflexão começa pela “escolha” (“decisão”:
krisis: 8. 15, vide 7. 5), prolongando-se pela série de consequências
que acarreta, expressas na sucessão de controvérsias a que o jovem
terá de se entregar, para defender o argumento, ouvido da deusa3.

2. Platão: as Formas

Para Platão, a reflexão é caracterizada, no contexto da reminiscência,


como o exercício dialético que visa assegurar a passagem do sensível
ao inteligível, mediante o qual as opiniões se podem transformar em
saber (Mén. 82-86, R. 510b-535a).
No Ménon, Sócrates leva um escravo sem instrução a compreender
que o quadrado de área dupla de um outro, dado, se constrói sobre a
diagonal do primeiro. Embora a solução seja desenhada, no esquema,
pelo próprio Sócrates, é reflectindo, por si, que o rapaz compreende
que ela é válida para qualquer quadrado; o que quer dizer, para o
Quadrado em si, ou a sua Forma.
O artifício do interrogatório acha-se no modo como Sócrates o
conduz, combinando perguntas, dirigidas ora ao esquema desenhado,
ora, à Forma do Quadrado, sem que o interrogado se aperceba da
transição. Tendo verificado a inconsistência das respostas que dá, o
rapaz acaba por aprender a lição que Sócrates lhe quer dar: a
observação do esquema é insuficiente para o encontro da resposta. É,
pois, no próprio momento em que desiste de tentar encontrar a
resposta, a partir do sensível, que se encontrará em condições de
compreender o alcance inteligível da resposta que lhe é sugerida. Ao
verificar no esquema a consistência da solução da diagonal,
compreende que ela é válida para todos os quadrados, vindo “como
num sonho” (85c9) a ganhar a percepção da natureza inteligível do
objeto da pesquisa4.

3
Para uma introdução ao estudo dos fragmentos do Eleata, José Trindade Santos, Da Natureza,
Parmênides, Loyola, S. Paulo, 2002.
4
Para o exame do aproveitamento metodológico da geometria, no Ménon, vide “La struttura dialogica del
Menone: una lettura retroattiva”, in La struttura del dialogo platonico (a cura di Giovanni Casertano),
Napoli, 2000, 35-50; Id., “A anamnese no argumento do Ménon” in José Trindade Santos (ed.),
Anamnese e Saber, Lisboa, Imprensa Nacional, 1999, 63-92.
Na avaliação dos méritos do método dos geómetras, no final da
República VI (510b-c), Sócrates refere-se implicitamente ao
interrogatório acima descrito. Mas aproveita para observar que o
engano dos geómetras reside em não compreenderem que a
metodologia que adoptam lhes proíbe satisfazerem-se com o
sensível.
O valor reflexivo da metodologia platónica reside no modo como leva
o respondente a confrontar-se com sucessivos objetos
epistemológicos, cuja compreensão não lhe é proporcionada nem pelo
interrogatório, nem por um ensino anterior (Quadrado, área, maior,
menor, igual). Desse facto o filósofo infere que só lhe pode ter sido
fornecido anteriormente a esta vida; seja como for, que os possui a
priori.

3. Aristóteles: o universal

Nos Segundos analíticos II19, Aristóteles rejeita com veemência esta


conclusão e a reminiscência platónica. Mas nem por isso desiste de
explicar como é possível ao homem constituir objetos cognitivos. A
sua análise do conhecimento, no I Livro da Metafísica (980a21-
982a2) é iniciada pela consideração das sensações, encaradas como
o instrumento de que todos os animais se servem para captar o
mundo exterior. Mas logo distingue aqueles que se mostram capazes
de as elaborar através da memória dos que não são. É assim
introduzido o conceito de experiência, o qual condensa numa única
concepção, “universal”, uma infinidade de imagens, colhidas de
percepções anteriores5.
O universal é colocado, em Categorias 2 (1a20-23), na posição de
predicado da proposição e identificado como o que “se diz do sujeito,

5
Na simples proposição “a chama queima” acha-se contido um número indefinido de experiências
passadas e ao mesmo tempo uma regra diretiva da ação futura.
mas não existe nele”,enquanto, nos dois passos acima referidos, é
abordado pela perspectiva da sua génese.
Formado “por abstração” a partir de uma pluralidade de imagens, é
dotado de uma existência problemática, já que, como predicado
atribuído a um sujeito, não pode existir nele. Pode, no entanto, ser
ele próprio convertido em sujeito de predicação, ao ser constituído
como objecto cognitivo (Seg. an. I18, 81b2-9).
3.1 Refletir
É isso mesmo que a análise da Metafísica I1 implica. Partindo do
limiar horizontal da sensação, a que todos os animais têm acesso, a
unidade e finalidade de toda a cognição é elaborada, na vertical, na
sucessão dos diversos patamares cognitivos, a cada um dos quais
corresponde uma operação mental.
A hierarquização do conhecimento a que se chega exemplifica e
evidencia o poder da reflexão, ao questionar cada operação cognitiva
acerca da finalidade que visa. Começa por as nomear (sensação,
memória, experiência, conhecimento da causa e dos seus modos),
mostrando a seguir o que cada uma delas é e o que produz, ou
constitui, na unidade da cognição. Inicia-se aqui a “problematização”,
pela qual cada operação é definida e integrada no todo. Mas o que é
“problematizar”?

4. Problematizar

4.1 Problematizar em Platão

Para um Grego clássico, não mais do que responder à pergunta “o


que é”. Foram Sócrates e Platão quem primeiro ensinou a conduzir
esta prática e a que regras obedece. Há que considerar primeiro o
tópico pesquisado no seu todo, na posição de definiendum numa
proposição, constituindo-o como objecto cognitivo. A fase seguinte
passa a debater a aceitabilidade de resposta dada: se a resposta é
consistente com outras, que aceitamos, podemos considerá-la
verdadeira; se não, como falsa6.
Utilizando com rigor este método, poderemos constituir o saber –
condição e objeto último da pesquisa – como o conjunto de todas as
proposições verdadeiras a que vamos chegando através do diálogo.
Mas a proposta não vale mais do que um projeto, dado que a verdade
de cada proposição nunca poderá ser mais que hipoteticamente
garantida; além de que o sistema que conjuga todas as proposições
sobre a realidade nunca foi atingido.
“Problematizar” será então a técnica que consiste no isolamento e
relacionação das variáveis constitutivas de cada questão estudada,
expressas pelos elementos constantes na definição. Por exemplo, na
pergunta “O que é a justiça?”, para a qual muitas respostas podem
ser apresentadas, o método começa por assegurar que o objeto
definido é encarado na sua unidade e abrangência.
A seguir esboça a combinação das variáveis significativas da
resposta, avaliando as consequências dela resultantes7. A
investigação progride pela obtenção de novas proposições,
consistentes com o conjunto das anteriormente estabelecidas,
rejeitando todas as que gerem contradições.
Por exemplo, na República IV, Sócrates constrói a seguinte resposta
para a pergunta “O que é a justiça?”:
1. Estabelece a homologia entre a alma e a cidade;
2. Divide cada uma delas em três “partes”;
3. Regula cada um dos pares de partes correspondentes por uma
virtude;
4. Subordina a sua função no todo a duas virtudes coordenadoras:
4.1 A sensatez é a harmonia de cada uma das partes, no todo (442c-
d);
6
Esta proposta é feita no diálogo Fédon 100a. Esta teorização do método “da pergunta e resposta” assenta
no estudo da obra platônica, dos chamados “primeiro e segundo períodos”.
7
Uma resposta satisfatória é atingida na República IV, que a considera “a harmonia das partes da alma e
da cidade”. Mas a resposta foi precedida da refutação de outras conhecidas respostas: “retribuir a amigos
e inimigos”, “o interesse dos mais fortes” (Livro I).
4.2 A justiça é “cada uma delas fazer o que lhe diz respeito” (433a-
b).

(1., acima) é o postulado no qual assenta todo o raciocínio. Vemos


que não só aproveita as lições retiradas da obra socrática, em
particular a do Livro I, como, por si só constitui garantia de a questão
da justiça ser abordada na sua maior extensão.
No texto, a divisão da alma e da cidade em três partes (2.) é
estabelecida por consenso dos interlocutores, a partir da observação
empírica8. A tese condensada em (3.) supera as propostas contidas
nos diálogos socráticos, ao mostrar que, mais do que encontrar uma
definição de virtude, importa atribuir-lhe uma função, na alma e na
cidade9, o que obriga a aplicá-la a uma parte da alma, bem como à
sua correspondente para a cidade.
Mas o problema à solução do qual Platão se lança acha-se
condensado na síntese do raciocínio anterior: a orientação da virtude
para a alma e a cidade nega a paridade das virtudes tradicionais.
Pois, além das virtudes particulares, terá de haver outras,
globalmente responsáveis pelo funcionamento do todo. São elas o
saber, o que não constitui novidade10, mas também a sensatez, deste
modo qualificada como uma espécie de sabedoria prática, com um
alcance individual e colectivo11.
O problema da virtude, e da justiça, em particular, fica então
resolvido, com base no articulado acima exposto. A problematização
é realizada em duas fases. A primeira isola uma série de conceitos –
alma, cidade e suas “partes”, virtude/virtudes –, cada um dos quais é

8
A tripartição da alma é proposta a partir 436a. O exemplo de Leôncio (439e-440a) comprova-a,
ilustrando a “guerra da cólera com o desejo”. A tripartição da cidade é avançada em IV 420d sqq (vide III
415a sqq), com base na realização da tarefa que a cada parte é atribuída.
9
Na Rep. I 352d-353e, a aretê é definida, a partir do exemplo da “função” do cavalo, como “aquilo que
alguém pode realizar melhor, com ele”.
10
Nos diálogos socráticos, era manifesto que todas as virtudes constituíam uma espécie de saber. Por
outro lado, o Laques e o Protágoras tinham revelado que o problema da coragem residia na sua relação
única com o saber.
11
A negação do princípio da paridade das virtudes constitui uma inovação (vide a objeção às respostas de
Ménon, segundo as quais a ação virtuosa implica a justiça: 73a, d, 78d-79c).
constituído como objecto cognitivo, mediante nomeação e
subsequente definição.
Trata-se de uma operação decisiva, pela qual é criada a entidade que
deverá ser objeto de pesquisa, pois a nenhuma das entidades
nomeadas tem existência empírica12. Subsequentemente, a resolução
dos problemas que colocam ao investigador é conseguida mediante a
sua relacionação, em proposições, necessariamente consistentes com
as inicialmente fixadas.
Mesmo assim, não será demais repeti-lo, a verdade atribuída a cada
destas, bem como ao bloco que constituem, é condicional, pois não
passam de hipóteses, cuja solidariedade é testada pela metodologia.
Tecnicamente, cada uma delas não é mais que uma opinião,
verdadeira enquanto a sua aplicação à descrição do real o permitir13.
O caminho a percorrer para que o saber possa ser atingido é ainda
longo.

4.2 Problematizar em Aristóteles

Como dissemos, de acordo com a teoria da anamnese (Féd. 72-76),


as entidades platónicas, existindo a priori, são constitutivas da
natureza da alma e do saber. Ao rejeitar a teoria, Aristóteles obriga-
se, portanto, a definir uma outra origem para os objetos cognitivos
trabalhados pela reflexão. A teoria sobre a génese e a natureza do
universal resolve uma parte do problema. Resta ainda explicar a
origem dos conceitos, o que é feito a partir do início do Livro III, da
Metafísica.

12
O raciocínio de Platão mostra bem que, para ele, uma cidade é muito mais do que a realidade física que
a suporta. Aristóteles, como vimos, resolveu o problema ao negar existência aos universais, em
Categorias 2, mas a sua crítica à cidade justa, assente no pragmatismo político, é demolidora: Política
II1, 1261a5-3 1266b8.
A lição a retirar da polémica é a de que aquilo que constitui problema para um dos pensadores não
constitui para o outro.
13
Veja-se, no Ménon a desqualificação da hipótese segundo a qual “a virtude é saber” não só pelo facto
de se não encontrarem na cidade mestres e aprendizes de virtude (89a-e), como pela necessidade
estratégica de conceder que Ménon e Ânito nalguma coisa se distinguem dos seus concidadãos (93a-95b,
96d-97c).
A solução é proporcionada pelo método “diaporético”, que associa
esses conceitos às diversas “dificuldades” (aporias), sobre os quais a
tradição reflexiva grega se debruçou14. Um excelente exemplo do
funcionamento da metodologia é o do tratamento aristotélico da
noção de “causa”.
O estudo da tradição cosmológica mostra que a generalidade dos
pensadores se entregou à procura de uma causa para o cosmos.
“Explorando bem” as dificuldades com que se confrontaram, o
Estagirita chega à sua formulação da teoria, segundo a qual a causa
se diz de quatro modos. Que lhe diz o estudo da tradição?
Os Milésios começaram por identificar a causa formal com a material.
Anaxímenes e os outros pensadores separaram-nas, mas só Platão, e
em parte os Pitagóricos, compreenderam a importância da causa final
e do “princípio do movimento e do repouso”. Finalmente, o próprio
Aristóteles será o responsável pela forma definitiva da teoria.
A enorme inovação da prática da problematização por Aristóteles
reside na possibilidade de constituir sempre novos objetos cognitivos,
operando dialeticamente pela divisão do género em espécies,
separadas pelas suas diferenças. Mas o filósofo distingue-se ainda
dos que o precederam por ter percebido que o Ser, colocado no topo
da pirâmide conceptual, não pode ser encarado como um género, sob
pena de funcionar a um tempo como sujeito e predicado.

II
1. Refletir e problematizar na sala de aula

Perguntemos agora se as práticas da reflexão e problematização


podem ser aplicadas no ensino da Filosofia. Na sua simplicidade, o
processo não se afasta do seguido por quem quer que se confronte
com um problema, seja qual for o seu âmbito e dificuldade. Naqueles
14
Significa isto que um “problema”, para Aristóteles, é simultaneamente um phinomenon, algo que
acontece, “o nó da questão” (III1, 995a30-31) e um legomenon, algo diferente, dito por outros acerca das
aporias referidas, que as constitui como tal (II1, 995a25-b4).
com que os alunos aprendem Física e Matemática, as variáveis são
dadas, sendo-lhes atribuído um valor quantitativo. Cabe ao estudante
relacioná-las, na fórmula, ou expressão, adequadas ao caso, de
forma a encontrar a solução.
Nas outras disciplinas científicas, o problema continua presente. Mas
a dificuldade na identificação e quantificação das variáveis torna-o
mais dificilmente perceptível. Nas disciplinas humanísticas também os
problemas ocupam o centro do estudo. Mas aí as dificuldades são de
outra ordem. Antes de mais, porque o problema não é propriamente
apresentado, portanto, não pode ser como tal compreendido, nem
sequer apreciada a sua solução.
A dificuldade é típica, no ensino da filosofia. O estudante conhece o
Cogito cartesiano, sabe que, para Tales, a origem “das coisas” é a
água, ouviu falar do sujeito transcendental. Mas nunca lhe foram
apresentados os problemas para os quais as formulações acima
constituem soluções.
Ignora que, porquê e como, a pergunta sobre a origem do cosmos se
acha associada ao início da tradição reflexiva grega. Não compreende
como a análise da cognição, levada a cabo nas Meditações, inverte a
de Aristóteles, citada acima, reformulando-a a partir da noção de
sujeito. Não tem a mínima possibilidade de compreender como a
concepção kantiana de sujeito transcendental elabora a de “alma”, na
filosofia platónica.
Por outro lado, há dificuldades didáticas impedindo a sua percepção
dessas relações. Sendo a aprendizagem avaliada a partir da
capacidade, patenteada pelo aluno, de assimilar e reproduzir
formulações, não lhe é pedida atenção para o modo como essas
formulações são atingidas. Escapa-lhe que constituem soluções para
os problemas com que os seus autores se confrontaram.
Pelo contrário, é na vida que os problemas os assaltam. Mas aí são
mais difíceis de resolver porque parecem não ter solução. Os jovens
pensam assim por confundirem o problema com o encontro da
solução, sem perceberem que a solução faz parte do problema; que é
algo que falta e tem de ser incluído, ou que está a mais e tem de ser
afastado. Não aprenderam a definir e relacionar variáveis, de forma a
encontrar as respostas que em alternativa competem como soluções.
Muito menos ainda vêem que os jogos podem ser reduzidos a não
mais que narrativas unificadoras de conjuntos de problemas. Por
exemplo, numa partida de futebol, cada vez que um gol é marcado,
um jogador resolveu com sucesso um complexo problema de física,
envolvendo inúmeras variáveis: força do remate, local de aplicação
da parte do corpo adequada, ângulo, direção, ponto visado, tentando
atingir a baliza, de forma que os defensores lhe não possam chegar.
Pois não podemos esquecer que o goleiro não está em campo só para
ver passar a bola.

2. Educar para a problematização

A consideração do exposto deve fazer-nos pensar nas questões


básicas que a Escola deverá fornecer ao aluno: a informação e o
desenvolvimento das competências adequadas à sua utilização.
Nenhum aluno deve sair da escola sem ter compreendido o que é um
problema e ter aprendido a enunciá-los e resolvê-los.
Para tal precisa de saber usar a linguagem, para ler e escrever,
comunicar e se expressar. Concomitantemente, deverá aprender a
aplicar estas competências à resolução de problemas. É aqui que a
dimensão problemática, no ensino das Humanidades, começa a
manifestar-se.

3. 1 Alfabetização e letramento

Durante muito tempo pensou-se que a aprendizagem das letras


terminava quando o sujeito aprendia a ler. Mas o conceito de
“letramento” veio pôr o problema noutras bases. Mostrou que a
educação de um cidadão se manifesta na sua capacidade de decifrar
as mensagens que lhe são dirigidas, de forma a responder-lhes com
eficácia.
A exigência prova que, ao contrário da alfabetização, em sentido
estrito, o letramento é um processo em curso, a ser prosseguido
durante toda a vida. E a Escola é o local privilegiado para dar
continuidade à tarefa iniciada em casa, no seio da família. Mas, como
poderá o estudante fazê-lo?

2.1.1 O lugar dos clássicos na educação

Os textos clássicos, literários e filosóficos, são aqueles em que a


Língua se mostra na plenitude dos seus recursos expressivos e
críticos, e as questões por ela tratadas, em toda a sua roupagem
artística, constituem o tesouro e a herança que a Cultura entrega ao
jovem. Enquanto não for capaz de os ler, a sua educação, numa
sociedade letrada, o seu letramento, não poderá considerar-se
concluído, pois não a tem percepção da sua identidade cultural, que a
leitura dos textos clássicos está destinada a proporcionar-lhe. Este é
o ponto em que o ensino das Humanidades ganha o seu mais fundo
sentido, no currículo escolar.

2.1.1.1 A função do texto

Como poderá então a Escola ajudá-lo a descobrir quem é? Antes de


mais, levando-o a compreender que todo o ensino das Humanidades
– Língua, Cultura, Literatura e Filosofia – constitui uma introdução à
descoberta do que é ser Homem.
A história que os textos clássicos narram é a da Humanidade, da qual
cada jovem começou a fazer parte quando nasceu. A formação
acelerada a que é submetido na Escola, feita com vista à sua rápida
inserção na sociedade, muitas vezes no mercado de trabalho apenas,
inunda-o de informação, momentaneamente secundarizando o
problema de saber quem é.
É pela comparação e identificação com os heróis das narrativas
clássicas que se espera que a sua personalidade se desenvolva. Por
essa razão, realizada a tarefa da aprendizagem da leitura e escrita, e
a par da instrução técnica pela qual cada um eventualmente optou, o
estudo dos textos clássicos impõe-se como exigência incontornável,
pois é neles que o jovem encontra os problemas das diferentes
culturas e sociedades em que ele e as “suas” personagens vivem.
Mas há sempre traços em comum. Pois, um texto só é considerado
“clássico” quando lhe é conferida uma importância que excede os
limites da época em que foi criado, e reconhecida a sua persistência
até à atualidade. É precisamente porque esses textos são “clássicos”
que a sociedade confia à Escola a tarefa de os preservar, promovendo
o seu estudo pelas novas gerações. Mas é claro que não pode haver
educação sem decifração e entendimento dos textos.
Isto, porque, seja ficção, seja ensaio, todo o texto literário constitui
um problema e pode ser avaliado como tal. O seu estudo deverá ter
como finalidade a confrontação dos estudantes com os obstáculos
que as personagens têm de vencer. Tal como às disciplinas
humanísticas, em geral, caberá realizar essa tarefa, à Filosofia
compete dedicar-se ao estudo dos textos compostos por filósofos.
No entanto, uma vez que, por razões que não importa abordar aqui,
os textos são sistematicamente reduzidos a conteúdos pelos
compêndios e apostilas, mesmo quando trabalhados na Escola,
perde-se o seu sentido problemático. Aí os estudantes encontram
apenas soluções, que são obrigados a memorizar, sem nunca
perceberem que só vertida no problema a solução tem sentido, pelo
facto de ser a solução para aquele problema.
Seria necessário inverter esta tendência para degradar o ensino em
conteúdos. Todavia, para levar à prática um projecto de ensino e
aprendizagem, concordantes com a concepção exposta, será
necessário divisar programas, ementas e estratégias e buscar todo o
apoio dos professores e estudantes. Só o concurso de todos permitirá
iniciar a aventura da exploração do texto, e depois talvez, do seu
autor.

2.1.1.1 Proposta sumária de metodologia de análise

Estudar um texto filosófico é ser capaz de responder com êxito a três


tipos de questões:
1. Quais são os seus pressupostos e finalidade?
2. Estão bem construídas as expressões a que recorre?
3. Qual é o significado destas expressões?
O primeiro nível é o pragmático. Confronta-se com o problema posto
pela unidade do texto, questionando a sua razão de ser. Mas as
respostas que suscita não podem ser definitivas. Quem pode entrar
na mente de um autor, a ponto de poder garantir que um texto
responde a um ou outro problema, propondo esta ou aquela solução?
Quem pode pretender que a proposta vale para leitores de diversos
tempos e sociedades?
O segundo nível, sintático, apresenta menor dificuldade, pelo fato de
se concentrar na análise de formulações específicas. Mais delicado
será, porém, o terceiro, semântico, pois visa a compreensão do
sentido dessas formulações. E não só na época e cultura do autor do
texto, como nas dos que o lêem e interpretam. Para além da
dificuldade cultural, as eventuais diferenças linguísticas contribuem
para pesar sobre ele.
No plano pragmático, a leitura dos três primeiros capítulos do Livro I,
da Metafísica, da qual partimos, supõe todo um programa de estudo,
susceptível de conferir sentido às propostas que o seu autor aí
avança. Mas é bem claro que esse programa só pode ser
reconstituído conjecturalmente, já que o autor não o deixou escrito. É
nessa conjectura que consiste o trabalho de interpretação. O seu
valor depende da inteligência que permite do texto, e, bem
entendido, da sua coerência interna e externa, pelo menos.
No plano pragmático, a finalidade de Aristóteles no trecho estudado é
apresentar a sua concepção da “ciência que se busca”, integrando
nela a teoria de que a causa se diz de quatro maneiras. Ao leitor
caberá perguntar-se sobre a razão de ser da busca a que o autor se
entrega.
Para tal, expõe uma concepção unificada do conhecimento, das
sensações à “sabedoria” (I, 1). Após a consideração das
características desta ciência (I2, 982a4-b10), detém-se na génese da
tradição, aludindo à função que a aporia desempenha no início da
reflexão (I2, 982b12-22). Termina com a análise da tradição, que
afirma ter sido iniciada pelos Milésios (I, 3 sqq).
Vejamos agora a análise semântica do argumento platónico sobre a
justiça. O postulado avançado em (1.) não passa de uma hipótese.
Se ela for aceita, (2. e 3.) podem ser considerados. Que “realidade”
encontramos em expressões como “alma” e “partes da alma”? Poderá
ser-lhes atribuída a regulação por meio de virtudes? Qual é a função
da virtude na ética grega?
A análise psicológica das motivações do comportamento individual é
emparelhada com a análise sociológica da cidade. Será legítima esta
estratégia, por exemplo, só na Antiguidade, ou em qualquer tempo e
cultura? As perguntas procuram apenas exemplificar como algumas
formulações do texto podem ser abordadas, no plano semântico.
Um último ponto, ainda. Avançar propostas sobre a leitura de um
texto implica, no nível pragmático, estabelecer relações com a
totalidade, ou apenas uma significativa parte da obra de um autor.
Transpor estas relações para o ensino implica acrescentar um grau de
dificuldade à interpretação proposta.

3. O lugar da filosofia nos ensinos médio e superior


Ao longo deste texto, o termo ‘filosofia’ tem sido usado com dois
sentidos distintos. Com “f” minúsculo, designa a actividade reflexiva,
a tradição epistémica, a disciplina científica; com maiúsculo, a
disciplina que integra os currículos do ensino superior e, nalguns
países, médio. Esta ambiguidade não será lesiva do argumento
exposto, já que a identificação da filosofia com a reflexão lhe confere
um sentido forte, em qualquer das acepções registradas.
A partir dos clássicos gregos, caracterizámos a filosofia como uma
actividade reflexiva, que expressa no saber a sua capacidade de
problematização da realidade e dos diversos domínios da ação
humana. Notámos que esse saber se acha condensado em textos,
que a Cultura preservou, com vista à formação das gerações
vindouras. Considerámos “letramento” o processo pelo qual os
cidadãos são preparados para decifrarem as suas mensagens.
Haverá, porém, que distinguir níveis na aplicação desta concepção.
Os filósofos e professores de filosofia trabalham textos filosóficos ao
produzirem os seus próprios textos, tanto os que destinam aos seus
leitores, quanto à sua carreira académica. No primeiro caso, a
produção visa a intervenção crítica na sociedade e na cultura; no
segundo, serve uma intenção científica, por vezes puramente
exegética. É à imagem desta última que os estudantes devem
adequar a sua produção, ao longo da sua carreira universitária. É
ainda ela que o ensino médio deve imitar, embora como exercício
propedêutico.
Defendemos, portanto, que a filosofia ocupa um lugar decisivo no
currículo dos vários níveis de ensino, promovendo a aquisição de
competências, no domínio da compreensão e crítica dos discursos que
cada sociedade tem como culturalmente significativos. Ensina os
jovens a lerem e a escreverem, a comunicar e expressar-se,
decifrando já não sinais gráficos, mas o sentido das mensagens que
estes preservam, para a sociedade e a cultura que lhes conferem
relevância. Por fim, prepara-os para resolverem os problemas que
lhes vão surgindo no curso da sua existência. É especialmente
relevante o desenvolvimento da capacidade de problematização, da
compreensão de que qualquer dificuldade posta pela vida pode ser
abordada como um problema, que tem de ser enunciado e resolvido.
Depois de demasiados anos a ouvir dizer que a filosofia não serve
para nada, parece-nos relevante mostrar que tem um sentido e
desempenha uma função no ensino e aprendizagem das
Humanidades, na formação do cidadão livre e responsável.

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