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358 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.2, p. 357-364, jul./dez. 2003
(Lourenço Filho, 1996). Discípulo dileto de tal aos jovens e adultos analfabetos. Em 1947,
Sampaio Dória, seria indicado, pelo mestre, em iniciou e coordenou a Campanha de Educação
1920, para assumir, como substituto, a cadeira de de Adultos, inaugurando a inserção da alfabe-
Pedagogia e Educação Cívica na Escola Normal tização de jovens e adultos nas políticas públi-
Primária anexa à Escola Normal da Praça. Em cas do Estado. Signatário do Manifesto dos
1921, foi nomeado professor da Cadeira de Pioneiros da Educação, de 1932, destacou-se
Psicologia e Pedagogia da Escola Normal de como notável defensor e divulgador do pensa-
Piracicaba. Logo em seguida, por solicitação do mento comprometido com a renovação educa-
governo do Ceará e por indicação do governo de cional do país.
São Paulo, assumiu a Direção da Instrução Pública Quando o Instituto de Educação foi in-
daquele estado, aí permanecendo até 1923. Após corporado à Universidade de São Paulo, Fernando
reassumir sua cadeira na Escola Normal de Pira- de Azevedo já era um dos educadores mais pres-
cicaba, foi nomeado, em 1925, para a cadeira de tigiados do país. Fora o responsável pela reforma
Psicologia e Pedagogia da Escola Normal Secun- do ensino no Distrito Federal. Redigira o “Mani-
dária da Praça, onde permaneceu até novembro de festo dos Pioneiros da Educação Nova”. Logo em
1931. Em outubro de 1930, foi nomeado Diretor seguida, teria importante participação na funda-
Geral da Instrução do estado de São Paulo. Em 19 ção da Universidade de São Paulo.
de dezembro de 1931, transferiu-se para o Rio de O Manifesto continha posições inegavel-
Janeiro, para assumir a chefia de gabinete do Mi- mente avançadas. Para os educadores empenha-
nistério da Educação e Saúde. dos na construção de um sistema de ensino mais
É importante salientar que Lourenço justo, respeitadas as diferenças de época e de
Filho viveu os primeiros tempos de sua forma- conjuntura, muito do que defendia continua
ção intelectual no âmbito de um movimento tendo validade, ou como afirmação de valores e
radical de afirmação da necessidade de educa- objetivos a serem alcançados ou como orienta-
ção para todos (Beisiegel, 1999). Tratava-se, até ções para a realização da pesquisa educacional.
então, de estender o ensino fundamental a to- O próprio relator o entendia como um divisor de
das as crianças. As necessidades educacionais de águas da opinião pública e dos educadores entre
jovens e adultos não-escolarizados deveriam es- duas correntes, “a do pensamento conservador,
perar ainda pouco mais de uma década para co- se não reacionário, e a dos renovadores” (Aze-
meçarem a despertar a atenção dos responsáveis vedo, 1958, p. 55). Essa orientação renovado-
pela política educacional do Estado brasileiro. ra estava presente, entre muitos outros itens, na
Lourenço Filho teve atuação relevante afirmação das finalidades da educação nova,
em quase todos os setores da educação nacio- como “uma reação categórica, intencional e sis-
nal por um longo período, desde os primeiros temática contra a velha estrutura do serviço
anos da década de 1920. Suas contribuições educacional (...)”, uma educação nova que, dei-
para a definição de campos de pesquisa na área xando de servir aos interesses de classes,
da educação foram amplas e diversificadas.
Pelo maior alcance, cabe destacar sua partici- a que tem servido, (...) deixa de constituir um
pação na criação e na direção do Instituto privilégio determinado pela condição econômi-
Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP). Em ca e social do indivíduo, para assumir um “ca-
boa parte como conseqüência dos estudos pro- ráter biológico”, com que ela se organiza para
movidos pelo INEP e atendendo às preocupa- a coletividade em geral, reconhecendo a todo o
ções despertadas pelo recenseamento geral do indivíduo o direito a ser educado até onde o
país, Lourenço Filho, já a partir dos primeiros permitam as suas aptidões naturais, indepen-
anos da década de 1940, começou a articular dentemente de razões de ordem econômica e
o projeto de extensão da educação fundamen- social. (Azevedo, 1958, p. 64)
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Como decorrência da defesa desse direi- termos do Decreto nº 6.283, de fundação da Uni-
to de cada indivíduo à sua educação integral, versidade de São Paulo. No estudo sobre as con-
impunha-se ao Estado o “dever de considerar a cepções que orientaram a criação da nova uni-
educação, na variedade de seus graus e manifes- versidade, Antunha atribui especial importância à
tações, como uma função social e eminentemente idéia de construir a Universidade de São Paulo
pública, que ele é chamado a rea-lizar, com a com base numa Faculdade de Filosofia, Ciências
colaboração de todas as instituições sociais” (Ibid., e Letras, encarregada do cultivo de todos os ra-
p. 66). Ainda como decorrência dessa concepção mos do saber, da promoção do ensino das disci-
de educação, defendia a laicidade, que situa a plinas de caráter não-utilitário, da realização de
escola acima de crenças e disputas religiosas; a pesquisas científicas e altos estudos de caráter de-
gratuidade, extensiva a todas as instituições ofi- sinteressado, de realizar cursos básicos de disci-
ciais de educação e a obrigatoriedade, que por plinas comuns a outros institutos universitários e
falta de escolas ainda não se realizava nem no de colaborar na formação de professores. Ainda
ensino primário, mas que deveria estender-se pro- segundo Heladio Antunha, nesses momentos ini-
gressivamente até aos dezoito anos, uma idade ciais de implantação, “a peculiar concepção dos
conciliável com o trabalho produtor. objetivos e das funções integradoras da Faculda-
Entre muitos outros aspectos de grande de de Filosofia é que dava ao modelo paulista a
interesse para a reflexão e a pesquisa no campo sua característica própria e inconfundível”
educacional, o Manifesto tratava da questão (Antunha, 1974, p. 87).
crucial do planejamento da reconstrução educaci- Mas, sob o ponto de vista da formação
onal. Apontava, antes de tudo, para a necessida- das orientações da pesquisa, talvez a mais impor-
de de corrigir a “falta de continuidade e articula- tante das decisões sobre a organização da nova
ção do ensino, em seus diversos graus, como se escola tenha sido a de contratar professores es-
não fossem etapas de um mesmo processo...”. A trangeiros para iniciar, na Faculdade de Filosofia,
escola primária deveria articular-se com uma edu- “sem os impedimentos do regime de cátedras, o
cação secundária unificada, com base comum de estudo das disciplinas ainda não consolidadas no
três anos, que deixaria de ser “a velha escola de um país”. Foi possível, assim, aprofundar na universi-
grupo social”, para ser um “aparelho flexível e vivo, dade a construção de uma tradição de pesquisas
organizado para ministrar a cultura geral e satisfa- e de altos estudos, “com a conseqüente formação
zer às necessidades práticas de adaptação à vari- de um novo quadro de intelectuais e de especia-
edade dos grupos sociais”. Defendia, ainda, a ne- listas de alto gabarito” (Ibid., p. 45).2 A instituição
cessidade de “uma reforma integral da organiza- do tempo integral, a valorização dos laboratórios
ção e dos métodos de toda a educação nacional”, e o cuidado na constituição das bibliotecas univer-
para substituir o conceito estático do ensino por sitárias, entre outras medidas, favoreceram a forma-
um conceito dinâmico, que apontasse, “desde o ção de hábitos de trabalho intelectual e o cultivo
jardim de infância até à universidade, não à dos procedimentos da pesquisa científica.
receptividade mas à atividade criadora do aluno”
(Ibid., p. 72). 2. O autor relaciona os professores estrangeiros que lecionaram na FFCL
Fernando de Azevedo continuaria a atu- no período anterior à guerra. Incluem-se, entre eles, Luiggi Fantappié, Gleb
ar na definição das orientações das pesquisas edu- Wataghin, Heinrich Reinboldt, Ettore Onorato, Felix Rawistscher, Ernest
Breslau, Pierre Deffontaines, Michel Berveiller, Robert Garric, Francesco
cacionais da Feusp também durante suas ativida- Piccolo, Paul-Arbousse Bastide, Claude Lévi-Strauss, Edgard Otto Gotsch,
des na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e Francisco Rebelo Gonçalves, Pierre Hourcade, Jean Maugué, Pierre
Monbeig, Fernand Braudel, Ernest Marcus, Paul Shaw, François Perroux,
no Centro Regional de Pesquisas Educacionais, que Luigi Galvani, Giuseppe Ungaretti, George Readers, Ottorino de Fiore di
dirigiu entre 1956 e 1961. Cropani, Heinrich Hauptmann, Roger Bastide, Jean Gagé, Pierre Froment,
Atilio Venturi, Fidelino de Figueiredo, Alfred Bonzon informa, ainda, que o
A Faculdade de Filosofia, Ciências e Le- fluxo de professores, praticamente interrompido com a guerra, prosseguiu
tras foi criada em 25 de janeiro de 1934, nos depois de 1945, embora com menor intensidade.
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Aperfeiçoamento do Magistério, o CRPE/SP teve permutar comunicações, para manter-se atualiza-
Fernando de Azevedo como seu primeiro dire- do sobre os progressos realizados no país e no
tor. O novo órgão acompanhava os objetivos exterior nesse domínio de estudos e atividades
fixados para o Centro Brasileiro: (Ferreira, 2001, p. 29). Esse plano, fixado em ja-
neiro de 1957, formalizava programação que em
1. pesquisa das condições culturais e escola- boa parte já vinha sendo seguida nas divisões do
res e das tendências de desenvolvimento de CRPE. Em correspondência dirigida a Fernando de
cada região e da sociedade brasileira como Azevedo, em 24 de outubro de 1956, Anísio
um todo, para o efeito de conseguir-se a ela- Teixeira já havia delineado as orientações dos
boração gradual de uma política educacional trabalhos do Centro para os anos seguintes.
para o país; Nessa carta, Anísio Teixeira expunha
2. elaboração de planos, recomendações e suas idéias a respeito da pesquisa educacional
sugestões para a revisão e a reconstrução e dos trabalhos que deveriam ser empreendidos
educacional do país em cada região pelo CRPE. Começava por recomendar a neces-
nos níveis primário, médio, e superior e no sidade de transmitir,
setor de educação de adultos;
3. elaboração de livros de fontes e de textos, a todo o sistema escolar, da classe à sala do dire-
preparo de material de ensino, estudos espe- tor, a idéia de que todo esse imenso aparelho é
ciais sobre administração escolar, currículos, um aparelho de coleta e registro de fatos; que
psicologia educacional, medidas escolares, tais fatos constituem a matéria-prima para a pes-
formação de mestres e sobre quaisquer ou- quisa, e que, portanto, se forem melhoradas as
tros temas que concorram para o aperfeiçoa- formas de registro dos fatos e os mesmos se fize-
mento do magistério nacional; rem cumulativos – na escola e na classe – encon-
4. treinamento e aperfeiçoamento de admi- trará sempre um material abundantíssimo para o
nistradores escolares, orientadores educacio- estudo dos alunos, dos métodos e do conteúdo do
nais, especialistas de educação e professores ensino. Isso posto, um dos primeiros trabalhos-
de escolas normais e primárias. raiz do Centro seria o preparo de formulário e fi-
chas para o registro de fatos escolares. Substituir
De acordo com o “Plano de Organização o espírito puramente estatístico ou, se quiser,
do CRPE de São Paulo”, (Ferreira, 2001, p.29) quantitativo dos registros escolares, pelo qualita-
para atender a esses objetivos, o Centro propu- tivo. Haveria então uma ficha do aluno, desenvol-
nha-se a empreender e financiar levantamentos, vida e cumulativa, que nos daria a história do
inquéritos e pesquisas educacionais e sociais; aluno na escola. Uma ficha idêntica do professor.
promover experiências e demonstrações práticas E, possivelmente, outra de fatos escolares, algo
de novas técnicas de ensino em suas escolas ex- como o diário de bordo de um navio. Com esses
perimentais; contribuir para a complementação da três documentos, teríamos sempre um conjunto de
formação, o aperfeiçoamento e a especialização fatos seguidos e, repito, acumulados, isto é, lon-
dos professores diplomados pelas escolas nor- gitudinais sobre o aluno, o professor e a escola:
mais; aproveitar os resultados das pesquisas para verdadeiro tesouro para pesquisas de toda espécie.
o aperfeiçoamento das reformas educacionais em Segundo – Além da acumulação desse material, o
andamento e para o planejamento da reconstru- professor e o diretor da escola seriam instruídos de
ção educacional do país; procurar esclarecer pro- que eles sempre se poderiam dirigir ao Centro para
fessores, diretores e inspetores de escolas sobre os estudar problemas que lhes tivessem surgido e que
problemas de educação, por meio de publicações não tivessem capacidade de resolver. Deste modo,
ou diretamente, atendendo a pedidos e consul- não seriam apenas coletores de fatos, mas pes-
tas; divulgar os trabalhos científicos realizados e soas que estariam refletindo sobre esses fatos e
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ram-se novos grupos de pesquisa, com associação um “ethos” acadêmico solidamente assentado nas
de pesquisadores da Feusp a colegas de outras raízes da instituição.
unidades universitárias do estado, do país e do Não obstante a atual multiplicação de
exterior. Nesse período, muitos professores da campos de interesse, a diversificação das filiações
Faculdade de Educação aprofundaram a interação intelectuais e o crescente aprofundamento das
com docentes de outras unidades da USP, de especialidades, as marcas de origem na Faculdade
outras universidades e dos sistemas federal, esta- de Filosofia continuam presentes nos hábitos de
dual e municipal de ensino. Com maior velocida- trabalho e na permanente exigência de rigor nas
de, a partir dos últimos anos da década de 1980, investigações. Ao mesmo tempo, guardadas as di-
intensificaram-se os contatos com universidades ferenças de tempo e de circunstâncias, é razoável
do exterior. A inserção internacional da Faculdade afirmar-se que a Feusp continua ao menos par-
cresceu significativamente, com ativa interação cialmente fiel às orientações de seus precursores.
dos pesquisadores com colegas e instituições es- Continua sendo intensa e significativa a participa-
trangeiras, sobretudo em Portugal, Espanha, Fran- ção de professores da Faculdade na orientação e
ça, Inglaterra, Alemanha, Itália, Estados Unidos, na condução de políticas públicas de educação no
Japão, Cidade do Vaticano e, especialmente, paí- país, no estado e em numerosos municípios. Em
ses da América Latina. Nesse quadro de multiplica- parte significativa das pesquisas e dos estudos rea-
ção dos contatos, de diversificação das eventuais lizados na Faculdade, reencontram-se orientações
fontes de referências e de crescente especialização e preocupações identificadas com os valores da
das áreas de estudos e pesquisas, aumentaram con- educação democrática. Há, nesses trabalhos, um
sideravelmente também as alternativas de orienta- claro compromisso com a educação pública. E, à
ção intelectual dos docentes e de influência na medida que a escola pública vai-se identificando
definição dos respectivos campos de investigação. principalmente com a educação das grandes mas-
Percebe-se, porém, que pelo menos uma sas populares, numerosos estudos, pesquisas e
parte dos estudos e pesquisas realizados pelos atividades da instituição passaram a orientar-se para
professores da Faculdade ainda tende a preservar os imensos desafios colocados pela educação
um núcleo de características comuns, algo como popular, em todos os níveis do ensino.
Referências bibliográficas
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VIDAL, D. (Org.) Na batalha de educação: correspondência entre Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo (1929-1971). Bragança
Paulista: Edusf, 2000.
Celso de Rui Beisiegel é Professor Titular da Faculd ade de Educação da Universidade de São Paulo.