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Quando tinha onze anos, o meu pai deu-me um livro fascinante escrito por Albert
Einstein e Leopold Infeld, chamado A Evolução da Física. Logo nas primeiras linhas o
livro compara a ciência a um romance policial. A diferença estará em que a ciência
procura descobrir não quem foi o culpado, mas porque é o mundo como é.
Como em todos os bons mistérios, é frequente os investigadores desviarem-se do
caminho certo. Vezes sem conta têm de começar de novo, separando as pistas falsas das
verdadeiras. Mas chega finalmente o dia em que reúnem elementos em número
suficiente para lhes poderem aplicar essa ferramenta humana de poder inigualado que é
a capacidade de dedução, e desse modo começarem a perceber o que se passou. Tendo
elaborado uma teoria do mistério em estudo, fazem então algumas conjecturas, as quais
serão em seguida postas à prova para — assim se espera — resolver o mistério.
Contudo, alguns parágrafos mais à frente, a analogia com o romance policial é
abruptamente abandonada. Dizem-nos que os cientistas enfrentam um dilema que nunca
aflige quem combate o crime. No jogo de desvendar o mistério do universo, os
cientistas nunca podem dizer «caso encerrado». Quer gostem quer não, nunca têm entre
mãos um mistério, mas sim uma pequena fracção de um enorme conjunto de mistérios
interdependentes. Sucede com frequência que a mais recente solução de uma parte do
enigma indique que certas soluções encontradas anteriormente para outras partes desse
enigma afinal estão erradas, ou pelo menos precisam de ser reanalisadas. Pode dizer-se
com grande rigor que o jogo da ciência é um interminável insulto à inteligência humana.
Mau grado a «indignidade» a que a física nos sujeita, ela fascinou-me de imediato.
Gostei particularmente da maneira como são apresentados os mistérios do universo:
através de perguntas que parecem superficialmente muito simples, mas têm na verdade
um significado extremamente profundo; vêm, além disso, envoltas nas belas roupagens
das experiências conceptuais e da lógica pura.
Mas foi só bem depois de ter iniciado a minha carreira como físico que me apercebi
de que muitos, talvez a maior parte, dos problemas da física não são abordados de forma
fria e racional; pelo menos não a princípio. Antes de sermos cientistas somos Homo
Sapiens, uma espécie que, pese embora o seu pomposo nome, obedece mais às emoções
do que à razão. Nem sempre descartamos cuidadosamente as pistas falsas ou as
suposições erróneas ou resolvemos os nossos problemas pelas técnicas mais racionais.
Nos primeiros estádios do desenvolvimento de uma ideia, comportamo-nos mais
como artistas, impulsionados pelo temperamento e pelo gosto pessoal. Por outras
palavras, começa-se com um palpite, uma impressão, um desejo até, de que o mundo
seja de uma determinada maneira. Partimos então desse pressentimento, permanecendo-
lhe fiéis mesmo que os dados observacionais apontem há muito no sentido de estarmos
a entrar num beco sem saída, arrastando connosco aqueles que acreditam em nós. Mas o
que acaba por nos salvar é que a experiência é o juiz derradeiro, o que resolve todos os
desentendimentos. Por mais bem fundamentado que o nosso palpite seja, por melhor
que o formulemos, chegará a altura de o pormos à prova contra a dura realidade dos
factos. Caso contrário, por mais apegados que estejamos às nossas convicções, elas
disso não passarão.
1
Capº 2 do livro MAIS RÁPIDO QUE A LUZ - a biografia de uma especulação científica, de João
Magueijo. Lisboa: Gradiva, 2003.
—2—
Isto dá-se com particular intensidade no campo da física conhecido por cosmologia –
o estudo do universo como um todo.
A cosmologia não estuda esta estrela aqui ou aquela galáxia ali: a isso chama-se
normalmente astronomia. Para um cosmólogo, as galáxias são as moléculas de um
fluido altamente invulgar a que chamamos fluido cosmológico. Os cosmólogos ocupam-
se precisamente do comportamento global deste fluido que contamina tudo.
A astronomia trata das árvores: a cosmologia trata da floresta. É desnecessário
acrescentar que se trata de um campo fértil em especulações. Os mistérios da
cosmologia embrenharam-nos num complicado romance policial, pleno de pistas,
deduções e factos empíricos, caminhos que não levam a nada. Inevitavelmente, partes
do romance também mostram os físicos a confiar mais em palpites e especulações do
que a maior parte deles gostaria de admitir.
A cosmologia foi durante muito tempo um assunto religioso. É espantoso que se tenha
tornado um ramo da física. Que razões temos para esperar que um sistema tão complexo
como o universo possa ser tratado cientificamente? A resposta irá talvez surpreendê-lo:
pelo menos no que diz respeito às forças que o governam, o universo não é assim tão
complexo. É muito mais simples do que, por exemplo, um ecossistema ou um animal. É
mais difícil descrever a dinâmica de uma ponte suspensa do que a do universo. Uma vez
percebido isto, estão abertas as portas à cosmologia como disciplina científica.
O principal passo consistiu na descoberta da teoria da relatividade, juntamente com a
melhoria de qualidade das observações astronómicas. Os heróis deste romance são
Albert Einstein, o astrónomo e advogado americano Edwin Hubble, e o físico e
meteorologista russo Alexander Friedmann. Juntos, os três combinaram a invariância da
velocidade da luz e as suas incríveis consequências com um mistério maior – as origens
do nosso universo. E tudo começou com um sonho.
Na adolescência, Albert Einstein teve um sonho muito estranho. Este sonho afectou-o
profundamente durante muitos anos, e esta obsessão acabaria por se transfigurar em
muitas reflexões profundas. Estas reflexões viriam a alterar dramaticamente a nossa
compreensão do espaço e do tempo, e até mesmo a nossa percepção de toda a realidade
física que nos rodeia. Efectivamente, elas puseram em marcha a mais radical revolução
científica desde Isaac Newton, pondo em causa a rigidez do espaço e do tempo, de que a
nossa cultura ocidental se encontra imbuída.
O sonho de Einstein foi assim:
Numa enevoada manhã de Primavera, Einstein passeava ao longo de um caminho nas
montanhas, paralelamente a um ribeiro ondulante que descia dos picos com neve.
Embora o duro frio já pertencesse ao passado, estava ainda fresco, à medida que os raios
do Sol começavam lentamente a romper por entre a neblina. O canto ruidoso dos
pássaros elevava-se acima dos sons das águas, que jorravam em tumulto. As encostas
estavam cobertas por densas florestas, interrompidas aqui e ali por enormes penhascos.
À medida que o caminho descia, a paisagem ia-se abrindo, dando lugar a clareiras
cada vez maiores e a pequenos prados. Apareceram então ao longe vales suspensos, nos
quais Einstein podia descortinar um grande número de campos, todos marcados
inconfundivelmente pela presença humana. Alguns destes campos estavam cultivados e
separados por vedações de formas mais ou menos regulares. Noutros, podiam ver-se
vacas pastando preguiçosamente nos prados.
—3—
O sol penetrava agora com mais confiança na neblina, diluindo-a ao ponto de tudo
parecer ligeiramente desfocado. Einstein começava a distinguir pormenores dos campos
mais abaixo. Era comum por estas bandas dividir os campos com vedações de arame
electrificado. Estas vedações eram mesmo muito feias, e a maior parte delas não parecia
sequer funcionar. De facto, viam-se vacas com a cabeça enfiada entre os fios, pastando
do campo vizinho, sem qualquer respeito pela propriedade privada...
Ao chegar ao prado seguinte, Einstein foi examinar a vedação electrificada. Tocou-lhe
e, conforme esperava, não sentiu nenhum choque – não admirava que as vacas não
ligassem nenhuma à vedação. Enquanto brincava com a vedação, Einstein viu um
grande vulto caminhando do outro lado do campo. Era um agricultor que transportava
uma bateria nova para um barracão ali situado. O agricultor chegou ao barracão e entrou
para substituir a bateria velha, que estava descarregada. Olhando pela porta aberta do
barracão, Einstein viu-o ligar a bateria nova e, precisamente nesse instante, todas as
vacas se afastaram da vedação de um salto. Todas exactamente ao mesmo tempo.
Seguiram-se longos mugidos de desagrado.
Einstein continuou a caminhar e quando chegou ao outro lado do campo já o
agricultor ia a voltar para casa. Cumprimentaram-se educadamente, tendo em seguida
travado um estranhíssimo diálogo, como só acontece nas trevas alucinadas dos sonhos.
«As suas vacas têm reflexos extraordinários», disse Einstein. «Agora mesmo, assim
que o senhor ligou a bateria nova, todas saltaram ao mesmo tempo.»
Figura 2.1
Ao ouvir isto o agricultor mostrou-se confuso e olhou para Einstein com ar incrédulo:
«Saltaram todas ao mesmo tempo? Obrigado pelo elogio, mas as minhas vacas não
estão com o cio. Eu também olhei para elas ao ligar a bateria nova, porque estava a
tentar pregar-lhes um susto de morte: gosto de pregar partidas às minhas vacas. Nos
primeiros instantes depois de ligar a bateria não aconteceu nada, depois vi a vaca que
estava mais próxima de mim dar um salto, depois a vaca seguinte, depois a outra e a
outra, sempre por ordem, até todas terem saltado.»
Agora era Einstein que estava confuso. Estaria o agricultor a mentir (figura 2.2)? Mas
porque lhe mentiria ele? No entanto, Binstein tinha a certeza do que tinha visto: no
momento em que o agricultor ligara a bateria nova todas as vacas, da primeira à última,
tinham saltado exactamente ao mesmo tempo. A verdade é que não fazia sentido ter
—4—
uma discussão por causa disto, mas Einstein começava a sentir vontade de estrangular o
agricultor.
Foi então que Einstein acordou. Que sonho tão parvo – e logo com vacas…, e porque
tinha sido ele acometido de patéticas tendências homicidas? Era melhor esquecer
tamanhos disparates.
Figura 2.2
Todavia, muitos sonhos estranhos têm um significado profundo que só mais tarde se
torna evidente. E assim foi: antes de esquecer por completo o seu sonho, Einstein
percebeu o que ele queria dizer. Não passava de um sonho, mas, num certo sentido, um
sonho que apenas exagerara o que acontece no mundo real. A luz desloca-se muito
depressa, mas não a velocidade infinita. A crer no sonho, desta propriedade física da luz
seguir-se-ia uma consequência completamente descabida: o tempo tinha de ser relativo!
O que para um observador é «ao mesmo tempo» não o é necessariamente para outro.
Na verdade, a velocidade da luz é de tal forma elevada que nos parece infinita, mas
isso deve-se às limitações dos nossos sentidos. Experiências cuidadosas ensinam-nos
que a luz viaja a 300 000 km por segundo. É-nos mais fácil aceitar que o som se
propague a velocidade finita porque ele é muito mais lento do que a luz: cerca de 300
metros por segundo. Se der um grito na direcção de um penhasco situado a 300 metros
de distância, ouvirá o seu eco passados 2 segundos: o som demora um segundo a chegar
ao penhasco, onde é reflectido, e faz a viagem de volta noutro segundo, sob a forma de
eco.
Se a luz for reflectida num espelho situado a 300 000 Km de distância, o «eco de luz»
estará de volta dois segundos após esta ter sido emitida. Sabe-se há muito que este
fenómeno afecta as comunicações no espaço, como por exemplo nas viagens à Lua. No
caso de uma viagem a Marte, decorreriam cerca de vinte minutos até que o eco
regressasse. Uma mensagem rádio enviada da Terra demoraria dez minutos a chegar a
Marte, viajando à velocidade da luz, e a resposta dos astronautas demoraria outros dez
minutos a chegar até nós. Seria exasperante ter uma discussão pelo telefone com alguém
na Terra se estivéssemos de férias em Marte.
O sonho das vacas mais não faz do que ilustrar, ainda que de forma extremamente
exagerada, o que se passa na realidade – o que os nossos sentidos detectariam se a
velocidade da luz fosse mais como a velocidade do som. No sonho de Einstein, a
electricidade propaga-se pelos fios à velocidade da luz 2. Logo, a imagem do agricultor
2
Liberdade poética.
—5—
a ligar a bateria desloca-se à mesma velocidade a que a electricidade avança pelo fio.
Ambos chegam à primeira vaca ao mesmo tempo, sofrendo esta um choque. Estamos a
supor que o tempo de reacção da vaca é zero e que por isso as imagens do agricultor a
ligar o fio e da primeira vaca a saltar e a electricidade que avança pelo fio agora se
movem todas lado a lado, aproximando-se de Einsteín.
Quando a electricidade atinge a segunda vaca, ela dá igualmente um salto; a sua
imagem junta-se ao cortejo das imagens do agricultor e da primeira vaca. Temos agora
que as imagens do agricultor a ligar a electricidade e das duas primeiras vacas a saltar se
aproximam de Einstein à mesma velocidade que a corrente que percorre o fio. E por aí
fora, até chegar à última vaca. É por esta razão que Einstein vê o agricultor a ligar a
bateria e as vacas a saltar todas ao mesmo tempo, nesse preciso instante. Se Einstein
tivesse tocado no fio, teria recebido um choque eléctrico e dito Scheisse! exactamente
no instante em que visse acontecer tudo o mais. Einstein não estava a ter uma
alucinação; tudo se tinha passado realmente ao mesmo tempo. Quer dizer, ao mesmo
tempo «dele».
O agricultor tem, porém, um ponto de vista algo diferente. O que ele vê são uma série
de ecos de luz provenientes de reflexões em penhascos/espelhos cada vez mais
distantes. Ligar a bateria é como dar um grito à beira de um precipício. A primeira vaca
dá um salto ao ser atingida pela electricidade: isto é análogo à reflexão do som nas
paredes do precipício. A imagem da vaca a saltar que o agricultor vê é como o eco que
regressa do precipício, e demora portanto algum tempo a chegar; há um intervalo entre
o grito e a chegada do eco. As imagens das restantes vacas a saltar são como ecos
devidos a penhascos cada vez mais longínquos, chegando por isso cada vez mais tarde
— isto é, em instantes sucessivos.
Então o agricultor também não está a ter alucinações: para ele, existe sempre um
intervalo entre o ligar da bateria e o salto dado pela primeira vaca. Ele vê as vacas
saltarem uma após outra e não ao mesmo tempo. Se Einstein tivesse tocado no fio com a
mão, o agricultor tê-lo-ia visto saltar e dizer um palavrão depois de todas as vacas terem
saltado.
Não há contradição entre o que diz o agricultor e o que diz Einstein; não há nada para
discutir. Ambos os observadores estão a contar o que viram, só que viram coisas
diferentes. Se a velocidade da luz fosse infinita, o sonho de Einstein teria sido
impossível. Sendo as coisas como são, trata-se apenas de um exagero.
E no entanto SIM: há uma contradição! O sonho de Einstein revela que não existe o
conceito absoluto de «acontecer ao mesmo tempo», absoluto no sentido de ser comum a
todos os observadores sem qualquer ambiguidade. Em vez disso, o tempo tem de ser
relativo, variando de observador para observador: o que para um são acontecimentos
simultâneos poderá não o ser para outro.
Mas será isto uma ilusão? Ou será o conceito de tempo realmente muito mais
complicado do que aquilo a que estamos habituados? Na nossa experiência diária, se
duas coisas acontecem ao mesmo tempo, todos estão de acordo quanto a isso. Poderia
isto não passar de uma aproximação grosseira? Seria isto que o sonho de Einstein lhe
estava a tentar dizer? Poderia o tempo ser relativo?
No mundo em que Einstein nasceu, os cientistas acreditavam no «universo como
mecanismo de relojoaria». Os relógios marcariam o tempo da mesma maneira em toda a
parte. Cria-se que o tempo fosse a grande constante do universo. De igual forma, o
espaço era concebido como uma estrutura rígida e absoluta. Da conjugação destas duas
—6—
Figura 2.3
Uma vez que o agricultor vê a luz da sua lanterna deslocar-se a 300 000 km/s,
esperará que a vaca A a veja deslocar-se a 200 000 km/s (ou seja, 300 000 km/s menos
100 000 kmls) e a vaca B a 100 000 kmls (ou seja, 300 000 km/s menos 200 000 km/s).
São operações aritméticas elementares, uma vez que todos aprendemos na escola que as
velocidades ou se somam ou se subtraem (dependendo dos seus sentidos relativos).
Logo, para obter a velocidade da luz relativamente a cada vaca, devemos subtrair a
velocidade da vaca à velocidade da luz relativamente a um corpo parado, não é
verdade? Ou será que os chatos dos professores de fisica que tivemos na escola nos
andaram a enganar, como já desconfiávamos?
Infelizmente, se o espaço e o tempo forem como normalmente nos parecem ser, esses
professores deveriam ter razão. Pensemos em dois carros que se deslocam numa estrada
em linha recta a 100 km/h e 200 km/h, tendo partido do mesmo ponto. Significa isto
que, quando o meu relógio me diz que já passou uma hora, um dos carros percorreu 100
km e o outro 200 km. Qual é então a velocidade do carro mais rápido relativamente ao
mais lento?
Bom, é óbvio que ao fim de uma hora o carro mais rápido está 100 km à frente do
mais lento: subtrai-se 100 de 200. A velocidade do carro mais rápido relativamente ao
mais lento é portanto 100 km/h. Tudo isto parece lógico: subtraem-se as distâncias, o
tempo é o mesmo, logo subtraem-se as velocidades. Quem poderia duvidar disto?
Pelo mesmo raciocínio, se eu aponto um raio de luz deslocando-se a 300 000 km/s a
duas vacas que se afastam de mim a 100 000 km/s e 200 000 km/s, estas deveriam ver a
luz deslocar--se a 200 000 km/s e a 100 000 km/s, respectivamente.
Mas mais uma vez as vacas obtêm um resultado estranho: ambas dizem que a luz se
move a 300 000 km/s! Isto é, as vacas não só contradizem a lógica do agricultor, como
se contradizem mutuamente.
Em quem havemos de acreditar, nas vacas ou no professor de fisica? A boa notícia é
que a experiência nos obriga a acreditar nas vacas! Mas isso põe-nos diante de um
mistério: porque é que já não podemos simplesmente subtrair as velocidades? À luz dos
nossos conhecimentos actuais, o que as vacas observam não faz qualquer sentido.
Era mais ou menos este o enigma com que os fisicos se defrontavam nos finais do
século XIX. As experiências que confirmaram o resultado obtido pelas vacas chamam-
se actualmente experiências de Michelson-Morley. Estas experiências estabeleceram
empiricamente que a velocidade da luz é constante e independente do estado de
—9—
Figura 2.4
É nesta altura que entram em cena o grande génio e a coragem de Einstein. Ele teve a
temeridade de afirmar que talvez o tempo não fosse o mesmo para todos. Talvez um
segundo do agricultor fosse apenas um terço de segundo da Cornélia. Se assim fosse, a
Cornélia teria visto o raio de luz 100 000 km à sua frente, mas teria dividido essa
distância por um terço de segundo e obtido, para a velocidade da luz, 300 000 km/s (ver
figura 2.5). Por outras palavras, se o tempo dos observadores em movimento correr
mais lentamente, é possível compreender porque é que todos medem o mesmo valor
para a velocidade da luz, em contradição flagrante com a regra simples de subtracção
das velocidades.
— 10 —
Figura 2.5
Mas há outra possibilidade. Talvez o tempo seja realmente absoluto, de forma que um
segundo seja o mesmo tanto para o agricultor como para a Cornélia, e seja antes o
espaço que nos está a pregar partidas. O agricultor vê o raio de luz 100 000 km à frente
da Cornélia porque o raio de luz percorreu 300 000 km e a Comélia apenas 200 000 km;
mas que vê a Cornélia? Se os 100 000 km do agricultor fossem 300 000 km para a
Cornélia (ver figura 2.6), ela continuaria a medir exactamente o que mede: passou-se
um segundo, a luz está 300 000 km à frente dela, logo a velocidade da luz relativamente
à Cornélia, medida pela Cornélia com os meios de que dispõe, é de 300 000 km/s. Mas
isto queria então dizer que os corpos em movimento se contraem na direcção do seu
movimento. Poderia o espaço contrair-se devido ao movimento?
Figura 2.6
Existe, claro está, uma terceira possibilidade, que é uma combinação das duas
hipóteses radicais anteriores. Talvez o tempo medido pela Cornélia corra mais devagar e
o seu espaço se encontre distorcido relativamente ao do agricultor, conjugando-se
ambos estes efeitos de modo a que ela meça exactamente o mesmo valor para a
velocidade da luz. Enquanto para o agricultor se passou um segundo e a luz está 100
000 km à frente da Cornélia, para a Cornélia passou-se menos tempo e a luz está mais
longe. E, de facto, fazendo as contas chega-se à conclusão de que esta é a reposta certa.
É uma ideia louca, mas será verdadeira? Como se isto não bastasse, o agricultor cedo
se apercebe de que todas estas loucuras estão a ter um efeito espantoso sobre as vacas –
elas não envelhecem! Como o tempo corre mais devagar para quem se move
rapidamente, enquanto o agricultor envelhece as vacas parecem cada vez mais jovens.
Ter uma vida rápida e louca conserva a juventude dos bovinos.
— 11 —
Foi no seu emprego na repartição das patentes, aos vinte e seis anos, que Einstein
desabrochou. Fez pouco do trabalho que se esperava que fizesse, mas produziu, entre
muitas outras preciosidades, a teoria da relatividade 3. Num tributo a este ex-colega da
universidade, Einstein diria, muitos anos mais tarde: «Ao terminar os meus estudos […]
fui subitamente abandonado por todos. Não sabia para onde me virar ou o que fazer da
minha vida. Mas ele permaneceu a meu lado e, com a sua ajuda e a de seu pai, uns anos
mais tarde conheci Haller, da Repartição das Patentes. Num certo sentido isto salvou-me
a vida; não que de outra forma tivesse perecido, mas o meu intelecto teria ficado
atrofiado».
«Este tipo» era portanto alguém à margem da sociedade e que acabou por ser feliz
assim. E quem mais poderia ter tido uma ideia aparentemente tão louca como a teoria da
relatividade? Infelizmente, a maior parte dos indivíduos nesta situação produz apenas
ideias desequilibradas e inúteis, principalmente devido ao isolamento em que trabalham.
Tenho numa das prateleiras do meu gabinete centenas de cartas que são disso exemplos
perfeitos. Tem de se reconhecer mérito ao homem – não era um excêntrico qualquer, era
Albert Einstein. Sem ele, o mundo estaria intelectualmente atrofiado 4.
O artigo da teoria da relatividade foi prontamente aceite. O chefe do conselho
redactorial responsável por esta decisão diria mais tarde que a pronta aceitação deste
artigo tinha sido a sua maior contribuição para a ciência. Mas teria Einstein consciência
do que tinha feito?
Na sua velhice, Maja, a irmã de Binstein, recordou da seguinte forma os meses que se
seguiram à publicação deste artigo:
O jovem cientista esperava que a publicação do seu artigo numa revista tão conceituada e tão lida
suscitasse reacções imediatas. Esperava dura oposição e as críticas mais severas. Mas ficou desiludido. A
publicação do artigo seguiu-se um silêncio gélido. Os fascículos seguintes da revista não fizeram qualquer
referência ao seu artigo. Os círculos profissionais tinham resolvido esperar para ver. Algum tempo depois
de o artigo ter sido publicado, Albert Einstein recebeu uma carta de Berlim. Era assinada pelo célebre
Professor Planck,- pedindo-lhe que clarificasse alguns aspectos da teoria que para ele eram obscuros.
Depois de tão longa espera, foi este o primeiro sinal de que alguém tinha lido o artigo. A felicidade do
jovem cientista foi enorme, sobretudo por ver as suas actividades reconhecidas por um dos maiores
físicos da época.
O que Einstein fizera tinha implicações imensas em muitos campos, bem para além da
introdução de um espaço e de um tempo relativos. A relatividade foi de êxito em êxito e
as desventuras dos primeiros anos de Einstein cedo terminaram, quando o mundo
reconheceu a grandeza do que ele tinha conseguido. A relatividade tinha implicações
imensas e, como já disse, a linguagem da física moderna é em certa medida a linguagem
da relatividade restrita. Mas este livro não é sobre a teoria da relatividade, por isso
3
Einstein diria mais tarde que, se tivesse conseguido o lugar académico que almejava, provavelmente
nunca teria descoberto a relatividade.
4
Como descobriu Binstein a relatividade restrita? Sabe-se muito pouco acerca disto porque ele deitou
fora todos os seus apontamentos originais. Deixou, porém, uma pista muito importante: na altura em que
realizou os seus cálculos cruciais, dormia cerca de dez horas por noite. Atribuo grande importância a este
facto. Muitos pensam, erradamente, que as pessoas altamente inteligentes dormem muito menos do que
«o comum dos mortais», dando como exemplos Napoleão Bonaparte, Winston Churchill e até a Sra.
Thatcher, a quem aparentemente bastavam quatro horas de sono. Não discutirei aqui os méritos
intelectuais destes expoentes, mas espero que o exemplo de Einstein destrua de vez esta teoria perniciosa
e errónea.
— 13 —
5
Estou a ignorar o considerável problema de como acelerar a nave espacial até uma velocidade próxima
da da luz e depois desacelerá-la, o mais depressa possível e sem matar ninguém. É bem possível que seja
este o obstáculo mais sério a uma tal empresa.
— 14 —
6
A Minha Linha do Universo. (Nota do Tradutor)
— 15 —
luz, também seria possível desacelerar a luz, o que contradiz o facto de c ser constante),
o que está muito bem, mas qual a razão dinâmica de não se poder ultrapassar a
velocidade da luz?
Ao darmos um empurrão a um objecto estamos a acelerá-lo: isto é, a alterar-lhe a
velocidade. No entanto, quanto maior a massa do objecto (em linguagem corrente,
quanto mais pesado o objecto for), tanto maior a força que é necessário aplicar-lhe para
produzir a mesma aceleração. Einstein descobriu que quanto mais depressa se mover
um objecto, tanto mais «pesado» ele é (ou, em linguagem mais rigorosa, tanto maior é a
sua massa) 7. Einstein descobriu também que à medida que a velocidade de um objecto
se aproxima da da luz a sua massa torna-se infinita. E, se a massa do objecto se torna
infinita, não há força no universo capaz de o acelerar mais. Nada existe que seja capaz
de lhe comunicar a aceleração que lhe falta para atingir a velocidade da luz e
ultrapassá-la.
É por isso que a velocidade da luz funciona como o limite cosmológico da velocidade.
Ao tentar fazer algo ilegal ficamos sem energia: o objecto que estamos a empurrar
torna-se mais e mais pesado e não conseguimos empurrá-lo com força suficiente para
quebrar a barreira da luz e ser multados por excesso de velocidade, quer o desejemos,
quer não.
E que tem isto a ver com E = mc2 ? Aqui vemos a mente de Einstein a trabalhar na sua
forma mais pura, guiada por razões irresistivelmente simples de simetria e de estética.
Einstein começa por notar que o movimento é uma forma de energia, por vezes
chamada energia cinética. Ao comunicarmos movimento a um corpo estamos a
aumentar-lhe a massa, mas estamos igualmente a aumentar-lhe a energia (aqui sob a
forma de energia cinética). Parece então que quando lhe aumentamos a energia lhe
aumentamos também a massa. Mas que tem assim de tão especial o facto de se tratar de
energia do movimento? Porque não aceitar que ao fornecermos energia a um corpo (sob
qualquer forma) lhe estamos a aumentar a massa?
É uma generalização corajosa, mas em princípio deve ser possível verificá-la
experimentalmente. Quando um objecto aquece, a sua massa deveria aumentar. Quando
se estica um elástico, a energia elástica acumulada deveria fazer aumentar a sua massa.
Não muito, só um bocadinho. E assim sucessivamente, para todas as formas de energia.
E assim, num grande golpe de génio, Einstein propôs, num artigo de três páginas
publicado em 1905, que ao aumentar-se em E a energia de um objecto, a massa do
mesmo deveria aumentar E dividido pelo quadrado da velocidade da luz:
m = E/c2
A justificação disto é que, quando se adiciona energia cinética a um corpo, a massa
dele aumenta e, por razões de simetria, o mesmo deveria passar-se com outras formas de
energia.
Mas foi então que, dois anos mais tarde, em 1907, Einstein sofreu uma verdadeira
tempestade cerebral, levando o seu sentido de beleza e de simetria ainda mais longe,
para o bem — ou para o mal — de todos nós. Dois anos antes, Einstein notara que a
relação entre o aumento da massa e o aumento da energia não deveria cingir-se à
energia cinética, uma vez que isso destruía a unidade da teoria: todos os tipos de energia
7
A distinção subtil entre peso e massa está na base da formulação da teoria da relatividade generalizada,
que descreverei no próximo capítulo.
— 16 —
deveriam fazer aumentar a massa de um corpo. Mas não quereria isto dizer que a
energia tem uma massa, ou antes, que as duas são uma e a mesma coisa?
Identificar toda e qualquer forma de energia com a massa e vice-versa tem como
resultado uma teoria mais una e mais perfeita. Mas, se a energia em todas as suas
formas transporta massa, não deveria a massa transportar também energia? E foi assim
que Einstein se lembrou de fazer algo incrivelmente simples à fórmula acima:
reescreveu-a na forma
E = mc2