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O Gênero como Linguagem Política


Considerações sobre a utilização de implantes contraceptivos como estratégia de

planejamento familiar em Porto Alegre .

Renata Teixeira Jardim♣


Nádia Meinerz♠

Palavras chave: contracepção, saúde sexual e reprodutiva, gênero, políticas públicas,


direitos.

Resumo:

Esse artigo versa sobre a elaboração e implementação de políticas públicas de saúde


reprodutiva direcionadas para grupos populares. Ele parte de uma pesquisa qualitativa que
vem sendo realizada desde 2007 na cidade de Porto Alegre sobre o Programa de
disponibilização de implantes contraceptivos hormonais da Prefeitura Municipal. São
analisados dados oriundos de entrevistas com gestores públicos e profissionais de saúde e
documentos públicos relacionados ao Programa “Adolescência: Um Projeto de Vida”, bem
como as controvérsias por ele suscitadas junto às instâncias de controle social. O artigo
consiste na descrição dos atores e das agências políticas mobilizadas desde a elaboração do
Projeto por uma entidade da sociedade civil organizada, passando pelos debates com ativistas
do Movimento Feminista e com o Conselho Municipal de Saúde, chegando até a prática de
disponibilização dos implantes pela rede pública de saúde. Foram distribuídos às Unidades de
Saúde 2500 implantes, sendo o maior número de aplicações num bairro de classe popular da
cidade de Porto Alegre, a Restinga. Com a quase totalidade já aplicada, atualmente, a
Prefeitura busca novas estratégias de continuidade e expansão do Programa. O foco da análise
está na operacionalidade do discurso de gênero como uma linguagem política eficaz, à medida
que é acionada pelos diferentes atores envolvidos nas disputas e controvérsias suscitadas pelo
Programa e pela discussão mais ampla sobre direitos sexuais e reprodutivos. Esse discurso é
acionado de diferentes maneiras, comportando conteúdos e preocupações sociais distintas.
Busca-se com essa reflexão evidenciar a complexidade e as dinâmicas sociais envolvidas nas
políticas públicas de saúde locais, no que tange a sua articulação com discursos globais como
o da modernização da sociedade e dos direitos reprodutivos como direitos humanos.


Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambu-
MG – Brasil, de 29 de setembro a 03 de outubro de 2008.

Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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O Gênero como Linguagem Política


Considerações sobre a utilização de implantes contraceptivos como estratégia de

planejamento familiar em Porto Alegre .
Renata Teixeira Jardim♣
Nádia Meinerz♠

1. Introdução

A proposta de oferecer na rede pública de saúde de Porto Alegre implantes


contraceptivos hormonais surgiu através de uma organização da sociedade civil. A
organização da sociedade civil Instituto Mulher Consciente1 (IMC) inaugurou suas atividades
em 2006 com o Programa “Adolescência, um Projeto de vida”. Esse Programa visa a
disponibilização da tecnologia de implantes contraceptivos hormonais a “mulheres
adolescentes pobres” a fim de lhes garantir, pelo período de três anos2, uma adolescência livre
de gravidez. (IMC, 2006:01). Através dessa ação, as proponentes acreditam estar promovendo
o direito a ter adolescência às mulheres entre 15 e 18 anos. De uma proposta da IMC, o
Programa se converteu em uma política pública de planejamento familiar da prefeitura
municipal de Porto Alegre, a partir de uma parceria público-privada mediada pelo gabinete da
Primeira Dama do Município.
A notícia da parceria entre prefeitura de Porto Alegre e IMC foi amplamente
divulgada em novembro de 2006, quando a entidade oficializou a entrega, à Prefeitura, de 2,5
mil implantes contraceptivos de progesterona. O evento de entrega, realizado em um Posto de
Saúde da cidade de Porto Alegre foi divulgado em jornal de grande circulação do Município
(Zero Hora, 2006). A reportagem de uma página inteira, com a manchete “Um basta na
gravidez fora de hora” começa com a história de Cleonice, uma moradora do bairro Restinga
de 38 anos que teve 13 partos, 8 filhos, sendo mãe pela primeira vez aos 15 anos. A notícia
enfatiza que, com o Programa, as jovens da capital “ganharão a chance que faltou a
Cleonice”. A reportagem segue afirmando que no bairro onde mora Cleonice, o índice de
natalidade é o dobro da média da capital. Conforme as estatísticas apresentadas, 28,6% dos
recém-nascidos, daquela região, são de mães adolescentes. O documento traz ainda a foto da
família de Cleonice e um quadro ilustrado explicando como funciona o implante de
progesterona, além de fornecer dados sobre a cerimônia a qual a IMC oficializa a entrega dos
medicamentos à Prefeitura de Porto Alegre.
Este mesmo recorte de jornal apresenta também Sílvia, de 15 anos, moradora do bairro
e “possível” candidata do Programa. Em sua fala, a jovem avalia o Programa como mais
seguro, pois “as adolescentes normalmente são meio irresponsáveis e esquecem de tomar
pílula”. A notícia encerra informando que a Prefeitura iniciará o Projeto no bairro da
Restinga, e que irá realizar o acompanhamento das jovens para a prevenção de doenças
sexualmente transmissíveis.


Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambu-
MG – Brasil, de 29 de setembro a 03 de outubro de 2008.

Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
1
Grupo
2
Esse período diz respeito ao tempo de atuação do próprio implante.
3

Essa notícia é exemplar da divulgação que a política de disponibilização de implantes


contraceptivos hormonais, realizada pela mídia local. Ela desencadeou uma série de
manifestações dos movimentos sociais, em especial de algumas militantes locais do
Movimento Feminista e também de instâncias chamadas de “controle social”, entre as quais
destacamos o Conselho Municipal de Saúde e o Ministério Público. As controvérsias geradas
por tais manifestações e as suas implicações (como a suspensão da política pública por alguns
meses) são o nosso foco de análise ao longo desse artigo.
As reflexões que propomos são fruto de uma pesquisa antropológica mais ampla sobre
práticas sexuais, reprodutivas e contraceptivas3. Esta pesquisa busca explorar de que forma
estas experiências são vivenciadas e postas em prática pelos sujeitos sociais. Para tanto, a
pesquisa toma como objeto de estudo da prática de implantes subcutâneos de mulheres de
grupos populares na sua dialética entre contexto social e a implantada, com suas intenções e
motivações, questionando os significados que perpassam e dá sentido a esta prática
contraceptiva para diferentes sujeitos envolvidos nesta prática.
A proposta deste artigo é apresentar um mapeamento dos atores e das agências
políticas envolvidas na formulação do Programa “Adolescência: Um Projeto de Vida” e na
sua implementação enquanto política pública. A abordagem desenvolvida se justifica pela
possibilidade de apreender a articulação entre ações políticas de nível local com discursos
globais como o da modernização da sociedade e dos direitos reprodutivos como direitos
humanos.
Os dados aqui apresentados foram coletados através de uma metodologia qualitativa,
de orientação etnográfica que contempla desde as técnicas já consagradas de investigação
como a observação participante e entrevista até a análise dos documentos produzidos no
debate sobre o Projeto. Os principais documentos analisados são: a redação do Programa
“Adolescência: um Projeto de Vida”, o documento “Implante subcutâneo para prevenção da
gravidez na adolescência: uma estratégia de planejamento familiar” elaborada no âmbito da
parceria público privada entre Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre e Instituto
Mulher Consciente, o documento de denúncia do Programa redigido por algumas ativistas do
Movimento Feminista local, a nota de esclarecimento do Ministério da Saúde, as atas de
reuniões do Conselho Municipal de Saúde, as transcrições da audiência e de outros fóruns
públicos de discussão sobre o Programa e os pareceres do Ministério Público. Os dados de
observação foram coletados em fóruns e reuniões de discussão sobre planejamento familiar na
cidade de Porto Alegre. Foram realizadas também entrevistas com a primeira dama da
prefeitura de Porto Alegre, profissionais da saúde, agentes comunitários e de saúde,
funcionários da equipe técnica da saúde da mulher do município e representantes do Conselho
Municipal de Saúde (CMS) e do Conselho Municipal dos direitos da mulher (COMDIM)4.
O foco da análise está na operacionalidade do discurso de gênero como uma
linguagem política eficaz, à medida que é acionada pelos diferentes atores envolvidos nas
disputas e controvérsias suscitadas pelo Programa e pela discussão mais ampla sobre direitos
sexuais e reprodutivos. Esse discurso é acionado de diferentes maneiras, comportando
conteúdos e preocupações sociais distintas. Iniciamos o artigo com a descrição dos
pressupostos que orientaram a redação do Programa, bem como das justificativas e
3
Pesquisa desenvolvida pela primeira Autora, sendo parte integrante de sua dissertação de Mestrado em
Antropologia Social, sob orientação da Profa. Dra. Ondina Fachel Leal na Universidade Federal do Rio Grande
do Sul.
4
A entrevista como a Primeira Dama do Município foi realizada por ambas as autoras deste artigo; as demais
entrevistas e observações foram realizadas pela primeira autora somente ou companhia de outros pesquisadores
do Núcleo de Antropologia do Corpo e da Saúde. Agradecemos especialmente a colaboração de José Miguel
Nieto.
4

expectativas acionadas pelos formuladores e apoiadores do mesmo em relação, aos resultados


da disponibilização de implantes. Na seqüência, abordamos a entrada em cena de outros
atores e agências políticas, tais como ativistas do Movimento Feminista local, o Ministério da
Saúde, o Conselho Municipal de Saúde, os quais dificultaram a implementação da política de
implantes, bem como introduziram modificações significativas. Por fim, fazemos uma análise
do processo de legitimação da prática de disponibilização de implantes como uma política
pública de saúde.

2. A política dos implantes contraceptivos hormonais em Porto Alegre

No Estado do Rio Grande do Sul, já há alguns anos a prevenção da gravidez


indesejada vem ganhando destaque entre as preocupações das políticas publicas de saúde
reprodutiva. A gravidez na adolescência é o principal alvo de constantes discussões na mídia e
também de campanhas de conscientização em escolas, como a campanha elaborada pela
primeira dama do estado entre os anos 2004 e 2005, intitulada: Te liga, gravidez tem hora!
Associada, em grande medida, à compreensão de que o Estado deve atuar de maneira mais
efetiva na promoção do planejamento familiar, essa medida é percebida pelos gestores como
necessária, principalmente, entre os grupos menos favorecidos economicamente.
A perspectiva da gravidez na adolescência como um problema social pauta o conteúdo
do Programa de disponibilização de implantes contraceptivos hormonais da prefeitura
municipal da cidade de Porto Alegre. Ao longo dessa sessão, apresentaremos os principais
pressupostos que fundamentam a elaboração política pública, bem como descrevemos os
atores políticos que participaram da sua implantação. Ao mesmo tempo, trazemos algumas
críticas aos pressupostos que orientam essa política, principalmente no que diz respeito à
compreensão da gravidez na adolescência como um problema social (Heilborn, et al, 2002;
Heilborn et al, 2006; Gonçalves, 2005; Almeida, 2002).
Heilborn et al (2006) 5 fazem uma leitura da preocupação social e política com
gravidez na adolescência a partir do contexto social e histórico de redução da fecundidade.
Segundo os autores, a gravidez na adolescência ganha maior visibilidade social porque não
acompanha a tendência de queda expressiva da fecundidade de outras faixas etárias. Desse
modo, não há um aumento real no número de adolescentes que engravidam, mas um
crescimento relativo frente ao decréscimo geral da taxa de filhos por mulher. A par e passo
com esse aumento de visibilidade da gravidez na adolescência é preciso considerar a
emergência “novas expectativas sociais” em relação à juventude, associadas ao aumento das
taxas e da duração da escolaridade e como período de aceleração do aprendizado da
sexualidade e de iniciação de práticas sexuais com parceiros (Heilborn, 2006:30 e 35).
Entre os pressupostos que orientam o Programa “Adolescência: um Projeto de vida”
destaca-se a idéia de que a adolescência é uma fase natural da vida, na qual acontecem
“mudanças física, psicológicas e sociais”. Essa fase tem uma demarcação etária “dos 10 aos
19 anos”, sendo considerada “intermediária entre a infância e a idade adulta”. Conforme os
idealizadores do Programa, a gravidez nessa etapa da vida aparece como um elemento
perturbador numa fase já conturbada. Ou seja, uma gravidez “provocaria mudanças ainda
maiores na transformação que vinha ocorrendo de forma natural”. (IMC, 2006:01).

5
As autoras inspiram sua análise numa pesquisa qualitativa, multicêntrica sobre sexualidade e gravidez na
adolescência, realizado simultaneamente nas capitais Salvador, Rio de Janeiro e Porto Alegre, sob a coordenação
de Maria Luiza Heilborn, Estela M. L. Aquino , Michel Bozon e Daniela Riva Knauth.
5

No entanto, há que se perguntar para quem esse tipo de gravidez é problemático. É


preciso contextualizar o discurso da incompatibilidade da experiência da gravidez com essa
fase da vida como uma argumentação proveniente do campo biomédico. Destacam-se, no
discurso biomédico, os “riscos de aborto espontâneo e de prematuridade, de problemas para a
saúde da mãe, risco no parto, mortalidade materna e enfim, riscos para a criança”, além dos
“riscos psicossociais”, os quais estão relacionados ao diagnóstico de imaturidade psicológica
das jovens (Heilborn, 2006: 31).
Apesar disso, para as jovens de grupos populares a gravidez nesse período da vida não
é vista necessariamente como problemática6. Ela pode ser percebida positivamente, a partir do
reconhecimento de que a jovem recebe de seu grupo social, ela pode ser utilizada como uma
estratégia de aliança, ou mesmo entendida como signo de autonomia e passagem para a vida à
adulta (Heilborn, 2006:31).
Apesar de condenar a gravidez nessa etapa da vida, o Programa reconhece que a
adolescência é um período no qual a jovem se inicia sexualmente e que, portanto, é dever do
Estado oferecer informações e estratégias que possibilite a não reprodução. Neste sentido, o
Programa não institui como problema à iniciação da sexualidade com parceiro nesta etapa da
vida, compreendendo apenas a reprodução como um risco para o não desenvolvimento pleno
destas mulheres.
Assim, o direito a ter adolescência, proposto pelo Programa, deve ser entendido como
a possibilidade da mulher de concretizar outros Projetos de vida diferentes de ser mãe. Nesse
sentido, a proposta traz consigo uma pretensão mais ampla, de transformação da trajetória de
vida desses sujeitos e também de transformação da própria sociedade. Essa pretensão pode ser
evidenciada na descrição dos objetivos do Projeto:

O Programa: “Adolescência: Um Projeto de Vida” tem como objetivo principal


promover para a mulher jovem um futuro melhor e uma vida mais produtiva,
auxiliando estas adolescentes a evitar gestações não planejadas, possibilitando a elas
a oportunidade de escolhas que possam permitir-lhes uma vida mais saudável e mais
produtiva, e uma diminuição da desigualdade entre os sexos, com maiores
oportunidades ao desenvolvimento pleno das mulheres (IMC, 2006:01).

Deste trecho, destacamos além do fator saúde, acima descrito, a contracepção está
associada à construção de um Projeto de vida pautado pela inserção da mulher no mercado de
trabalho, pela possibilidade de fazer as suas próprias escolhas e pela promoção de uma maior
igualdade entre os sexos. Tais objetivos nos remetem a um discurso sobre a opressão de
gênero. A experiência de ter filhos durante essa etapa de vida, pode ser entendida, como uma
experiência que subjuga a mulher aos padrões de vida tradicionais, opressores e prejudiciais
do ponto de vista do seu próprio desenvolvimento.
Essa idéia aparece de forma explícita na fala do Secretário Municipal de Saúde
daquela época, em entrevista ao site oficial da Prefeitura Municipal. Conforme suas palavras,
a importância do Programa estaria em levar para “esse grupo de meninas que não tem
praticamente apoio algum” uma possibilidade de não passar “grande parte de suas vida em
gestação”. A leitura da gestação como um momento de estagnação da vida faz eco à
6
A exemplo desta leitura, Almeida (2006:300-01), relata que em sua convivência com jovens mães em bairros
populares em Porto Alegre e Santa Cruz do Sul não percebeu nenhuma referencia a maternidade na adolescência
como um problema. Em suas palavras: “(...) essas mães novinhas pareciam completamente ‘integradas’ a vida
cotidiana local, não havendo nenhum tipo de acusação de um comportamento ‘desviante’ ou nenhuma
implicação ‘moralmente condenável’ pela sua situação”.
6

expectativa de uma trajetória linear, com comportamentos idealmente apropriados a cada fase
do desenvolvimento feminino. Nesse sentido, se destaca a pressuposição de que a gravidez
acarreta o abandono escolar e no aprisionamento feminino ao trabalho doméstico e
principalmente ao cuidado com os filhos.
Para compreender esse compromisso com a reversão da subordinação feminina, que
perpassa os objetivos do Programa nos parece indispensável fazer referência à discussão sobre
a ideologia individualista moderna proposta por Dumont (1993). Para esse autor a sociedade
ocidental moderna se estrutura a partir de uma ideologia individualista. Nesse contexto, ao
contrário do que se passa na sociedade de castas indiana (em que os laços e obrigações sociais
e a hierarquia assumem precedência sobre a vontade individual) o indivíduo é tomado como
valor e princípios como a liberdade e a igualdade organizam as relações políticas e sociais.
Nas palavras de Dumont:

Observa-se um contraste semelhante em nossa própria teoria política, entre as teorias


antigas (e algumas modernas) em que o todo (social e) político está em primeiro lugar, e
as teorias modernas em que os direitos do homem individual são os primeiros e
determinam a natureza das boas instituições políticas (Dumont, 1993: 74).

A tecnologia de contracepção parece ocupar aqui o papel de divisor de águas entre um


padrão de vida tradicional (no qual o único caminho possível para a mulher era a
maternidade) e a possibilidade de apropriação ou pelo menos de aproximação com os ideais
individualistas da modernidade, entre os quais se destaca a reivindicação de uma maior
eqüidade de gênero.
Em relação a essa perspectiva, o Programa “Adolescência: um Projeto de vida” não se
diferencia das demais ações políticas de promoção do planejamento familiar, que promovem a
disponibilização de pílulas, camisinhas, entre outros métodos, nas unidades básicas de saúde
do Município. No entanto, apesar de ser descrito como apenas mais um método, se trata de
um contraceptivo diferenciado daqueles conhecidos nos postos de saúde.
Os implantes hormonais se apresentam hoje no mercado como um dos mais práticos e
eficazes métodos prevenção à gravidez. Conforme Manica (2003), a divulgação do Implanon
veiculada pelo laboratório Organon enfatiza justamente a expectativa de que o método
revolucione o mercado contraceptivo. Essa autora estuda a trajetória dos métodos
contraceptivos na supressão de menstruação através da análise dos folhetos de propaganda
produzidos pelos laboratórios. Em sua leitura ela ressalta que a imagem de modernidade
veiculada pelos folhetos refere-se tanto ao formato prático - “você não precisa mais lembrar à
hora de tomar” - quanto à eficácia contraceptiva “nenhum caso de gravidez foi registrado” e
também à maior liberdade que a tecnologia proporciona para suas usuárias (Manica, 2003:
27).
Da mesma forma, os implantes contraceptivos são apresentados pela IMC, com ênfase
nos adjetivos de novidade e praticidade, tornando-os signos da modernidade e da melhor
eficácia para resolução do problema da contracepção. O Implanon, nesse sentido, opera
simbolicamente uma conexão entre o seu público alvo “as adolescentes pobres da Restinga” e
as mais modernas tecnologias contraceptivas, produzidas e consumidas num âmbito global.
Além da reivindicação de uma maior eficácia dos implantes contraceptivos hormonais
em relação ao efeito pretendido da contracepção, o que diferencia o implante hormonal é a
sua efetividade no enfrentamento das barreiras sociais que dificultam o acesso das
adolescentes aos métodos contraceptivos. A exemplo dessa justificativa, lembramos de
7

situação durante o trabalho de campo em uma profissional de saúde descreve os “fatores


culturais” que influenciam no uso dos contraceptivos convencionais.

Ele ressalta que eu devo conhecer os problemas que as “meninas” enfrentam, já que nas
ciências sociais (onde ele me situa) se costuma abordar essas questões. Ele fala da
dificuldade de negociar com o parceiro a camisinha. Comenta ainda sobre o fato de elas
esquecerem de tomar a pílula e da questão do status de estar grávida. Dá como exemplo a
gravidez de garotas que são namoradas de traficantes. Além disso, menciona a distinção
que a gravidez estabelece em relação ao tratamento do posto de saúde. “Quando estão
grávidas tem prioridade aqui no posto” (Diário de Campo, 08/05/2007)

O implante, na percepção dos profissionais que apóiam o Programa, é considerado um


método mais efetivo na prevenção da gravidez na adolescência justamente por não sofrer tanta
influência desses fatores contextuais. Nesse sentido, vale destacar também que elementos
como a moralidade das famílias que não admitem a entrada das filhas na vida sexual, às
dificuldades de acesso autônomo ao posto de saúde, a complexidade do manejo da pílula (que
hora é esquecida e hora tomada incorretamente), a dificuldade de negociação do uso de
preservativo com os parceiros, já foram destacados em diversas pesquisas acadêmicas (Leal,
1998; Leal, Fachel, 1999).
A expectativa de um futuro melhor também é um elemento justificador da adesão dos
profissionais de saúde ao Programa “Gravidez um Projeto de Vida”. Nesse sentido, trazemos
o depoimento de um profissional de saúde que trabalha na região da Restinga à cerca de oito
anos e tem atuado não apenas na colocação dos implantes hormonais, mas também como
defensor do Programa. Segundo ele: “para que se possa romper com o ciclo da pobreza e dar a
estas adolescentes oportunidades de estudo e trabalho é preciso acabar com a gravidez na
adolescência”.
Esse tipo de iniciativa política parte da perspectiva de que gravidez na adolescência
seria decorrente da própria pobreza, da falta de informações sobre contracepção e das relações
de gênero tradicionais que prevêem o papel de mãe senão como o único, pelo menos, como o
mais legítimo a ser ocupado pelas mulheres. Ao mesmo tempo, a gravidez na adolescência é
considerada pelos profissionais de saúde como responsável pela retro-alimentação da pobreza
e da marginalidade. Isso porque a chegada dos filhos impediria o investimento dos jovens
numa carreira de maior escolarização, bem como o seu acesso aos empregos melhor
remunerados. (Heilborn, 2006: 31).
A primeira dama do município também considera que o investimento em
planejamento familiar é uma medida eficaz no enfrentamento da pobreza. Em sua entrevista
ela descreve o contato que estabeleceu com as vilas pobres da cidade de Porto Alegre e de
todo o estado a partir da trajetória política de seu marido. É a partir desta experiência que ela
contextualiza seu interesse pelo planejamento familiar. Ao fazer um balanço de suas
intervenções políticas, ela destaca o impacto do Programa de implantes em relação às outras
ações exclusivamente assistenciais:

Tu imaginas uma criança com 14 anos ou 15 grávida, tu imaginas essa mesma criança
crescida, com 19 anos, podendo ficar grávida com 20 anos. Ela teve espaço para crescer,
para desenvolver um pouco mais, para entender, para ter maturidade para ser mãe. (...) a
gente está dando para uma criança que aplica esse implante, que pelo menos ela está sendo
atendida no Posto, recebendo orientação sobre AIDS... Eu estou ajudando em dobro, ela
8

passa a entender um pouco de planejamento, contracepção, de saúde própria e de


concepção de ser mulher ou não (Entrevista Primeira Dama).

Em seu discurso, a primeira dama do município define o período do implante com um


espaço de crescimento físico e ao mesmo tempo social, demarcando ao mesmo tempo um
objetivo assistencial e um objetivo pedagógico. Ao disponibilizar o implante, ela acredita
estar proporcionando para essa população não apenas um método contraceptivo, mas também
um prolongamento dessa fase de vida. Em suas palavras: “mais três anos de adolescência”.
Em vista disso, entendemos que o Programa opera como uma espécie de adequação local dos
preceitos que orientam as políticas públicas nacionais de promoção aos direitos reprodutivos7.
Porém, a apropriação realizada pela política pública municipal privilegia outra face da
discussão dos direitos humanos, qual seja a da proteção à infância e à adolescência.
O que observamos é uma tentativa de adaptação do princípio de proteção à criança
através da responsabilização do estado pela garantia do “desenvolvimento pleno” das
adolescentes. Como foi descrito acima, à expectativa dos atores envolvidos com a
implementação da política é de que ela possa contribuir de maneira efetiva para solucionar
outros “problemas sociais” que em sua leitura estão associados à gravidez na adolescência,
como a pobreza e a injustiça social. Frente a isso, há que se questionar como faz Fonseca
(2004), se essa tradução literal de princípios globais e de fórmulas que se acredita bem
sucedidas no estrangeiro é adequada culturalmente aos contextos locais. Nesse sentido,
concordamos com a autora, quando ela defende que o ECA bem como os outros documentos
de Direitos Humanos devem ser utilizados em diálogo com as práticas e valores locais e não
como Bíblias ou cartilhas a serem seguidas literalmente pela política pública.
Da fala da primeira dama do município apresentada acima, destacamos ainda a idéia
de que a jovem implantada está não apenas prevenindo-se da gravidez indesejada e das
doenças sexualmente transmissíveis, mas também “ganhando tempo” para aprender a ser
mulher e mãe (numa etapa mais saudável/adequada para essa experiência). A leitura da
gestação como um momento de estagnação da vida faz eco a um modelo ideal de mulher
moderna, que vivencia uma trajetória linear. Idealmente, não estando grávida, a mulher
poderia aproveitar o tempo e a disposição dessa fase de vida para estudar e construir um
Projeto de vida, investir numa maior escolarização, construir uma carreira de trabalho,
estabelecer uma aliança conjugal e planejar do melhor momento para a chegada dos filhos.
Esta idéia é encontrada na fala da ex-primeira dama do Estado quando esta apresentou
seu Projeto Te Liga, Gravidez tem Hora! no painel organizado pela Assembléia Legislativa:

Acredito que virar as costas para isso é negar as chances de uma adolescência saudável,
como uma fase transitória para a fase adulta. Queremos nossos jovens concluam os
estudos, que eles tenham uma formação profissional, que eles namorem, que eles se
divirtam e que eles vivam os conflitos normais da idade, sem queimar etapas e tudo ao seu
tempo. Ter um filho ainda na adolescência não pode ser um Projeto de vida, e sim a falta
deste Projeto. (Palestra ex-primeira dama do Estado do Rio Grande do Sul)

Trazemos esse depoimento para ilustrar como a parceira-público privada entre IMC e
Prefeitura encontra-se em um contexto maior, no qual co-habitam políticas governamentais de

7
As políticas nacionais estão pautadas em diversos acordos internacionais de direitos humanos os quais o país é
signatário, bem como pela Lei de Planejamento Familiar (Lei 9.263/1996) e pela Constituição Federal. Sobre a
trajetória dos direitos reprodutivos no Brasil ver Ávila; Corrêa (1999).
9

diferentes esferas, com aparatos normativos e regulamentos que informam procedimentos e


valores. Assim, enquanto a Prefeitura de Porto Alegre propõem a redução da taxa de
natalidade nas regiões de periferia da cidade, o governo do Estado institui como prioridade de
governo o Planejamento Familiar8. Já o governo Federal, implanta uma política nacional de
acesso a métodos contraceptivos, oferecendo nas Farmácias Populares contraceptivos de
baixo custo. Entre estas diferentes esferas governamentais percebe-se uma confluência de
opinião quando se fala da “importância do planejamento familiar”. No entanto, houve no caso
dos implantes contraceptivos, uma série de embates e controvérsias políticas no que diz
respeito à forma de atuação do Estado.

3. Pelo Caminho mais Difícil: Os percalços, as controvérsias e os consensos


na trajetória de construção da política de implantes

As notícias veiculadas em jornais do Estado e do Brasil sobre o Projeto da prefeitura


de Porto Alegre foram recebidas de maneiras diversas pela população em geral, entidades
governamentais, sindicatos e movimento social. A primeira manifestação pública de
desaprovação da disponibilização de implantes subcutâneos na rede de saúde pública veio de
algumas ativistas sociais locais, falando em nome do Movimento Feminista. Assim que
tomaram conhecimento, organizaram uma reunião para discussão dos fatos noticiados. A
grande preocupação, naquele primeiro momento, parecia ser a falta de informações acerca do
Projeto, já que os dados disponíveis eram apenas de notícias de jornais e da página na internet
da IMC.
No documento elaborado a partir desta discussão, as entidades envolvidas, retomam os
argumentos que já haviam sido enunciados em discussões anteriores, em nível nacional, sobre
a esterilização de mulheres no Brasil e sobre o debate em torno de outro implante, o
Norplant9. Em nossa leitura, tal documento, redigido como uma nota de denúncia opera
demarcando a opinião do Movimento Feminista local e de outras entidades que o endossam,
exercendo pressão política a estratégia de planejamento familiar adotada pela Prefeitura.
Propomos que ela seja entendida em relação à posição histórica mais geral do
Movimento Feminista com relação às políticas públicas de saúde reprodutiva, as quais têm se
pautado, pela reivindicação do controle autônomo, por parte das mulheres, do seu corpo e da
sua fertilidade. A afirmação “nosso corpo nos pertence”, que se tornou uma bandeira
internacional da luta feminista e foi inicialmente empregada na reivindicação do acesso aos
métodos contraceptivos. Com o passar dos anos, ela impulsionou uma série de outras

8
O planejamento familiar “passou a ser assunto de Estado e de toda a sociedade” através de um protocolo de
intenções firmado em março de 2007 pelo Governo do Estado, Assembléia Legislativa, Poder Judiciário,
Ministério Público Estadual e Defensoria Pública do Estado. O protocolo de Planejamento Familiar prevê, ainda,
parcerias junto a “organizações civis, unidades políticas municipais, câmaras de vereadores, instituições militares
e comunidades religiosas integrantes da sociedade gaúcha, ONGs, OSCIPs, entidades estudantis, sindicais,
clubes de serviço, associações comunitárias, unidades de ensino em todos os níveis, veículos e redes de
comunicação”. (Estado do Rio Grande do Sul, 2007).
9
Boletim de uma ONG feminista de 2002 já se posicionava contra o Implanon (contraceptivo doado pela IMC a
Prefeitura de Porto Alegre), afirmando que a tecnologia contraceptiva retirar a autonomia das mulheres e produz
graves efeitos colaterais: “Os implantes à base de progesterona aumentam o risco de câncer de mama para todas
as mulheres. O risco é maior para as que começam a usar mais cedo”. Na mesma publicação, é resgatada a
proibição no Brasil e em diversos países de outro implante contraceptivo, o Norplant (Mulher e Saúde, 2002).
10

reivindicações e conquistas políticas, tanto no campo dos direitos quanto de agenda


governamental, em diversos países.
Nessa trajetória, se consolidam princípios como a autonomia e liberdade de escolha, os
quais se contrapõem às políticas de controle populacional. Tais políticas são compreendidas
como resultado do entendimento hegemônico de que a redução da pobreza dos países
periféricos dependia do controle populacional10 (Giffin, 2002: 104). Podemos situar o termo
direitos reprodutivos como fruto desta luta política do Movimento Feminista. Estes direitos,
segundo Ávila e Gouveia (1996:163) “se originam na luta feminista pela busca de acesso e
segurança aos meios que possibilitem a liberdade de escolha”.
Tais direitos orientam a atuação do Movimento Feminista, no sentido de pressionar o
Estado a assumir como dever a promoção de “condições de controlar o corpo para evitar a
reprodução, recusando a definição hegemônica da identidade feminina e sua redução à
maternidade” (Giffin, 2002:104). Ao mesmo tempo, essa atuação é marcada pela
reivindicação da não utilização, por parte do Estado ou de outras agências, de práticas
coercitivas que venham a ferir a autonomia das mulheres de escolherem os métodos que
consideram mais adequados. Nesse sentido, as críticas realizadas pelas ativistas locais à
política pública municipal devem ser entendidas como parte dessa segunda forma de atuação.
Seu alvo é o procedimento adotado pela parceria público-privada, o qual viola os direitos
reprodutivos das mulheres jovens por implementar uma “ação direcionada a ministrar
exclusivamente implantes contraceptivos hormonais” Conforme o texto da denúncia:

O que não se admite é a eleição de um tipo específico de anticoncepcional a ser utilizado


em larga escala tendo como único critério a condição sócio econômica, que coincide com
o perfil racial/étnico prevalente nesta população, que é afro-descendente. (Denúncia
Movimento Feminista, 2006).

A crítica à ausência de autonomia para escolha do método fica clara também na fala de
uma ativista do Movimento Feminista quando do seminário na Câmara de Vereadores. Este
Seminário foi concebido com a finalidade de discutir de forma ampla e democrática a
proposta da Prefeitura:

Essa discussão sobre o acesso à informação de todos os métodos foi um dos fundamentos
do debate sobre os implantes hormonais em Porto Alegre, porque o fundamento da
autonomia na escolha do método contraceptivo a ser utilizado por uma mulher jovem, na
adolescência, na juventude, uma mulher adulta, ou mesmo a utilização de hormônios,
discutível em alguns setores, deve ser fundamentada na possibilidade, na informação, no
consentimento informado (...). Respeitar esses parâmetros de escolha fundamenta o
exercício de autonomia. (Câmara de Vereadores, 2007).

A autonomia é aqui entendida como uma condição necessária para a escolha de um


método contraceptivo, ou seja, só há escolha autônoma quando é oferecida a mulher um leque
de possibilidades de contracepção e informações sobre vantagens e desvantagens de cada

10
Tal tese associava a pobreza com o número de pessoas, desconsiderando a concentração de renda. Ainda,
relacionando unicamente a pobreza com natalidade, este argumento responsabiliza exclusivamente o indivíduo
por sua situação de miséria ou de riqueza. Esta tese levou algumas agencias internacionais e governos a
elaborarem políticas populacionais restritivas, nas quais legitimava o Estado a estabelecer parâmetros
reprodutivos, ou melhor, não reprodutivos (Jardim, 2003:56-7).
11

tecnologia contraceptiva. Este valor autonomia perpassa tanto as reivindicações dos


movimentos sociais como um todo como conforma um modelo no qual a individualidade e a
subjetividade se tornam elementos essenciais da vida social (Ávila; Gouveira, 1996: 162).
Outro argumento que sustenta a crítica realizada pelas militantes locais é que o
implante hormonal é questionado por setores importantes da categoria médica,
pesquisadores/as da saúde da mulher. A hipótese aventada nesse caso é a de que os implantes
estariam sendo utilizados como uma forma de pesquisa/testagem do medicamento. (Denúncia
Movimento Feminista, 2006). A desconfiança com relação à tecnologia contraceptiva é
justificada pela caracterização vaga que defensores da política fazem em relação aos bastones
subcutâneos, ao mencionarem apenas “um pequeno desconforto”. Segundo as ativistas, dessa
forma, os gestores públicos estariam desprezando os “riscos evidentes dos implantes
hormonais” (Ibidem: 3).
A evidencia dos riscos é apresentada com a descrição dos efeitos da tecnologia no
organismo das mulheres, os quais apontam para uma variedade de efeitos diferenciados que
podem surgir em cada caso. Assim, o documento elaborado também se posiciona criticamente
ao próprio método contraceptivo eleito, finalizando seus argumentos contrários à tecnologia
referindo que “enfim, tudo pode acontecer” como o corpo da mulher que se utiliza o
medicamento.
Esta argumentação poder ser melhor compreendida se considerarmos as
especificidades históricas do Movimento Feminista no Brasil. Conforme aponta Pedro (2003),
quando do ingresso dos métodos contraceptivos hormonais no Brasil, estes eram entendidos
pelo Movimento Feminista como uma forma de controle do Estado sobre o corpo. Desse
modo, o movimento tendia a enfatizar os perigos à saúde das mulheres vinculados ao uso da
contracepção hormonal11.
O amplo debate sobre os implantes subcutâneos de Porto Alegre refletiu em uma nota
do Ministério da Saúde também condenando o Programa da Prefeitura:

Segundo as diretrizes do Ministério da Saúde essa iniciativa não está em sintonia com os
princípios dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos de mulheres e homens,
adultas(os) e adolescentes, visto que um dos requisitos fundamentais para a efetivação
desses direitos é a escolha livre e informada e a possibilidade do sexo seguro e sem
violência, cabendo ao poder público oferecer informações e acesso a um leque de métodos
e técnicas tanto para a concepção quanto para a anticoncepção, que permitam às pessoas
regularem a sua fecundidade, sem colocarem em risco a sua saúde. (Ministério da Saúde,
2006, grifo nosso).

11
Maria Joana Pedro lembra que é peculiar à posição do Movimento Feminista com relação aos métodos
contraceptivos no Brasil. Enquanto nos países europeus havia políticas natalistas, no Brasil a divulgação dos
métodos contraceptivos modernos fez parte de políticas internacionais voltadas para a redução da população,
sendo comercializados sem entraves desde o início da década de 60. Portanto, as notícias sobre os novos
contraceptivos que eram considerados mais eficazes que os anteriores, vieram acompanhados de dados
alarmantes sobre o perigo da superpopulação. Tal configuração levou até mesmo o Movimento Feminista
brasileiro da década de 70 a posicionar-se de forma crítica aos contraceptivos hormonais, chegando inclusive
algumas vezes a repetir alguns dos discursos da Igreja Católica, situação impensável no Movimento Feminista
europeu. Para o Movimento Feminista: a) solução para o problema demográfico era o desenvolvimento
econômico com justiça social; os métodos artificiais disponíveis traziam problemas de saúde; c) as políticas do
Estado em relação à natalidade visavam ao corpo das mulheres e pretendiam acabar com a miséria, não deixando
nascer os pobres. Algumas, todavia, criticavam apenas a falta de acompanhamento médico no uso de
contraceptivos (Pedro, 2003:241-42).
12

Como se observa nesta passagem, a frente discursiva do Ministério da Saúde se afina


aos argumentos feministas, que colocam o foco na violação dos direitos sexuais e
reprodutivos da população alvo da política pública, uma vez que entendem que não houve
respeito à escolha livre e informada. A nota do Ministério da Saúde também aponta
desvantagens do método contraceptivo eleito pela política pública, enfatizando as altas taxas
de descontinuidade no uso do implante de progesterona e concluindo que o medicamento
possui baixa efetividade, por conta desta descontinuidade e do alto custo de mercado
(Ministério da Saúde, 2006).
Um outro aliado na problematização da política pública de implantes contraceptivos é
o Conselho Municipal de Saúde. Na nota acima referida, a nota de denúncia sublinha o
desrespeito as instancias chamadas de “controle social” e de decisão de políticas públicas.
Isso porque, a política pública de disponibilização de implantes hormonais não teria sido
submetida à apreciação em nenhum dos conselhos gestores, responsáveis pela garantia da
descentralização e participação democrática das decisões políticas governamentais. Este
argumento é utilizado pelo próprio Conselho Municipal de Saúde para fundamentar sua
decisão de suspender o Programa até que o órgão realizasse uma avaliação da proposta da
Prefeitura de Porto Alegre (CMS, 2006). O que as militantes feministas locais e o Conselho
Municipal de Saúde estão chamando atenção aqui é para falta de formalidade que se
desenvolveu a política pública de implantes subcutâneos, que não buscou incluir a
participação das instancias democráticas de controle social na discussão sobre a proposta de
inserir na rede de saúde pública municipal um novo método contraceptivo.
A criação de mecanismos de participação na gestão pública pode ser relacionada às
transformações estatais ocorridas durante a 70, cuja uma das principais propostas foi à
descentralização do poder estatal. E, neste contexto, a descentralização “aparece como uma
possibilidade real de melhor gerir os serviços públicos e, nos países egressos de ditadura
[como o Brasil], também como possibilidade de democratização” (Heudrich, 2002: 26).
Neste processo de descentralização algumas instituições foram instituídas para que a
sociedade pudesse exercer, conforme a Constituição Federal de 88, o controle democrático
que lhe compete. Algumas destas instituições foram acionadas durante o processo de
construção da política pública de implantes hormonais, como o Conselho Municipal de Saúde
e o próprio Ministério Público, conforme trataremos a seguir.
Conforme prevê a legislação específica12, os Conselhos Municipais de Saúde são
instancias deliberativas de planejamento, fiscalização e avaliação do SUS - Sistema Único de
Saúde, criadas na década de 1990 com o objetivo de garantir a participação da comunidade na
gestão do sistema de saúde. Este modelo de instituição, adotado no Brasil a partir da
Constituição Federal de 1988, propõe a participação dos cidadãos não apenas na eleição de
representantes governamentais, mas sua participação direta nos processos de decisão e
controle político (Brasil, 2005, p. 12).
Já o Ministério Público assume no conjunto de mecanismos de controle e
descentralização o papel de “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e do interesses
sociais e individuais indisponíveis” (art. 127 da CF, 1988). E é na função de garantia dos
serviços de saúde e dos direitos das jovens adolescentes que o Ministério Público se insere na
discussão da política pública de implantes contraceptivos.
Em situação anterior, o órgão já havia sido acionado pela própria IMC para opinar a
respeito do uso de implantes subcutâneos em jovens albergadas no sistema de proteção do

12
Constituição Federal; Lei Federal nº 8142/90 e Lei Complementar nº. 277 de 20 de maio de 1992 do
Município de Porto Alegre.
13

Município de Porto Alegre. Em ambas as manifestações, o Ministério Público se pauta na


“gravidade e urgência do problema da gravidez na adolescência” (Ministério Público, 2007)
para embasar sua decisão favorável ao uso dos implantes em jovens adolescentes. A
recomendação de retomada da política pública utiliza ainda laudo biomédico para descartar
dúvidas com relação ao método contraceptivo: “não há contra-indicação do uso desse
medicamento exclusivamente pelo critério da faixa etária a que se destina no citado Projeto”.
(Idem).
Com o parecer favorável a política de implantes subcutâneos a Prefeitura de Porto
Alegre retoma a colocação dos implantes, enquanto que as ativistas do Movimento Feminista
local e o Conselho de Saúde buscam outros espaços públicos para a ampliação da discussão.
Dentre estes espaços destacamos a organização de uma audiência pública específica para
discussão do tema na Câmara de Vereadores municipal que gerou, mais tarde, um Seminário
sobre gravidez na adolescência (evento já referido anteriormente).
Nestes espaços de discussão, os defensores da política pública procuraram demonstrar
que se trata de “mais um método contraceptivo” incorporado na política de planejamento
familiar municipal, destinado à população mais vulnerável ao problema da gravidez
indesejada e que a Prefeitura não realizava qualquer violação de direitos reprodutivos.
Logo após a realização da audiência pública, a plenária do Conselho Municipal de
Saúde resolve aprovar o uso dos implantes contraceptivos doados pela IMC à Prefeitura de
Porto Alegre. Porém, recomendam a Prefeitura que o Programa seja estendido a todas as
mulheres em idade fértil, para que “não se fira os princípios de universalidade do sistema
único de saúde” (CMS, 2007). Neste sentido, o Conselho Municipal de Saúde reconhece a
legitimidade da política pública após sua discussão nas instancias democráticas de controle
social. Porém, reformula a proposta inicial por entender que o direito ao uso do medicamento
não é exclusivo de jovens de regiões onde há o maior índice de gravidez na adolescência. Tal
entendimento destoa das atuais políticas sociais e afirmativas que se pautam em critérios de
vulnerabilidade social.
A decisão do Conselho Municipal, de aprovar o Programa e estender a toda a
população é alvo de ironia por parte da primeira dama do Município, a primeira a articular a
parceria da Prefeitura com a IMC:

De um Programa tão ruim, passou a ser um Programa tão bom que deveria se aberto para
todas as mulheres de Porto Alegre. A decisão do Conselho foi essa, de ruim, de um
Projeto ruim, ele passou a ser um Projeto tão bom que todas as mulheres tivessem o direito
de usá-lo.
E óbvio, não estávamos preparados para atender todo o município de Porto Alegre.
Estávamos preparados para iniciar um Projeto, um plano piloto, em uma determinada
região que seria a Restinga, para atender jovens de 15 a 18 anos. Essa é minha intenção.
Mas como o Conselho não me permitiu fazer isto. Então, nós abrimos, para poder fazer.
Para não ter que devolver os implantes para a ONG. Ia ser ridículo. Então abrimos,
fizemos uma concessão, fizemos uma negociação junto ao Conselho e conseguimos
imediatamente implantar esses implantes (Entrevista Primeira Dama).

Conforme esta passagem fica claro que para tanto para as idealizadoras do Projeto,
como para a articuladora da parceria entre Prefeitura e IMC, a idéia era resolver o “problema
da gravidez na adolescência” em bairros estratégicos (por conta do maior índice de gravidez
nesta faixa etária). Porém, com o ingresso de outros atores na discussão, tal proposta não se
concretizou de maneira plena, já que os implantes contraceptivos foram estendidos a todas as
14

mulheres. Neste sentido, o Projeto inicial “Adolescência: um Projeto de vida” foi se


transformando ao longo deste percurso que procuramos demonstrar.
Na percepção da primeira dama do Município, as transformações da proposta inicial
não foram em contraposição ao conteúdo da proposta, e sim se tratou de uma ação contra o
governo Municipal. As dificuldades políticas encontradas para a implementação do Projeto
são destacadas em uma fala da primeira dama, em entrevista:

Eu não sabia que iríamos encontrar dificuldades políticas, e foi ali que a Inês [Presidente
da IMC] perdeu as esperanças. E eu não... Eu sei que o caminho político é sempre o mais
difícil, é sempre o mais complexo, é sempre o mais cheio de voltas, é sempre o mais cheio
de questionamentos e de combatência, tu vai sempre encontrar algum inimigo no meio do
caminho, no caminho político (Entrevista Primeira Dama).

A visão de uma disputa política é compartilhada por outros atores que participam deste
debate, como o Coordenador do Projeto de implantes da Prefeitura, que quando se refere às
divergências suscitadas pelo Programa explica que houve uma “polarização de torcidas”.

Quando perguntamos sobre toda a discussão no Conselho Municipal de Saúde ele afirma
que foi uma “politicagem do Conselho”. Questiona-nos por que eles (Conselho de Saúde)
estavam agora reclamando se o medicamento é aprovado em vários países, foi autorizado
no Brasil e qualquer pessoa pode comprar na farmácia... Refere, para reforçar seus
argumentos, que já houve outros Projetos como os mesmos implantes e eles não fizeram
nada. Diz que o Implante é o mesmo remédio que o Deprovera (injetável) e que o Estado
disponibiliza na rede de saúde há muito tempo. (Entrevista com Coordenador da Política
Pública)

A referência à disputa política entre a Prefeitura e o Conselho também é feita por um


dos membros do Conselho Municipal de Saúde. Em entrevista realizada, um dos protagonistas
do debate sobre os implantes e de mobilização de ações que chegaram a suspender a parceira
público-privada, afirma que a parceira é um “Projeto político e não uma política pública” e
que “na Secretaria de Saúde municipal o que prevalece é à vontade dos políticos e não os
interesses da população”. O tom de toda sua fala é de suspeita e por diversas vezes afirma que
não sabe o que se passa por trás das parcerias que se firmaram para a implementação do
Projeto na prefeitura.
Cabe ressaltar que, nestas falas sobre disputa política, os atores estão de uma forma ou
de outra delimitando as fronteiras entre um projeto político, com fins eleitoreiros e de
divulgação pessoal e uma política pública, que se pretende permanente, democrática,
eqüitativa e que perdure para além dos mandatos políticos. Quem explica estas noções é uma
funcionária da Secretaria de Saúde.

Ele [o implante contraceptivo] tem que ser mais um método como todos os outros são. Do
jeito que é não é uma política pública. Onde já se viu uma secretaria apresentar o
Programa dos implantes? Coisa que não funciona. É uma coisa distorcida. Enquanto
saúde, tem que ter a questão educativa e dos métodos contraceptivos, isso é política
pública. (...) Está difícil, tem que ser política pública. Não dá para ser coisa de pessoas,
por que daí muda o governo e eles terminam. (...) O problema do implante é que ele não
veio enquanto política pública, ele tem ser eqüitativo, tem que dar mais a quem precisa.
(...) Antes [na outra gestão municipal] existia um respeito técnico. A maioria da
15

coordenação hoje é só político. Quando a questão técnica é bem feita, qualquer barreira
política é superada (Entrevista com funcionária da equipe de saúde da mulher).

De forma bastante crítica ao Programa, a técnica da Secretaria de Saúde defende sua


posição com relação ao Programa da Prefeitura com base no desrespeito das instancias
técnicas da saúde da mulher para discussão prévia do Projeto. Ou seja, coloca ainda outro
ponto fundamental de legitimação da política pública, sua adequação técnico-científica.
Conforme procuramos desenvolver nesta parte do artigo, a trajetória dos implantes
contraceptivos em Porto Alegre foi construída a partir de uma série de atores, todos com suas
visões e posições a cerca da maneira de como fazer políticas públicas. E, é a partir deste
percurso que se vislumbra também a trajetória de legitimação da proposta de uma IMC como
uma política de planejamento familiar. Assim, a construção de legitimação de uma política
pública passa (pelos argumentos até aqui apresentados) tanto pelos critérios de adequação
técnico-científica e de respeito aos direitos individuais e coletivos quanto pela discussão em
instancias democráticas, como movimentos sociais e agências de controle social, como os
conselhos e Mistério Público.

4. Politizando o Gênero

Como descrevemos acima, a disponibilização de implantes contraceptivos hormonais


percorreu um caminho cheio de controvérsias e disputas políticas que foi moldando e
construindo uma política pública de saúde. A partir da descrição realizada, propomos uma
análise do processo de reconhecimento dessa proposta como uma política pública legítima no
âmbito do planejamento familiar. Nosso argumento é de que os principais elementos de
legitimidade construídos ao longo do percurso, quais sejam, a autoridade investida nos
propositores da ação, as articulações políticas promovidas em busca de apoio para a sua
implementação, a discussão da política em instituições de controle democrático, e o próprio
conteúdo negociado ao longo do processo de implementação da política pública, estão
entrelaçados por uma mesma linguagem política.
Essa leitura é inspirada na reflexão proposta por Bourdieu (1996) acerca da relação
entre política e linguagem. Para esse autor, a eficácia de um discurso político está para além
de seu conteúdo, ela se funda na capacidade de ser não apenas compreendido, mas
reconhecido como legítimo por parte daqueles que são governados. Propomos, assim, que a
efetividade conquistada pela política de disponibilização de implantes contraceptivos
hormonais está associada à potência do discurso sobre o gênero quando utilizado como
ferramenta política. Nesse caso, quando relacionamos o gênero com a política pública de
implantes contraceptivos hormonais estamos propondo não uma análise sobre as
transformações, na hegemonia de gênero13, possibilitadas pelo uso da tecnologia

13
Para Ortner (1996) todas as sociedades são perpassadas por um ordenamento das relações e dos significados de
masculinidades e feminilidades. Neste ordenamento, embora ele seja percebido como dinâmico, prevalece uma
dominação relativa de alguns significados e prática sobre outros. Essa noção de hegemonia comporta três níveis
de análise: i) a dimensão da distribuição de prestígio, valor, status ou autoridade; ii) a dimensão das relações de
poder, de dominação e subordinação; iii) a dimensão do poder feminino que diz respeito à capacidade das
mulheres de controlar alguns aspectos do seu comportamento e o dos outros, independente da situação de
subordinação e/ou ausência de prestígio e autoridade. Estas dimensões são independentes entre si e se articulam
de maneira complexa na vida social.
16

contraceptiva, mas uma leitura da operatividade da linguagem de gênero na articulação entre


diferentes atores e agências políticas locais e também globais.
Iniciemos com algumas considerações sobre as relações de poder e autoridade política,
especificamente a construção da legitimidade dos enunciadores da política pública. Para tanto,
nos parece fundamental que a transição entre o Projeto proposto por uma organização da
sociedade civil e a disponibilização do implante pela rede pública municipal de saúde tenha
sido costurada justamente no gabinete na primeira dama do município, e não em outras
instâncias do poder municipal. O gabinete da primeira dama por ter como principal prática
propor e executar ações vinculadas aos direitos das crianças e das mulheres se converte num
ator político autorizado a falar em nome desses sujeitos. Nesse sentido, entendemos que o
Programa foi sendo constituído a partir de uma confluência de interesses das diferentes
instancias governamentais. Em outras palavras, é interesse da primeira dama do município,
inclusive em termos do reconhecimento de sua autoridade, se engajar num Projeto que vem
fazer eco ao trabalho social que vinha sido desenvolvido pela primeira dama estadual na
prevenção da gravidez na adolescência, nos anos de 2005 e 2006.
Para Bourdieu (1996) ainda, as condições da ação política passam pela possibilidade
de prescrever (pré-dizer) uma outra forma de visão e divisão do mundo social através de uma
descrição investida de autoridade. Ou seja, uma descrição do mundo e de suas divisões que
seja concebível e crível e, portanto, possibilite a contribuição para sua própria produção.
Frente a isso, nos parece fundamental considerar que tanto a primeira dama e suas assessoras
de gabinete quanto à médica pesquisadora que estava à frente das atividades da IMC, na
ocasião da formulação do Programa “Adolescência: Um Projeto de vida” encarnam em
grande medida o ideal de “mulher moderna” que vem sendo associado à utilização do
implante contraceptivo. A posição de classe, a escolarização e a trajetória profissional dessas
representantes políticas tornam possíveis ou, pelo menos, crível, a influência da contracepção
no acesso a esse ideal de gênero.
Além dessa autoridade conferida pelo espaço (dentro da prefeitura municipal) e pelo
gênero das propositoras do Programa de disponibilização de contraceptivos hormonais, há que
se destacar que a legitimidade dessa ação política foi se construindo no percurso de
implementação da parceira público-privada. Ao longo deste artigo destacamos a contribuição
do discurso da gravidez na adolescência como um problema social para a adesão e defesa da
proposta do uso de implantes contraceptivos por adolescentes na mídia, no Ministério Público
e em alguns espaços da Prefeitura de Porto Alegre, como no gabinete da Primeira Dama, do
Secretário de Saúde e de alguns profissionais de saúde. Destacamos, como apoiadores
fundamentais na implementação da política pública, como o do secretário de saúde do
município (que atuou no sentido de encaminhar os implantes doados pela IMC às unidades
básicas de saúde) e do gerente distrital dos postos de saúde da Restinga, comunidade que num
primeiro momento foi considerada o alvo da intervenção. Esse último apoiador, justamente
por sua posição enquanto profissional de saúde e pela atuação como liderança política na
comunidade, foi fundamental no processo de implementação do Programa. Ele atuou na
mobilização das mulheres, as quais, segundo foi observado durante o trabalho de campo,
depositam sobre ele uma grande confiança. Além disso, foi o responsável pela organização da
disponibilização dos implantes, além de atuar na própria aplicação do método contraceptivo14.
Embora Bourdieu (1996) atribua maior importância social à autoridade do
representante e a sua competência na mobilização de recursos (força elocucionária), em
detrimento do conteúdo enunciado na política pública, entendemos que, no caso da política de

14
O médico orgulha-se em informar a pesquisadora que o entrevistava que foi o médico que mais aplicou
implantes em Porto Alegre.
17

disponibilização de implantes contraceptivos hormonais, o conteúdo discursivo (força


semântica) da intervenção guarda uma importante potência política. Nesse sentido, nos
alinhamos ao argumento de Lila Abu-Lughod (2002) acerca da politização do gênero.
Segundo essa autora, no mundo contemporâneo, em face de uma discussão mais ampla sobre
direitos humanos, cada vez mais, os discursos sobre a opressão das mulheres e sobre a
desigualdade de gênero passam a ser utilizados como ferramenta política. No debate descrito
acima, a referência ao discurso de gênero foi utilizada tanto para defender quanto para criticar
a disponibilização de contraceptivos hormonais em Porto Alegre.
Por um lado, as proponentes do Programa e seus apoiadores defendem o direito das
mulheres à adolescência, ou seja, a garantia de um período mais longo de “transição para a
idade adulta”, o qual é descrito como fundamental para o desenvolvimento pleno da mulher.
Esse tipo de discurso se alinha com uma espécie retórica do salvamento, a qual pode ser
encontrada também nos pronunciamentos da primeira dama norte-americana Laura Bush
sobre as iniciativas de libertação das mulheres muçulmanas em relação aos costumes
opressivos como o uso do véu e da burca (Abu-Lughod, 2002). A ênfase nos dois casos é a
promoção de ações políticas que libertem as mulheres e, no caso de Porto Alegre, as
adolescentes pobres dos padrões de gênero tradicionais que as amarram à gravidez na
adolescência. Nesse sentido, a associação da gravidez na adolescência com a opressão das
mulheres e o seu enfrentamento com a “diminuição das desigualdades entre os sexos” também
não são exatamente uma exclusividade da política de saúde em Porto Alegre. Segundo Pinho
(2006) diversos discursos modernizadores tendem a sustentar ações intervencionistas
governamentais pautadas pela urgência da promoção das equidades de gênero nas classes
populares. Elas estão fundamentadas sobre a presunção de um desenvolvimento universal das
sociedades humanas enraizado no signo da modernidade.
De outro lado está o posicionamento critico das auto-identificadas militantes do
Movimento Feminista à disponibilização do implantes. Estas ativistas também recorrem ao
discurso de gênero para fundamentar sua posição. Ainda que se apropriem da tecnologia de
contracepção para a defesa da separação da reprodução da sexualidade, a utilização de
implantes contraceptivos hormonais entra em conflito, na percepção das feministas, com
principal bandeira do movimento, que é a autonomia das mulheres sobre o corpo. Ou seja, os
implantes foram oferecidos de maneira a “restringir a integralidade das mulheres” (pois são
entendidos como um “risco evidente” somado a maior vulnerabilidade de contaminação de
doenças sexualmente transmissíveis) e de sua autonomia como sujeitos capazes de decisão e
escolha sobre si próprias (ou seja, escolha livre e informada do tipo de método contraceptivo a
ser utilizado e quando e quantos filhos desejam ter). Essa linguagem de gênero, enunciada
pelo Movimento Feminista num contexto político global orienta as lutas políticas também em
nível local. Embora adotando uma posição contrária à prática de disponibilização dos
implantes hormonais, as razões que fundamentam sua oposição ao implante, não são
essencialmente distintas daquelas que fundamentam os argumentos dos proponentes da
política pública de planejamento familiar. Nesse sentido, cabe destacar a associação histórica
do Movimento Feminista com a promoção de valores como a igualdade, a autonomia e a
liberdade de escolha, os quais constituem os principais fundamentos da emergência do valor
indivíduo na sociedade ocidental moderna. (Heilborn, 2004:20)
Em virtude do que foi exposto, entendemos que para além de uma sensibilização dos
atores políticos para as questões de gênero (nas quais também acreditamos), ocorre uma
utilização do discurso de gênero como forma de agência política, em vista de sua eficácia na
mobilização de recursos e apoiadores. Essa politização só pode ser pensada à medida que se
considera sua vinculação com uma discussão mais sobre direitos humanos em nível global.
Ao mesmo tempo, ela só se torna possível num contexto de abertura democrática, no qual
18

cada vez mais os movimentos sociais através da participação em instâncias de controle social
atuam na formulação e na implementação das políticas públicas.

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