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Nº Convencional: JSTJ000
Relator: RODRIGUES DA COSTA
Descritores: HOMICÍDIO
OCULTAÇÃO DE CADÁVER
PROFANAÇÃO DE CADÁVER
JÚRI
DOCUMENTAÇÃO DA PROVA
VÍCIOS
FUNDAMENTAÇÃO
RECONSTITUIÇÃO NATURAL
DOLO EVENTUAL
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: SJ200604200003635
Data do Acordão: 20-04-2006
2006
Votação: MAIORIA COM 1 DEC VOT E 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
1 - A criminalidade moderna e os meios que hoje existem para fazer desaparecer totalmente os
vestígios de um cadáver impõem que não se exija um exame directo ao corpo da vítima no caso
de crime que tenha como resultado ou como pressuposto a morte de outrem, sendo certo que os
riscos de impunidade são ão acrescidos, quer por força de uma alta criminalidade de teor
sofisticado, quer por força do engenho ou sorte ocasional do criminoso comum, que consiga
desfazer-se
se da principal prova directa do seu crime.
2 - O risco de condenar alguém por homicídio sem a presença física do cadáver ou de algum
vestígio material que possa seguramente certificar a morte da vítima (por exemplo, o
aparecimento de um órgão vital) coloca na primeira linha a hipótese do erro judiciário.
3 - Todavia, o erro judiciário existe em qualquer caso penal e não é um exclusivo dos crimes de
homicídio, pelo que não faz sentido não condenar o agente por homicídio só porque não foi
examinado directamente o cadáver, como não o faz não condenar alguém por crime de
violação só porque não foi possível
po o exame directo à vítima.
4 - Na ponderação entre os riscos da impunidade e do erro judiciário, há que optar por uma
solução de compromisso que assegure simultaneamente as exigências de repressão do crime e a
de presunção de inocência do condenado: no caso em que um crime tenha como elemento
típico a morte da vítima (v.g., o crime de homicídio), ou como pressuposto prévio a sua morte
(v.g., o crime de profanação de cadáver), a morte deve ser provada por exame pericial directo,
mas, na impossibilidadee de proceder a tal exame e não havendo norma legal que o imponha,
devem ser admitidos outros meios de prova que indiquem "a certeza moral sobre a ocorrência
do evento" (UU).
5 - O tribunal de júri tem uma legitimidade acrescida, pois a sua constitucionalização
constitucional para o
julgamento dos crimes mais graves, embora a sua participação não seja obrigatória (art. 207.º
da lei fundamental), se inscreve nos princípios fundamentais do Estado de direito democrático
no que toca à democratização da organização judiciária (JORGE MIRANDA Constituição e
Democracia - Livraria Petrony, 1976, p. 308 e ss.).
6 - Não quer isto dizer, todavia, que a simples participação de jurados exclua ou atenue o
controle que deve ser exercido pela instância de recurso sobre o processo de formação
forma da
convicção do tribunal «a quo», mas, neste caso, a convicção, para além de estar escudada numa
fundamentação exaustiva, tem a suplementar garantia de nesse processo ter intervindo um
tribunal de júri, assegurando--lhe uma maior democraticidade, o que quer dizer, uma base mais
ampla e diversificada, de composição plural e heterogénea, como expressão concentrada da
própria fonte de onde emana a soberania e, portanto, uma maior fiabilidade.
Processo: Acórdão do STJ sobre o “Caso Joana”
24 de Abril de 2006
7 - Ao contrário do que sucede com o acórdão final do tribunal colectivo, de que se pode
recorrer quanto à matéria de facto para o tribunal da relação com apelo às provas
documentadas em suporte áudio ou vídeo, quando intervém o tribunal de Júri o recurso dirige-
se directamente ao STJ e visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem prejuízo de
se invocar algum dos vícios a que aludem os n.ºs 2 e 3 do art.º 410.º, "desde que o vício (no
caso do n.º 2) resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da
experiência comum".
8 - Entendeu o legislador que a intervenção do Júri dá maiores garantias de fidedignidade na
fixação da matéria de facto, pelo que restringiu o direito ao recurso nessa parte.
9 - A documentação em acta da audiência perante o Júri servirá para recordar ao tribunal, no
momento da decisão da 1ª instância, o que foi dito pelas testemunhas; servirá ainda para se
aquilatar se foi ou não cometida alguma nulidade de julgamento, mas a sua falta não nega ao
arguido o direito constitucional de recorrer de facto - art.º 32°-1 da C.R.P., nem determina a
repetição do julgamento, pois o recurso da matéria de facto não passa, no caso de julgamento
com Júri, pela reapreciação da prova documentada na acta.
10 - A insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados são
insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem -
absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena,
circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal
deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela
defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam
ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a
escolha ou determinação da pena .
11 - O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão ocorre
quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se
afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos
contraditórios e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a
fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição entre a fundamentação e a
decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta ou não justifica a decisão.
12 - O erro notório na apreciação da prova consiste em o tribunal ter dado como provado ou
não provado determinado facto, quando a conclusão deveria manifestamente ter sido a
contrária, já por força de uma incongruência lógica, já por ofender princípios ou leis
formulados cientificamente, nomeadamente das ciências da natureza e das ciências físicas, ou
contrariar princípios gerais da experiência comum das pessoas, já por se ter violado ou
postergado um princípio ou regra fundamental em matéria de prova; existe erro notório na
apreciação da prova quando, «pelo menos, a prova em que se baseou a decisão recorrida não
poderia fundamentar a decisão do tribunal sobre essa matéria de facto» (Acórdão de 30/1/2002,
Proc. n.º 30/1/2002, da 3ª Secção, Sumários dos Acórdãos das Secções Criminais, edição anual
2002, p. 16/17), sendo que essa prova, não pode ser outra que não a que serviu de base à
fundamentação da convicção do tribunal, visto o erro ter de decorrer do texto da decisão
recorrida, sem recurso a elementos extrínsecos.
13 - Em qualquer caso, o erro tem de ser perceptível pelo homem médio, que é uma outra
forma de dizer que o erro tem de ser manifesto ou notório, como tem postulado a quase
esmagadora maioria da jurisprudência deste Supremo.
14 - Para além de a fundamentação constituir a pedra-de-toque de qualquer decisão e uma das
vertentes fundamentais do «compromisso» democrático do órgão de soberania «tribunais» com
o povo e uma decorrência do princípio do Estado de direito democrático (artigos 2.º, 3.º, 202.º,
n.º 1 e 205.º, n.º 1, todos da Constituição), a fundamentação deve ser mais exigente e tão
minuciosa quanto possível no caso de crime de homicídio em que não apareceu o corpo da
vítima e não foi possível realizar o exame ao respectivo cadáver para determinação exacta da
causa da morte, tendo, além disso, os arguidos optado pelo direito ao silêncio e não havendo
testemunhas directas dos factos.
24 - A lei só exclui o testemunho das entidades policiais que verse o conteúdo de declarações
por elas tomadas, sendo completamente descabido que as referidas entidades não pudessem
depor sobre todos aqueles factos em relação aos quais o seu posicionamento não foi outro
senão o de observadoras ou de intervenientes e observadoras, que, por terem neles participado,
tiveram desses factos um conhecimento privilegiado.
25 - A violação do princípio in dubio pro reo, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um
princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova com expressão
constitucional ao nível dos direitos fundamentais, pode ser sindicado pelo STJ.
26 - Todavia, essa sindicação tem de exercer-se dentro dos limites de cognição desse Tribunal,
devendo por isso resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do
art. 410.º, n.º 2 do CPP. Ou seja: quando, através de análise pertinente, se mostre que o tribunal
recorrido valorou contra o arguido uma determinada prova, apesar da subsistência de uma
dúvida razoável, ou porque o tribunal manifestamente desfavoreceu o arguido nessa situação,
ou porque por erro na apreciação da prova, afirmou a sua convicção no sentido de dar como
provado contra o arguido um determinado facto relevante, quando o sentido dessa prova,
extraído do material probatório de que se serviu o tribunal, era de molde a gerar uma dúvida
razoável que devia ser valorizada a seu favor, ou ainda quando, seguindo o processo decisório
evidenciado através da motivação da convicção, a conclusão retirada pelo tribunal em matéria
de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma
suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em
que assenta a convicção.
27 - Ocorre uma especial censurabilidade se a arguida era ascendente da vítima, tendo o
especial dever de não cometer o crime e até de evitar o resultado por meio de acção adequada,
por força de um especial dever de garante (Cf. TAIPA DE CARVALHO, Comentário ..., p.
846 e ss.) e em segundo lugar, se ambos os arguidos praticaram o crime contra pessoa
particularmente indefesa, em razão de idade, a isso acrescendo, e no que diz respeito a um dos
arguidos, o facto de ser tio da menor, o que, por um lado, lhe conferia um dever especial,
embora não equiparável ao da mãe, de zelar pela saúde e bem-estar da sobrinha, e ainda o facto
de terem ambos agido contra a menor, praticando actos de considerável violência sobre ela.
28 - Esse cicunstancialismo, aliado às circunstâncias previstas nos exemplos-padrão (alíneas a)
e b) do n.º 2, no caso da arguida L, e alínea b), no caso do arguido J, revelam uma especial
censurabilidade, uma culpa acrescida que qualificam o crime de homicídio, mas só pelas
referidas alíneas, que não também pela alínea d), pois, não se sabendo qual o motivo que levou
à prática do crime, não pode esse motivo ignorado ser qualificado de fútil ou torpe.
29 - O crime de homicídio qualificado, sendo punível apenas a título de dolo, compatibiliza-se
com este em qualquer das suas formas e, portanto, também com o dolo eventual
30 - Tendo o crime sido cometido com dolo eventual, segundo a factualidade provada, ou seja,
a forma mais enfraquecida de dolo, esse facto não pode deixar de ter repercussões
consideráveis em sede de determinação da pena.
31 - Sendo embora altamente censurável a forma como os arguidos agiram, estando esse
acréscimo de censurabilidade já reflectido na opção pelo tipo qualificado e tendo as
circunstâncias desvaliosas em que os arguidos actuaram, quer as referidas ao desvalor da
conduta, quer as referidas ao desvalor da atitude do agente, sido determinantes para a
qualificação dos factos, não podem as mesmas ser novamente valoradas em sede de
determinação concreta da pena, dentro dos critérios do art. 71.º do CP, sob pena de infracção
do princípio da proibição de dupla valoração.
32 - Tendo os arguidos retalhado o corpo da vítima, que meteram em gavetas de uma arca
frigorífica e tendo feito desaparecer esses restos mortais, sem deixarem rasto deles, e iludindo
sucessivamente as entidades policiais sobre a sua localização, justifica-se que a pena concreta
se fixe no máximo previsto no art. 254.º do CP, pois além da ocultação, houve também
profanação de cadáver e em circunstâncias particularmente censuráveis.
19º - Não devia ter sido admitida a exibição do filme em questão, pelo douto Tribunal "a quo",
e tendo-o permitido, violou o disposto no artigo 3570 nº 1 do Código de Processo Penal, cuja
consequência é a inadmissibilidade de validação de tal, como prova, tendo, ainda, como
consequência, a viciação da Decisão em sede de apreciação da matéria de facto por parte dos
Jurados, e que, lamentando-se, acarretará a nulidade do Julgamento, para além da necessária
absolvição dos Arguidos, a restituir à liberdade no dia da leitura do douto Acórdão a proferir.
Termos em que, deve o presente Recurso merecer provimento, consequentemente se
revogando o douto Despacho que admitiu a exibição do filme realizado em sede de Inquérito,
com todas as demais e legais consequências.
4. O Ministério Público, a arguida BB e o arguido AA, por esta ordem, recorreram do acórdão
final.
dificuldade de controlo dos impulsos, que o leva a ser agressivo, tentando solucionar os
conflitos através de tal agressividade, não sentindo remorsos pelas consequências dos actos
que assim leva a cabo, desprezando os direitos, desejos ou sentimentos dos outros, e a arguida
BB manifesta comportamento socialmente desviante ao nível das normas, valores e
responsabilidades, instabilidade emocional e dificuldades em expressar a frustração, sendo a
sua socialização marcada por relações interpessoais imaturas, superficiais e narcísicas, onde
estão salientes as características de manipulação (para satisfação das próprias necessidades) e
agressividade (de tonalidade sobretudo sádica), salientando-se na sua personalidade a ausência
de empatia e a insensibilidade, o que leva ao desprezo da arguida pelos direitos, necessidades e
sentimentos dos outros, para estes dirigindo a sua agressividade, tendo fraca capacidade para
sentir remorsos. Possui personalidade limite com traços anti-sociais/psicopáticos, narcísicos e
esquizóides.
9. Antes se tornando necessário, em obediência aos preceitos legais atrás mencionados,
agravar tais penas;
10. Entendendo-se que também no caso do crime de ocultação de cadáver deverão os arguido
ser punidos pelo máximo previsto na lei, tendo em conta que neste crime acabou por ficar
englobada a prática de actos que, separadamente, constituem o crime de profanação de
cadáver;
11. Sendo ainda que as penas a impor aos arguidos deverão ser de igual montante, pois que, se
a pena da arguida BB deverá ser mais grave por via de ter sido vítima dos seus actos a sua
própria filha, preciso é não esquecer que o arguido AA já tem antecedentes criminais
precisamente na área dos crimes contra a vida.
12. E daqui que o douto acórdão recorrido deva ser alterado no sentido de aos arguidos serem
impostas as seguintes condenações:
- Ao arguido AA, imposta a pena única de 23 (vinte e três) anos de prisão, resultante de
cúmulo jurídico entre as penas de:
- 22 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. nos art.ºs. 131° e
132°. nºs. 1 e 2, al. b); e de
- 2 anos de prisão pela prática de um crime de ocultação de cadáver, p. e p. pelo art.º 254°, nº
1, ai. a), ambos do Código Penal.
- À arguida BB, imposta a pena única de 23 (vinte e três) anos de prisão, resultante do cúmulo
jurídico das penas de:
- 22 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. nos art.ºs. 131° e
132°. nºs. 1 e 2, ais. a) e b); e de
- 2 anos de prisão pela prática de um crime de ocultação de cadáver, p. e p. pelo art.º 254°, nº
1, al. a), ambos do Código Penal.
disposto nos artigos 356°-7 e 357° do C.P.P., pelo que, sem outros, e imprescindíveis
elementos, não poderia o douto Tribunal "a quo" ter condenado a ora Recorrente, que deve ser
absolvida, merecendo provimento o presente Recurso, verificando-se ter ocorrido errada
apreciação da prova, contra o legalmente estabelecido, não valendo depoimentos de
Inspectores da P.J., que ouviram determinados depoimentos, nem os de outros, terceiros, que
dizem ter falado e ouvido dos Arguidos....
5° O depoimento indirecto, ou por ouvir dizer, depende de confirmação, que nunca ocorreu,
razão por que não poderá ser considerado.
6° O princípio da Livre Apreciação da Prova vertido no artigo 127° do C.P.P., deve ter um
suporte fáctico que, concretamente, inexiste, e, da análise de todos os elementos, a única
decisão a proferir, devia ter sido a absolvição da ora Recorrente, por via da manifesta ausência
de matéria de facto, e de prova válida que a suporte.
7° Não existe excepção ao princípio da obrigatoriedade de registo da prova vertido no artigo
363° do C.P.P., pelo que a não documentação das declarações prestadas oralmente em
Audiência, viola tal disposição legal, para além de que nega à Arguida o direito constitucional
de recorrer de facto - art.º 32°-1 da C.R.P., o que determina a repetição do Julgamento, nos
termos do disposto nos artigos 410° nº 2 e 426° nº 1, ambos do C.P.P., cuja consequência é o
reenvio do Processo para repetição do Julgamento.
8º A realização do Julgamento não deve permitir influências na formação da convicção dos
Julgadores, no caso concreto, Colectivo de Juízes e Jurados, em número de quatro, e a
reprodução de que se interpôs Recurso poderá ter interferido na convicção dos Jurados, que
desconhecem que tipos de provas, directas ou indirectas, são válidos para a apreciação da
causa
9° Não podem ser reproduzidas declarações de Arguidos, que optaram por exercer o direito de
não prestar declarações, sob pena de violação do disposto no artigo 357° do C.P.P., e o
depoimento indirecto é inadmissível, nos termos do disposto no artigo 129°-1 do C.P.P., tendo
o douto Tribunal "a quo" formado a sua convicção sem matéria de facto, por um lado, de
forma irremediavelmente contraditória, por outro, e com base em provas legalmente inválidas,
não podendo o Julgamento deixar de ser anulado.
10° Na dúvida, ou na ausência de certeza, cabe a absolvição da Arguida, em obediência ao
Princípio "in dubio pro reo ", e, inexiste a menor certeza de que a BB tenha praticado a
factualidade por que veio condenada no douto Acórdão, a revogar, por provimento do presente
Recurso.
11º Declarações de co-arguido não valem como testemunho, nem como prova, nem
relativamente a si, nem relativamente a co-arguido, pelo que as referências a qualquer
reconstituição, em que a Recorrente não participou, não poderão ser atendidas como prova, o
que determinará a anulação do Julgamento, para além de todo o mais.
12° . Não constando da Acta respectiva que fosse permitida a inquirição dos Inspectores da P.
J., não valem tais depoimentos, nos termos do disposto no nº 7 do artigo 356° do Código de
Processo Penal.
13° Ao não ter procedido ao registo da prova produzida em Audiência de Discussão e
Julgamento, o douto Tribunal "a quo" praticou uma inconstitucionalidade, por violação do
artigo 32°-1 da C.R.P., e negou aos Arguidos o Direito de Recurso de Matéria de Facto, além
de que violou o disposto no artigo 363° do C. P. P., não sendo possível ultrapassar tais
nulidades, sem que seja repetido o Julgamento.
14° O douto Tribunal "a quo "fez errada análise dos factos ao ignorar que as perguntas feitas à
BB, na entrevista a que se refere, eram feitas no passado, que envergava calças encarnadas,
bem como noutras conclusões a que nos referimos supra designadamente quando concluiu que
a CC chegou a casa, só porque o vizinho que a viu passar não ouviu gritos, nem viu carros,
para além de que condenou por crime qualificado, depois de não ter dado por provada a
intenção de matar, designadamente, outra consequência não sendo possível que o reenvio do
Processo para repetição do Julgamento..
15° O douto Tribunal "a quo" devia ter absolvido a Arguida BB, ora Recorrente, em face das
dúvidas evidentes, e da falta de prova bastante, validamente produzida, em obediência do
Princípio "in dubio pro reo ", uma vez que, do Julgamento, e de todo o mais, nenhuma certeza
resultou de que a Recorrente tivesse praticado, ou participado na factualidade por que veio a
ser condenada em 1ª Instância, não podendo concluir-se, em face dos factos, pela culpa, para
cuja prova nada existe.
16° Ao condenar a ora Recorrente, em vez de a absolver, como devia ter feito, decidindo como
fez, o douto Tribunal "a quo" violou o Princípio da Presunção de Inocência - in dubio pro reo -
o disposto nos artigos 32° nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, 356°-7, 357°
127° 128°-1, 129°-1, 133°-1 a), 136°-1 e 363° do Código de Processo Penal, designadamente.
17º Para além disso, e conforme referido supra, verifica-se insuficiência de matéria de facto,
para a Decisão, contradição insanável da fundamentação, e erro notório na apreciação da
prova, pelo que, nos termos do disposto nos artigos 410° nº 2, a), b) e c), e 426° do Código de
Processo Penal, não sendo possível decidir a causa, deverá ser reenviado o Processo para
repetição do Julgamento, caso se entenda não revogar o douto Acórdão ora em Recurso, e
substituir por outro que absolva a Arguida ora Recorrente.
Nestes termos e nos demais que Vs Exas. doutamente suprirão, a não ser o douto Acórdão de
fls. anulado e reenviado o Processo para repetição do Julgamento, face a eventuais e alegadas
nulidades, aliás, do conhecimento oficioso, o que se requer, deverá o douto Acórdão ora
recorrido ser revogado e substituído por outro que absolva a Arguida BB, ora Recorrente, e,
consequentemente, determine a sua imediata restituição à liberdade.
1. Está em causa a liberdade de um ser humano, que se presume inocente até trânsito em
julgado da sentença e a quem assiste, em caso de dúvida razoável, o princípio in dubio pro reo.
2. O processo penal, numa óptica jurídico-processual, tem por finalidades, na aplicação da lei
penal aos casos concretos, a descoberta da verdade material e a realização da justiça, por meios
processualmente admissíveis.
3. Vigora o PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA, nos termos do qual, em caso de
dúvida quanto à matéria probatória, a decisão deve ser a mais favorável ao arguido, implicando
a inadmissibilidade da presunção da culpa.
4. A presunção da inocência, como corolário do respeito pela dignidade da pessoa humana
impõe que o processo penal seja justo, não se conformando, por isso, com um tratamento
privilegiado de um qualquer meio de prova, mesmo que de uma confissão se trate, como
resulta do disposto no art.º 344º do C.P.P.
5. O silêncio é um direito do arguido, consagrado nos art.ºs 61º nº 1 alínea c) e 141º nº 5 do
C.P.P.
6. O exercício, por parte do arguido, do seu direito ao silêncio nunca o pode desfavorecer,
como resulta do disposto nos art.ºs. 343º nº 1 e 345º nº 1 do C.P.P..
7. Vigora a proibição do arguido ser utilizado como meio de prova, o art.º 141º nº 5 do CPP,
ao preceituar que seja garantida a liberdade do arguido de prestar ou não declarações e de que,
prestando-as, não lhe é exigível que diga a verdade.
8. O CPP define regras inderrogáveis de produção de prova em audiência de discussão e
julgamento.
9. Não valem em julgamento, designadamente para formação da convicção do Tribunal,
quaisquer provas que não tenham sido, igualmente de forma válida, produzidas ou examinadas
em audiência, cfr. art.º 355º nºs 1 e 2 do CPP.
10. Recusando-se o arguido a prestar declarações em audiência, a leitura dos autos que
contenham declarações suas é proibida, cfr. decorre do disposto no já citado art.º 357º do CPP.
11. O arguido ora recorrente e a co-arguida, estão a ser julgados em Tribunal Colectivo com
intervenção de Júri.
12. No uso do direito que lhe assiste, o arguido, em audiência de discussão e julgamento, não
prestou declarações.
13. Tão pouco usou da faculdade, que igualmente lhe assiste, de requerer a leitura de quaisquer
declarações que haja prestado anteriormente, cfr. art.º 357º nº 1 al. a). do CPP.
14. Pretendeu-se, com a invocação das alegadas "reconstituições", realizadas numa fase inicial
do inquérito, a reprodução na mesma audiência, de declarações prestadas pelo arguido ora
57, 59, 60, 68, 69, 73, 80, 83, 91, 96, 107, 113, 114, 117 e 125, em contraposição com os
factos dados como provados e dos factos dados como não provados sobre o mesmo tema,
verificando-se, por isso, uma inequívoca omissão de pronúncia, prevista na alínea c) do art.º
379º nº 1 d CPP, cuja consequência legal é a nulidade da sentença, cabendo tirar as ilações
legais que as discrepâncias impõem.
33. Tudo consistindo numa clara omissão de pronúncia, cominada com a nulidade por violação
das disposições contidas nos art.ºs 374º nº 2 e 379º alínea c) do CPP.
34. De resto, se um determinado facto não se provou, não é lícito concluir, ou presumir, que se
provou o contrário, e vice-versa.
35. Não pode condenar-se um arguido com base em presunções, que não são meio de prova,
mas simples meios lógicos ou mentais, por violação do normativo constitucional contido no
art.º 32º nº 2 da CRP.
36. À contrário, e atenta a mesma factualidade, sempre teremos uma condenação por factos
diversos dos descritos na acusação, o que nos termos da alínea b) do nº 1 do art.º 379º do CPP,
redunda na nulidade da decisão ora recorrida.
37. É manifesta a existência dos vícios do art.º 410º nº 2 do CPP, nomeadamente insuficiência
da matéria fáctica, contradição insanável na fundamentação e entre a fundamentação e a
decisão e erro notório na apreciação da mesma, de resto de conhecimento oficioso do Tribunal
"ad quem".
38. Persiste, assim, dúvida razoável quanto à responsabilidade do arguido pelos factos de que
vem acusado.
39. Por tudo o exposto, impunha-se decisão diversa.
40. De facto,
41. Nunca poderia o Tribunal "a quo" decidir como decidiu.
42. Assim decidindo,
43. O Tribunal "a quo" violou o ínsito no art.º 357º nº 1 do CPP, cuja consequência legal é a
nulidade, nunca podendo aquela ser validada como prova ou valorada como tal para efeitos de
decisão condenatória.
44. O Tribunal "a quo" violou o previsto no nº 7 do art.º. 356° do CPP, para o qual remete o nº
2 do art. 357° do mesmo diploma legal, cuja consequência legal é a nulidade, nunca podendo
aquela ser validada como prova ou valorada como tal para efeitos de decisão condenatória.
45. O Tribunal "a quo" violou o princípio da presunção da inocência consagrado
constitucionalmente no art.º 32º nº 2 da CRP, não o aplicando das circunstâncias cominadas na
Lei.
46. Verificando-se a existência dos vícios do art.º 410º nº 2 do CPP, há que determinar a
anulação do julgamento para operar o suprimento dos mesmos e a sua ultrapassagem.
47. O douto acórdão ora recorrido sofre de nulidade insuprível por falta de indicação de provas
que serviram para formar a convicção do julgador, violadas que se acham as disposições
contidas nos art.ºs 374º nº 2 e 379º alínea a) do CPP.
48. É nulo o douto acórdão ora recorrido por não conter a enumeração e todos os factos
relevantes para a decisão da causa, provados e não provados, desta feita os constantes da
acusação, numa clara violação dos citados art.ºs 374º nº 2 e 379º alínea a) do CPP, todos
essenciais à caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes para a
qualificação do crime ou, sendo caso disso, para a graduação da responsabilidade do arguido, e
que decorre, desde logo, do disposto no art.º 368º nº 2 do CPP.
49. E omissão de pronúncia, cominada com a nulidade por violação das disposições contidas
nos art.ºs 374º nº 2 e 379º alínea c) do CPP.
50. À contrário, e atenta a mesma factualidade, sempre teremos uma condenação por factos
diversos dos descritos na acusação, o que nos termos da alínea b) do nº 1 do art.º 379º do CPP,
redunda na nulidade da decisão ora recorrida
51. Pelo exposto,
52. Deve a decisão impugnada ser substituída por uma outra que determine a anulação do
julgamento e a repetição do mesmo, determinando o reenvio do processo para novo
julgamento.
53. Termos em que, verificado tudo o supra exposto e o mais que V. Exas. doutamente
suprirão, porque é de elementar justiça, deve o presente recurso merecer provimento, com
todas as consequências legais.
Tanto que a dado momento cessou essa colaboração depois de, a seu pedido - imediatamente
acedido - conversou com a Defensora.
E tanto que o teor da reconstituição em que colaborou foi corroborado por variados elementos
de prova colhidos nos autos, incluindo diversas declarações coincidentes que foi prestando
depois.
Sendo assim inconsequente o pedido de nulidade de tal prova.
E.VI. Como é inconsequente o pedido de nulidade da prova resultante dos depoimentos dos
elementos da Polícia Judiciária que estiveram presentes nessa e noutra reconstituição
efectuada, bem como acerca de documento elaborado pelo arguido em que este desenha os
instrumentos utilizados para o corte dos restos mortais da malograda CC.
Pois que tal não viola, ao contrário do invocado, o disposto no art.º 356º, nº 7, do CPP, o que
só sucederia caso tais depoimentos dos elementos policiais tivesse versado sobre declarações
dos arguidos, o que não sucedeu.
Antes tendo versado - como resulta do acórdão - e foi valorado o depoimento de tais elementos
da PJ no que se refere ao modo e aos termos em que tais provas foram reunidas.
E.VII. Inexistiu igualmente qualquer contradição insanável na motivação decorrente de não se
terem entendido como sendo da malograda CC os vestígios recolhidos através da técnica da
projectina e o entendimento de serem seus os vestígios de sangue humano colhidos na casa
onde decorreram os factos, ou entre esta conclusão e a de que, por acção de limpezas
efectuadas pela arguida BB, não ter sido possível apurar o ADN de tal sangue.
Isto porque foi através de muitos outros elementos de prova que se concluiu por ser sangue da
menor aquele que foi colhido na casa, em nada se relacionando esses vestígios hemáticos com
os colhidos pela técnica da projectina (que faz surgir outros fluidos corporais).
Sendo ainda que apenas poderia existir a alegada contradição caso existissem, por sua vez,
elementos laboratoriais que afastassem a possibilidade de o sangue pertencer à vítima, o que
não sucedeu.
Não existem, assim, quaisquer factos contraditórios dados como provados quanto a esta
matéria.
E.VIII. A omissão probatória quanto ao facto de os arguidos serem entre si irmãos é alegação
que também não colhe, pois que tal resulta da sua própria identificação em audiência.
Nunca levando, ao contrário do pretendido, à anulação do julgamento. No máximo - a
entender-se por tal necessidade (que nem existe - nem a recorrente nega alguma vez a
veracidade de tal parentesco...) tal apenas justificaria a necessidade da junção aos autos dos
respectivos assentos de nascimento...
E.IX. No que se refere à efectiva existência de uma contradição entre um facto provado e outro
não provado - ter a malograda CC cerca de 3 anos de idade na altura em que, pela segunda vez,
a arguida BB tentou entregá-la ao pai - tal corresponde a evidente lapso.
Lapso que, a não ter sido já sanado (conforme solicitado pelo MP no início desta resposta),
nunca importaria a pretendida nulidade, pois que versa apenas sobre facto secundário, não
acerca dos factos integradores dos crimes pelos quais a recorrente e o seu irmão foram
condenados.
E.X. Os factos dados por provados e não provados, na forma em que o foram, não importaram
- não obstante nalguns aspectos tivesse sido diferente a redacção utilizada no acórdão daquela
que havia sido utilizada em sede de despacho de pronúncia - alteração relevante.
Pois que, para além de não se poder exigir que os juízes sejam meros copistas, tais alterações
apenas resultaram da prova produzida em sede de julgamento, sendo até benéficas para a
defesa, não a prejudicando.
Nunca se chegando às figuras da alteração substancial ou não substancial dos factos previstas
nos art.ºs. 358º ou 359º do CPP, que só se verificam quando tais alterações factuais sejam, ou
de molde a levar à condenação por crime diverso ou à agravação dos limites máximos das
sanções aplicáveis (art.º 1º, al. f), do CPP), ou pelo menos (no caso da alteração não
substancial), quando tiverem "relevo para a decisão da causa" (conforme nº 1 do citado art.º
358º).
Tal relevo não existiu - nem o recorrente o demonstra minimamente -, pelo que inconsequente
se torna a invocação de "omissão de pronúncia" que levaria à nulidade.
E.XI. Como não se pode entender ter sido o arguido/recorrente condenado apenas com base
em presunções, persistindo dúvida razoável quanto à sua responsabilidade criminal.
Isto porque - para além de, lembre-se, nem sequer ser pelo recorrente alegada a inocência - a
sua condenação decorreu do conjunto de provas colhidas, que, aliadas às regras da experiência
(nas quais entram efectivamente as presunções naturais como regras da experiência que
permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido,
quando um facto é a consequência típica de outro), conduziram à convicção livre dos
julgadores acerca da sua culpabilidade.
Convicção livre mas não arbitrária, como decorre da extensa e pormenorizada fundamentação
da decisão na qual se descreve o modo como foi formada, sendo sempre beneficiados os
arguidos nos casos em que se verificou dúvida acerca de matérias constantes na pronúncia
(como foi o caso do motivo do crime em que as dúvidas apenas os beneficiaram, sendo
afastada uma das qualificativas do crime).
F. Pelo que terão de improceder todas as alegações formuladas no recurso interposto por este
arguido, mantendo-se, ao invés, a douta decisão recorrida (sempre salvo o que respeita às
penas concretas impostas aos arguidos, nos moldes referidos no recurso interposto pelo
Ministério Público).
6. A Sr.ª Procuradora-Geral-Adjunta neste Supremo Tribunal de Justiça apôs o seu visto, para
alegar oralmente em audiência.
Público na 1ª instância.
A defesa dos arguidos, por seu turno, também alegou no sentido traçado pelas respectivas
motivações de recurso e cujas conclusões se acham reproduzidas em 2. e 4.
Nos recursos do Acórdão final, o Tribunal coloca, desde logo, a seguinte questão:
4ª- Os crimes de homicídio, ocultação e profanação de cadáver podem verificar-se num caso
em que o cadáver, ou sequer parte dele, foi encontrado?
vezes falava da filha no passado e vestia blusa preta é indiscutivelmente diferente de "estar de
luto" como se pretende na pronúncia?
13ª- O mesmo sucedendo também quanto aos pontos 12, 16, 21, 24, 30, 31, 41, 47, 51, 52, 53,
54, 57, 59, 60, 68, 69, 73, 80, 83, 91, 96, 107, 113, 114, 117 e 125, em contraposição com os
factos dados como provados, tudo consistindo numa clara omissão de pronúncia, cominada
com nulidade?
14ª- Existe uma condenação por factos diversos dos descritos na acusação, o que nos termos da
alínea b) do n.º 1 do art.º 379º do CPP redunda na nulidade da decisão ora recorrida?
15ª- É manifesta a existência dos vícios do art.º 410º nº 2 do CPP, nomeadamente insuficiência
da matéria de facto, contradição insanável na fundamentação e entre a fundamentação e a
decisão e erro notório na apreciação da mesma, pelo que há que determinar a repetição do
julgamento para operar o suprimento dos mesmos?
16ª- O acórdão ora recorrido sofre de nulidade insuprível por falta de indicação de provas que
serviram para formar a convicção do julgador?
17ª- É nulo o acórdão recorrido por não conter a enumeração e todos os factos relevantes para
a decisão da causa, provados e não provados, desta feita os constantes da acusação?
18ª- Persiste uma dúvida razoável quanto à responsabilidade do arguido pelos factos de que
vem acusado e o Tribunal "a quo" violou o princípio da presunção da inocência consagrado
constitucionalmente no art.º 32.º, n.º 2, da CRP?
II. FUNDAMENTAÇÃO
9. Matéria de facto segundo o tribunal recorrido
9. 1. Factos dados como provados:
a) os arguidos são irmãos entre si;
b) o arguido AA nunca teve emprego nem residência certos, vivendo no interior de um veículo
automóvel, ou em casa dos seus irmãos, sobrevivendo à custa de trabalhos ocasionais que
levava a cabo em diversos locais;
c) o arguido AA manifesta desprezo pela vida humana - resultado de mau ajustamento social e
de frieza afectiva - e tem tendências anti-sociais/psicopáticas com dificuldade de controlo dos
impulsos, que o leva a ser agressivo, tentando solucionar os conflitos através de tal
agressividade, não sentindo remorsos pelas consequências dos actos que assim leva a cabo,
desprezando os direitos, desejos ou sentimentos dos outros;
(cfr. a certidão de fls. 675 ss que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos
legais);
f) a arguida BB, que teve seis filhos de cinco relações, ao longo da sua vida tem vindo a
mostrar algum desinteresse pelos filhos mais velhos;
g) no que se refere à filha mais velha, EE, actualmente a morar como pai e a avó em Olhão, ali
a deixou com 11 meses de idade, nunca mais dela se interessando, não curando de saber da
mesma durante 14 anos;
h) o segundo filho, FF, que viveu com a avó paterna e vive actualmente com uma tia paterna,
em Messines, foi também por si deixado entregue ao pai, dele não se interessando mais;
i) o quarto filho, HH, que vive actualmente com o pai em Porches, quando tinha 7 meses foi
deixado pela arguida BB sozinho em casa, seguro na cadeira, tendo assim sido encontrado por
vizinhos que se aperceberam da situação;
j) nessa altura a arguida BB passou a viver com II, relação de que teve dois filhos, JJ e KK;
l) o terceiro filho que teve foi CC, nascida a 31.05.1996, filha de LL;
m) a menor CC, em Setembro de 2004, tinha 8 anos, sendo magra e com altura entre 1,20
metros e 1,40 metros; (2)
p) quando a arguida se encontrava a viver com o companheiro II, a menor CC ajudava a mãe
nalgumas tarefas caseiras, sendo que às vezes ajudava a limpar a casa, tratava dos irmãos mais
novos e fazia compras;
q) antes da arguida BB se encontrar a viver com o companheiro II, pretendeu aquela deixar de
ter a menor CC a seu cargo, tendo-a deixado, com 5 meses de idade com o pai, LL - com quem
não se relacionava desde o início da gravidez - o qual acabou por a ‘devolver’ cerca de 2 dias
depois, sendo que, mais tarde, voltou a entregá-la ao pai, o qual não quis ficar com ela;
t) de uma outra vez, a mesma vizinha levou a menor ao hospital, numa ocasião em que era
visível a mesma estar doente com muita tosse;
v) no final da tarde daquele dia 12 voltaram para casa a sua irmã, a arguida BB, e os filhos
desta, CC, JJ e KK;
z) a sala da casa onde residia a arguida BB, é situada imediatamente após a porta de entrada na
casa e a porta que dá acesso à rua tem manípulo do lado exterior que permite a entrada
imediata na residência;
aa) a menor CC regressou a casa vinda da "Pastelaria ...", onde havia adquirido os produtos
alimentares atrás mencionados;
ab) a dada altura, por motivo não concretamente apurado, ambos os arguidos começaram, em
conjunto, a dar sucessivas pancadas na cabeça da menor CC, levando-a a embater com a
cabeça na esquina da parede, sendo visível que sangrava, da boca, nariz e têmpora, mercê dos
embates na parede, que causaram também a queda da menor e a sua morte, cessando então a
actividade dos arguidos;
ac) ficaram vestígios de sangue da menor nas paredes e no chão da sala, em diversos locais, e
também junto à entrada;
ad) os arguidos asseguraram-se da morte da CC, verificando que não respirava nem reagia e
então, não querendo ser responsabilizados pela morte da filha e sobrinha, decidiram obstar a
que tal morte fosse conhecida de terceiros;
ae) assim, logo decidiram que teriam de fazer com que não fosse verificada na casa a
existência de quaisquer sinais do que haviam acabado de praticar, que o corpo da menor nunca
fosse encontrado e que, de preferência, fosse criada a convicção em todos que a menor teria
sido levada por terceiros;
af) assim, a arguida BB ficou em casa, lavando a parede e o chão onde estavam sinais de
sangue da CC, bem como o local onde a menor ficou caída depois de morta, utilizando para
tanto uma esfregona e o respectivo balde;
ag) e, como sabiam que o companheiro da arguida BB - II - e o amigo deste, MM, estavam
prestes a chegar a casa, podendo descobrir o que se havia passado caso ali chegassem antes se
serem limpos os vestígios, cerca das 21h 30m, o arguido AA saiu, dirigindo-se à "Pastelaria
....", onde se encontrou com o II e o MM, que já ali se encontravam, e a quem disse que a
menor CC não havia regressado a casa;
ah) quando os três regressaram a casa, a arguida BB já tinha limpo as marcas de sangue ali
existentes, e referiu igualmente que a menor CC não tinha regressado a casa depois de efectuar
as compras;
aj) decidiram então os arguidos, em conjunto, cortar o corpo da menor para possibilitar guardar
o mesmo na arca frigorífica existente na sala;
al) na prossecução desse objectivo, os arguidos muniram-se de uma faca e de uma serra de
cortar metal que se encontravam na habitação, instrumentos aptos a obter os resultados que
pretendiam, no espaço de tempo de cerca de 30 minutos;
am) com tais instrumentos, auxiliando-se mutuamente, os arguidos cortaram o corpo da CC,
separando a cabeça do tronco e cortando as pernas pela zona dos joelhos;
an) cada um desses pedaços de corpo foi colocado dentro de sacos de plástico - a cabeça num,
o tronco e parte das pernas noutro e as duas pernas abaixo do joelho num terceiro - e após
darem um nó na abertura do saco que continha a cabeça, tentaram, pelo menos, colocar tais
sacos nos três compartimentos da arca frigorífica, deixando sangue da menor em várias zonas
do interior da segunda gaveta dessa arca;
ao) os arguidos não colocaram os sapatos que a menor tinha calçados nos sacos, tendo ficado
em casa todos os pares de sapatos que a menor utilizava naquele Verão;
ap) por a menor já estar morta há cerca de duas horas, do corpo não saiu muito sangue;
aq) entre as 22h 30m e as 23h, a arguida BB juntou-se ao companheiro II e ao MM, perante os
quais reiterou que a CC tinha desaparecido, sendo que só então se deslocou à "Pastelaria ....." e
perguntou à proprietária (NN) se a CC ali tinha estado, dizendo depois que ela tinha
desaparecido;
ar) no entanto, a arguida de nada informou as autoridades policiais, apesar de haver militares
da GNR de serviço na Figueira, pois que aí decorria uma festa popular denominada "Festa do
Berbigão", tendo sido terceira pessoa (NN) que o fez, telefonicamente, pelas 0h e 44m do dia
13 de Setembro, quando soube que a arguida o não havia feito ainda, sendo que na sequência
do supra referido telefonema, a arguida acabou por falar com elementos da GNR junto à igreja
da Figueira;
as) nessa altura a arguida disse que não tinha telefonado por não ter dinheiro no telemóvel;
at) mais tarde, cerca das 2h da madrugada, a arguida comprou bolos numa padaria situada na
mesma localidade;
av) e por intervenção de terceiros, familiares do seu companheiro II, começou verdadeiramente
a ser difundido o alegado ‘desaparecimento’, sendo distribuídas fotografias da CC, pois até ali
os arguidos tinham pretendido não alertar as autoridades;
ax) no final da noite de dia 13, os arguidos saíram juntos de casa, levando um saco;
az) o arguido AA manteve-se em casa da arguida BB até dia 14, espaço de tempo durante o
qual os dois arguidos, de forma que não foi possível apurar, transportaram os restos mortais de
CC para local desconhecido, concretizando assim a intenção a que se haviam proposto -
impedir a localização daqueles restos mortais - não sendo até hoje localizados tais restos, tal
como não foram localizados os instrumentos de corte utilizados, que os arguidos esconderam
em local desconhecido;
aaa) a arguida BB concedeu entrevistas à comunicação social, tentando fazer crer que a menor
havia efectivamente desaparecido, versão que mantinha perante muitas das pessoas que se
interessavam pela sorte da menor e a questionavam acerca da matéria;
aab) nessas entrevistas acerca do caso a arguida BB, por vezes, falava da filha no passado e
vestia blusa preta;
aad) no dia 18.09, a arguida BB adquiriu petróleo e um esfregão de aço, com o que lavou a
casa, aproveitando assim para apagar quase todos os indícios do que ali havia ocorrido,
restando apenas vestígios de sangue humano no interior da casa, contaminados pelos produtos
utilizados;
aae) por indicação da arguida BB, elementos da Polícia Judiciária deslocaram-se a casa da avó
paterna da filha mais velha da arguida BB (EE), em Olhão, à procura da CC, bem como
investigaram se um indivíduo de nacionalidade marroquina teria levado a menor;
aaf) quando presente a psicóloga clínica, no âmbito de perícia efectuada no âmbito dos autos, a
arguida BB referiu a existência de uns vizinhos de nacionalidade brasileira que poderiam ter
levado consigo a CC, pois que teriam dois carros "bons" e ter-se-iam ido embora do local na
mesma data em que a menor havia "desaparecido";
aai) as actividades atrás descritas foram levadas a cabo pelos arguidos em concertação de
esforços e intenções, de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo serem aquelas
condutas punidas pela lei;
aaj) assim no que se refere ao tirar da vida de CC, sua familiar directa (filha e sobrinha), o que
fizeram utilizando a força, aproveitando-se de a mesma não poder defender-se (tendo em conta
a idade e compleição física) e empregando a força bem sabendo que, tendo em conta o local
vital em que atingiam o seu corpo (a cabeça) repetidamente e com violência, levando a que a
cabeça da menor embatesse na parede, lhe poderiam retirar a vida, consequência que
aceitaram, não cessando mesmo assim essa sua actividade;
aal) não obstando a tal a circunstância de a menor depender da mãe e ser familiar directa de
ambos, devendo pelos mesmos ser defendida e não vítima;
aao) o arguido AA, para além da condenação supra referida em e), foi ainda condenado, em
1995, por acórdão transitado em julgado e pela prática de um crime de furto qualificado, na
pena, em cúmulo com a pena proferida pelo crime de homicídio tentado, de 3 anos e 8 meses
de prisão; em 2001, pela prática de um crime de condução ilegal de veículo, foi condenado,
por sentença transitada em julgado, na pena de 90 dias de multa; e em 2003, pela prática de um
crime de condução ilegal de veículo, foi condenado, por sentença transitada em julgado, na
pena de 6 meses e 15 dias de prisão, suspensa na sua execução mediante o cumprimento de
condições, vindo a suspensão a ser revogada;
aap) como habilitações literárias, a arguida BB tem a 3ª classe, nunca teve qualquer profissão e
casou com 18 anos;
aaq) como habilitações literárias, o arguido AA tem a 4ª classe e desde que saiu da escola
começou a trabalhar, embora sempre exercendo serviços indiferenciados e sem vínculo
laboral;
aas) os arguidos nasceram no seio de uma família numerosa (os pais e 9 irmãos), onde se
destacavam os hábitos alcoólicos do pai e as dificuldades económicas.
2- que o HH, filho da arguida BB, tenha sido socorrido por vizinhos;
4- que a arguida BB tivesse abandonado a CC, como havia já feito aos outros filhos;
5- que da segunda vez em que a arguida BB entregou a CC ao pai, a menor tivesse cerca de 3
anos de idade;
6- que a menor CC fosse fonte de discussão entre a sua mãe, a arguida BB, e o padrasto II,
chegando ao ponto de ser por aqueles ameaçada de ser posta fora de casa;
7- que cerca das 20 h daquele dia 12 de Setembro, quando os dois arguidos se encontravam
sozinhos, tenham os mesmos decidido manter entre si relações sexuais, sendo que os filhos
menores da BB não constituíam impedimento a tal acto, pois que se encontravam a dormir
num quarto, já a CC não poderia assistir a tais actos;
8- que quando a CC saiu de casa, os arguidos tenham começado a manter entre si relações de
cópula, no sofá da sala e que ainda se encontrassem a manter relações sexuais quando a menor
regressou a casa;
9- que ao ver o que a mãe e o tio estavam a fazer, logo a menor CC tenha dito que iria contar
ao padrasto que eles estavam "a fazer coisas porcas", tentando sair de casa;
10- que os arguidos se tenham levantado do sofá, dirigindo-se na direcção da CC, visando
impedi-la de denunciar ao II o que havia presenciado;
11- que o lado da cabeça com que a CC embateu na esquina da parede tenha sido o esquerdo e
12- que a CC tenha tentado fugir de casa, sendo então puxada para dentro pelo arguido AA;
13- que a CC tenha deixando impressões palmares e da face nas paredes, quer no lado exterior,
quer interior, junto à porta de entrada na casa;
14- que os arguidos tenham colocado o corpo da menor, embrulhado num edredon, num canto
de um dos quartos da casa, em local que não era visível para quem ali eventualmente entrasse,
a fim de depois decidirem o destino que lhe dariam;
15- que a arguida BB tenha utilizado detergente e lixívia na lavagem da parede e do chão onde
estavam sinais de sangue da CC;
16- que o arguido AA tenha estado a tomar uma cerveja com o II e o MM, na "Pastelaria ...",
para melhor atrasar o regresso dos mesmos a casa;
17- que os arguidos, tenham pensado colocar o corpo da menor dentro de uma fossa situada
junto à casa, pelo que o arguido AA se deslocou ao local, mas verificou que tal não seria
possível por a tampa da referida fossa estar parcialmente cimentada, do que informou a
arguida BB;
18- que a faca com que os arguidos cortaram o corpo da menor tivesse cabo preto;
19- que os arguidos tenham colocado o corpo da CC no chão da sala, em cima de um lençol;
20- que os arguidos tenham dado um nó na abertura dos sacos que continham o tronco e as
pernas;
21- que os arguidos tenham efectivamente colocado os três sacos nos três compartimentos da
arca frigorífica;
22- que os arguidos tivessem mudado de roupa que tinham vestida e a arguida BB, mais uma
vez nessa noite, tenha lavado o sangue que havia ficado no chão;
24- que o saco que os arguidos levavam no final da noite do dia 13 de Setembro contivesse os
instrumentos utilizados no corte da menor;
25- que, entretanto, tenham começado a surgir carraças na casa, dada a actividade mencionada;
26- que, já depois de presa, a arguida BB tenha, por diversas vezes, imputado ao co-arguido
AA a total responsabilidade pelos factos, bem como a tenha também imputado ao MM, para
além de ter referido ter sido o corpo colocado em carro destinado a ser prensado em Espanha,
ou em diversos locais que foi indicando;
27- que o arguido AA, no 1° interrogatório, tenha indicado estar o corpo da CC debaixo de
uma ponte, que liga a Figueira à Mexilhoeira, do lado oposto àquele que inicialmente havia
indicado, e que, depois, tenha indicado um seu irmão como tendo transportado o corpo;
28- que os arguidos tivessem agido apenas com vista a que a menor não denunciasse ao
padrasto o que havia visto;
Concretizando...
Nenhuma das testemunhas inquiridas declarou ter assistido aos factos puníveis, embora
algumas tenham relatado factos importantes para a convicção do Tribunal.
A testemunha OO, sogra da arguida BB, declarou que o seu filho casou com a arguida e que na
constância desse matrimónio nasceu a EE, sua neta. Referiu que a arguida BB saiu de casa
quando a filha tinha 11 anos de idade, partindo sem nunca mais a ter visto. Disse também que
a arguida BB ainda telefonou uma vez a saber se podia ir buscar a EE, mas quando a
testemunha lhe respondeu que tinha que falar primeiro com o pai da EE, não se interessou
mais. Referiu ainda a testemunha, que já depois de se falar no desaparecimento da CC, a
arguida chegou a ir a casa da testemunha, em Olhão, acompanhada da Polícia Judiciária, a
quem teria dito que a CC podia ali estar.
A testemunha PP, que viveu com a arguida BB durante 5 anos, contou que é pai do HH, filho
da arguida BB, e que ela o deixou quando o filho tinha 7 meses. Referiu que a arguida se foi
embora, para ir viver com o II, e deixou o bebé na cadeira, seguro com o cinto, sendo que foi
uma vizinha estrangeira que o foi buscar e que lhe entregou o bebé quando a testemunha
chegou a casa.
A testemunha QQ, que está ainda casado com a arguida BB, apesar de separado de facto há
muitos anos, referiu apenas que a arguida o deixou quando a EE, filha de ambos, tinha 11
meses e, ao que sabe, nunca mais a arguida viu a filha.
A testemunha RR, tia paterna do menor FF (filho da arguida BB, o qual tem actualmente 12
anos de idade e vive com a testemunha, tendo-lhe sido confiado pelo Tribunal), referiu que a
arguida BB nunca quis saber do filho e que desde os dois meses de idade foi sempre a mãe da
testemunha e avó do Marco que cuidou dele, pois a arguida nem sequer dava banho ao bebé,
sendo que por mais que uma vez se ausentou de casa durante uma semana, embora depois
voltasse, até que se foi embora de vez.
A testemunha LL, pai da menor CC, contou que se separou da arguida BB quando esta estava
grávida e que ela veio entregar-lhe a CC com 5 meses, dizendo que não podia cuidar dela. A
testemunha disse que teve a CC ao seu cuidado durante 2 dias mas depois foi entregá-la à mãe.
Mais contou que no dia 13 de Setembro de 2004, por volta das 12h 30m, a arguida BB foi
procurá-lo e perguntou-lhe se ele tinha ido buscar a CC porque ela tinha desaparecido. A
testemunha respondeu que não. A testemunha disse ainda que a arguida BB, nessa altura, não
aparentava estar preocupada, nem chocada, sendo que também não chorava e que a senhora
que a acompanhava parecia estar mais preocupada do que ela.
2004, contou que a CC no 1º dia em que às aulas na sua escola chegou atrasada e vinha
acompanhada da BB3 do supermercado, tendo explicado que a razão do atraso era por se ter
perdido. Referiu que a CC era uma miúda sossegada, havendo uns dias em que estava mais
triste, outros em que estava mais alegre. Disse que no princípio ela era uma aluna que
apresentava dificuldades, pois tinha faltado muito à escola, mas depois apanhou os outros. A
CC nunca lhe pareceu ser uma criança maltratada, não aparecia suja nem com marcas no
corpo. Às vezes parecia-lhe que ela andava mal agasalhada, com roupas demasiado finas para
a época, mas apenas isso. A CC dizia que ajudava a mãe em casa. Sendo-lhe perguntado
referiu que a CC devia medir 1,32 metros, ou talvez mais, mas que nunca a mediu.
A testemunha UU contou que o II trabalhou consigo, na área de Porches, durante quase 3 anos,
até vir para a Figueira. Nessa altura eles vivam numa casa da testemunha, junto à casa onde a
testemunha morava. Referiu que só o II trabalhava. Conheceu a CC e considera que ela era
uma criança que estava triste a maior parte das vezes, mas acha que mãe e filha se davam bem
e que a arguida BB não era fria com a CC. Referiu que a arguida BB mantinha a casa mais ou
menos limpa, embora "não como nós". Também referiu que a CC ajudava a mãe, tendo-a visto
varrer algumas vezes. Quanto ao arguido AA também o conheceu e chegou a dar-lhe trabalho,
nunca tendo tido problemas com ele. Acha que ele tratava bem a CC, nunca o tendo visto a
falar alto com ela.
A testemunha MM, padrasto do II, disse que a CC tinha estado em casa da testemunha no dia
em que desapareceu, pois tinha havido uma festa de aniversário. Mais tarde, por volta da meia-
noite, o telefone tocou e a mulher disse-lhe que era a BB a perguntar pela CC porque ela tinha
desaparecido. Às 9h do dia seguinte encontrou a BB com o irmão AA quando ela vinha para
Portimão fazer a queixa do desaparecimento da CC. Disse que a BB estava triste e que vinha
com cara de choro. À tarde desse dia foi a casa da arguida BB que aparentava estar preocupada
(no entanto a testemunha disse que achava que ela devia estar mais preocupada) e viu o
arguido AA, que estava sentado no sofá. Confirmou que a Polícia Judiciária foi diversas vezes
à sucata que a testemunha explora, algumas das quais com o arguido AA, e que andaram a ver
os carros. Contou a testemunha que numa altura em que se encontrou com o arguido AA nas
instalações da Polícia Judiciária, perguntou-lhe "afinal o que tinha acontecido" e o AA
respondeu que "estava a ter relações com a minha irmã" e que "tinham morto a miúda", sendo
que então a testemunha já não quis saber mais nada.
A testemunha AA1, irmã do II, relatou ter estado em casa da mãe, com a arguida BB e a CC,
na festa de anos. Declarou que não viu o arguido AA nesse dia. Depois, na 2ª feira de manhã,
uma das suas irmãs telefonou-lhe a dizer que a CC tinha desaparecido, pelo que foi a casa da
BB ainda nessa manhã, antes de almoço. Quando chegou, a arguida BB vinha das compras
com o arguido AA. Referiu que BB parecia "um pouco" preocupada e disse à testemunha que
a GNR só podia começar a procurar a CC passadas 48 horas. Perguntada, disse que a arguida
BB sempre tratou bem a CC. Ao ser-lhe exibida da carta junta aos autos a fls. 1232, confirmou
tê-la recebido.
A testemunha AA2, que vive maritalmente com a testemunha anterior (Carla), contou que na
2ª feira de manhã foi com a companheira a casa da BB, confirmando que quando chegaram, a
arguida BB vinha das compras com o arguido AA. Perguntaram pela CC e a BB disse que não
sabia de nada mas que já tinha feito a participação. A BB pareceu-lhe "um pouco" preocupada.
Disse também que a arguida BB sempre tratou bem a CC. Confirmou ter sido ele quem
entregou à Polícia Judiciária a carta junta aos autos a fls. 1232 que a companheira recebeu.
A testemunha AA3, relatou que no dia 12 de Setembro, pelas 8h 30m / 8h 40m, estava a janela
de sua casa, a fumar, quando viu a CC, com um saco na mão, a subir as escadas na
proximidade do mercado, em direcção a casa. A testemunha disse que naquele local não havia
movimento, não viu carros, nem ouviu qualquer grito, embora se tenha mantido à janela
durante mais algum tempo. Referiu que decorria a "Festa do Berbigão", mas ocorria longe
daquele local e por ali não havia ninguém.
A testemunha AA4 disse ter visto a CC nessa noite, mas não conseguiu precisar as horas.
A testemunha II, companheiro da arguida BB, afirmou que à data dos factos vivia com a
arguida BB e com a CC. Declarou que o arguido AA tinha chegado a casa deles na madrugada
do dia 12 de Setembro (domingo). A CC estava desde 5ª feira anterior na casa da mãe da
testemunha. A arguida BB no domingo foi também à casa da mãe da testemunha, a uma festa
de anos, tendo regressado com a CC à Figueira por volta das 18h. Disse também a testemunha
que foi à "Pastelaria Célia" com o MM por volta das 21h e que a dada altura apareceu ali o
arguido AA a dizer que a CC tinha ido à pastelaria às 8h e ainda não tinha aparecido. Eles
foram para casa (não achou nada de estranho na casa) e a testemunha pediu à BB para ir
procurar a CC nos vizinhos (mas não sabe se ela foi efectivamente) enquanto ele foi à festa do
berbigão ver se a CC por lá estaria e o MM foi dar uma volta por ali a ver se via a menor. O
arguido AA ficou em casa a tomar conta dos filhos da testemunha. A testemunha ficou algum
tempo na festa do berbigão mas havia muita confusão e veio embora; voltou depois à festa
com a BB e o MM à procura da CC e quando estavam a regressar a casa apareceu a D. Ofélia,
A testemunha MM, que à data viva em casa da BB e do II, declarou que o arguido AA chegou
a casa destes na madrugada do dia 12 de Setembro. Disse que no dia 12 saiu de casa pelas 9h
30m / 10h e que só regressou pelas 18h, altura em que foi buscar o II para ir com a testemunha
ver uma mota. Chegaram à "Pastelaria ..." por volta das 21h 30m / 22h, onde beberam uma
cerveja ou duas e depois chegou o arguido AA que lhes perguntou se tinham visto a CC.
Dirigiram-se de imediato para casa. A casa não tinha nada estranho, estava normal, a
testemunha também não notou qualquer arrumação ou limpeza. A BB disse-lhes que não sabia
da CC e o II decidiu ir à festa do berbigão procurá-la, enquanto a testemunha foi dar uma volta
pelo outro lado. Tornaram a ir para casa e decidiram ir de novo à festa, desta vez
acompanhados da arguida BB, enquanto o AA ficava em casa com as crianças. Demoraram
uma hora ou duas e antes de irem para casa foram comprar bolos para comer.
A testemunha AA5, mãe de II, declarou que a CC esteve em sua casa desde 5ª feira a domingo,
dia 12 de Setembro, indo para a Figueira com a mãe pelas 18 h. Nesse dia à noite (já estava
deitada) o II telefonou-lhe a perguntar se estava lá a CC, tendo a testemunha respondido que a
CC tinha ido com a mãe, ao que o II a informou que a CC tinha desaparecido. Disse ainda a
testemunha que a arguida BB tinha a casa sempre limpa e tratava bem da casa. Num dia,
depois de lá ter ido a SIC, reparou que havia carraças à porta de casa e num pilar e disse à BB
para ela ir comprar creolina para as matar. A BB comprou petróleo, dizendo que não havia
creolina, e foi a própria testemunha que procedeu à limpeza, no exterior da casa, com a
esfregona.
A testemunha AA6, militar da GNR, declarou que nessa noite decorria o festival do berbigão
na Figueira e que após a chamada da D. NN encontrou-se com a arguida BB, o II e outro
indivíduo, junto à igreja, tendo a mãe contado que a CC tinha desaparecido, referindo que a
tinha mandado ao café e que a última vez que a menor tinha sido vista tinha sido ali, também
junto à igreja. A testemunha disse-lhe que no dia seguinte teria que ir ao Posto em Portimão
formalizar a queixa. Declarou ainda a testemunha que a mãe não aparentava muita
preocupação para um caso destes.
A testemunha AA7, militar da GNR, referiu que no dia 13 de Setembro de 2004, no Posto da
GNR de Portimão, entre as 10h 30m / 11h, recebeu a queixa do desaparecimento da CC. Foi a
mãe que fez a queixa, acompanhada do arguido AA. A arguida BB aparentava tristeza, mas
não chorou. A testemunha recebeu as fotografias que a mãe levava e perguntou-lhe se havia
motivos para a CC fugir de casa ou se tinha algumas desconfianças, a tudo tendo a arguida BB
respondido que não.
A testemunha UU contou que estava na "Pastelaria ...", por volta das 11h 15m quando
apareceram o II e o MM a falar no desaparecimento da CC. Mais tarde, pelas 24h 15m tornou
A testemunha AA8, que à data era proprietária de uma fábrica de bolos na Figueira, contou
que só na 2ª feira soube que a CC tinha desaparecido. Confirma que na noite anterior, talvez
por volta das 2h, a BB, o II e o MM estiveram na sua fábrica a comprar bolos (parece-lhe que
foi a BB que pagou com uma nota de 20 €). Nessa altura a BB não lhe disse que a filha tinha
desaparecido, só perguntou se a miúda tinha lá estado. Comprou os bolos normalmente, não
aparentando qualquer preocupação.
A testemunha BB4 contou que na 2ª feira à noite (dia 13), quando estava a conversar com a
testemunha BB3, pelas 21h 30m / 10h, viu os arguidos BB e AA, vindos de casa, a subir a rua.
Recorda-se que um deles trazia um saco de plástico de asas na mão, mas já não se lembra
quem e não se apercebeu de qual seria o conteúdo.
A testemunha BB5 relatou que na 2ª feira à noite (dia 13), viu a testemunha BB3 sair de casa
da arguida BB e a filha BB4 chamou-a, ficando todas a conversar. Pelas 21h 30m / 10h, viu os
arguidos BB e AA, vindos de casa, com um saco de plástico, mas já não recorda quem trazia o
saco e não faz ideia o que continha.
A testemunha BB6, prima da testemunha BB3, contou que na 2ª feira de manhã (dia 13), foi ao
supermercado da BB3, onde já se encontrava a arguida BB. Referiu que o arguido AA se
encontrava à porta do supermercado. Contou que a pedido da BB3 foi com os dois arguidos a
Lagoa procurar o pai da CC, que disse não ter a menor consigo. No regresso, a arguida BB
quis ir à Aldeia da Companheira ver se a CC estaria em casa da tia BB8, pelo que também lá
foram mas sem sucesso. Perguntada sobre o estado de espírito da arguida BB, a testemunha
declarou que não a conhecia anteriormente, mas achou que ela estava com "uma cara
estranha".
A testemunha BB1 , irmã do II, disse que no domingo, por volta da meia-noite, a mãe referiu-
lhe que o II tinha telefonado a saber se a CC estava lá em casa. Declarou a testemunha que a
CC tinha estado lá em casa desde 5ª feira até domingo e que era para só ir para casa na 2ª feira,
mas como a mãe tinha ido à festa de anos, convenceu-a a ir mais cedo, dizendo que podiam ir
ao festival do berbigão e que também lá estava o tio. Saíram por volta das 18h. Na 2ª feira de
manhã (dia 13), por volta das 14h, a testemunha foi ver a BB. Em casa estavam também o AA
e o II. Nessa altura a BB referiu-lhe como é que a CC estava vestida e calçada quando
desapareceu. Mais tarde, a testemunha deparou com os sapatos que a BB tinha dito que a CC
tinha calçados e confrontou a BB com isso, tendo ela respondido que então a CC devia ter
trocado de sapatos e que tinha levado as chinelas. Porém, posteriormente, a testemunha
encontrou uma das chinelas debaixo do sofá da sala e a outra chinela no quarto. Procurou o
calçado da CC e encontrou em casa todos os sapatos, sandálias e chinelas que ela usava nesse
Verão.
A testemunha BB8, tia dos arguidos, contou que na 2ª feira de manhã (dia 13) apareceram em
sua casa os arguidos AA e BB. A BB disse-lhe que tinham ido à polícia dizer que "tinham
roubado a CC". Nem a BB nem o AA estavam nervosos, estavam calmos. Contou ainda a
testemunha que tinha visto o AA no sábado anterior com um saco, dizendo-lhe o AA que
vinha da casa do UU. Mais tarde o UU, conhecido por "...", disse-lhe que tinha levado o AA
até à casa da BB, na Figueira.
A testemunha BB9, sogra da CC1 = (irmã dos arguidos) declarou que passados 2 ou 3 dias
depois de ter ouvido que a CC tinha desaparecido, o arguido AA apareceu em casa da sua nora
Anabela, que vive ao pé da testemunha, a pedir comida. Nesse dia à tarde, apareceram uns
senhores da Polícia Judiciária que levaram o AA e depois o trouxeram. Referiu que o AA
esteve uns dias em casa da Anabela.
A testemunha CC1 = , irmã dos arguidos, confirmou que o AA esteve uns dias em sua casa,
como já tinha estado de outras vezes, dado não ter emprego ou residência certos. Não se
recordava de ter falado com o AA ao telefone. Declarou que passados 8 dias do
desaparecimento da CC foi a casa da BB que lhe disse que não sabia o que foi feito da filha.
porcos comem um cadáver de 8 anos em 10 ou 12 horas e que se o cadáver estiver cortado será
mais rápido ainda. Disse que os porcos comem o cadáver totalmente, fazendo-o desaparecer
por completo e só restando resíduos, nas fezes, que não fossem digeridos. Perguntada sobre a
existência de carraças numa casa, declarou que as carraças fêmeas se alimentam de sangue.
Disse que as carraças precisam de um hospedeiro para sobreviver e por isso se pegam aos
animais, sendo possível encontrá-las ainda na vegetação. Referiu que as carraças só
abandonam o hospedeiro para ir para uma parede se houver sangue fresco nessa parede.
A testemunha CC4 , inspector-chefe da P.J., confirmou o auto de busca e apreensão de fls. 173
na casa da arguida BB, quando foram encontrados vestígios hemáticos no chão, nas paredes,
no balde e esfregona e na sola de umas sapatilhas que estavam na sala. Referiu que os vestígios
eram muito pequenos e que era visível que o interior da habitação tinha sido lavado, e não só o
chão, notando-se ainda as marcas da passagem da esfregona nas paredes e nas portas. Referiu
ainda que esta lavagem do chão e paredes contrastava com o resto da casa, que estava
"imunda", com roupa suja por todo o lado e louça por lavar "de 15 dias". A testemunha esteve
presente na reconstituição dos factos, como consta de fls. 273 ss, cujo teor confirmou e referiu
que na sequência desta reconstituição, seguindo indicações do arguido AA, procuraram o
corpo num aterro de terra e noutros locais da Mexilhoeira Grande, numa lixeira, em Poço
Barreto, num carro acidentado existente na sucata do padrasto do II, em Silves, etc., locais
onde procuraram exaustivamente mas sem êxito. Confirmou que a configuração da casa é a
que consta da planta de fls. 294 e que a porta que dá acesso à rua tem um manípulo do lado
exterior que permite a entrada imediata na residência. Confirmou que a arguida tinha na sua
posse, quando chegou à cadeia de Odemira, o recibo da compra de 1 litro de petróleo e de um
esfregão de arame, de que se tentou desfazer, e que foi entregue à P.J. pela Directora do E.P. -
confirmou que o recibo é o de fls. 876. Ainda referiu que seguiu a pista de um cidadão
marroquino que podia ter levado a CC, segundo indicações da arguida BB, mas veio a apurar
que na altura do desaparecimento da CC esse indivíduo estava em França.
A testemunha CC5 , inspector da P.J., relatou que foi a Olhão, a casa da testemunha OO, com
a arguida BB, pois esta tinha referido que a CC podia estar lá, o que não era verdade. Relatou
também que procedeu a diversas buscas, em diversos locais, segundo indicações do arguido
AA de que era ali que se encontrava o corpo, não tendo obtido qualquer resultado positivo.
A testemunha CC6 , inspector da P.J., declarou ter procurado o arguido AA, que entretanto se
tinha ausentado da Figueira - apurou a testemunha que se ausentou no dia 14 - vindo a detê-lo
em Altura, Cacela, a dormir dentro de um carro velho, local onde também encontraram a roupa
dele.
A testemunha DD, inspector da P.J., confirmou ter procedido à apreensão de um saco que
continha roupas do arguido AA. Questionado sobre os desenhos de uma faca e de uma serra
que se encontram juntos a fls. 1885 dos autos, declarou que tais desenhos foram efectuados
pelo arguido AA, na presença da testemunha, destinando-se os mesmos a retratar os objectos
que teriam sido utilizados para proceder ao esquartejamento da CC. A testemunha esteve
presente no auto de reconstituição de esquartejamento junto aos autos a fls. 2100 ss, cujo teor
confirmou, esclarecendo que o arguido é que escolheu os instrumentos de corte mais parecidos
com os que tinha utilizado e que o médico-legista, que estava presente, confirmou que os
mesmos eram adequados para o acto; confirmou também que o arguido indicou a forma como
procedeu ao esquartejamento, ajudado pela irmã (nas fotografias representada por uma
agente), bem como o tempo que demorou, e que o médico-legista afirmou ser aquela a maneira
correcta de efectuar os cortes e aquele o tempo necessário; mais confirmou que o arguido
reconstituiu também o modo como colocou as partes do corpo em sacos e os meteu nos
compartimentos da arca, que era precisamente a mesma arca que estava na casa da Figueira e
que tinha sido apreendida. Disse depois a testemunha que logo após a reconstituição se
deslocou à Figueira para procurar os instrumentos de corte que o arguido AA disse ter
utilizado, mas não os encontrou em casa, pelo que inquiriu o II sobre isso e ele confirmou-lhe
que tinha tido uma serra daquelas e que não tinha dado conta quando tinha desaparecido. A
testemunha declarou ainda ter medido a distância da casa da BB à "Pastelaria C..." e que o
resultado foi cerca de 420 metros, os quais, percorridos a pé, em passo normal, levam cerca de
6 minutos a percorrer.
A testemunha CC7, inspector da P.J., relatou que procedeu a buscas para encontrar o corpo da
CC, seguindo sucessivas indicações do arguido AA, sem nada ter encontrado. Relatou também
que foi à escola primária da Figueira para tentar apurar a altura da CC com base numa
fotografia que ali foi tirada e onde se viam uns desenhos, mas os desenhos já não eram os
mesmos, sendo que ainda assim tentou apurar medidas, tendo obtido o valor de 1,35 m ou 1,40
m, como resulta do relato que consta a fls. 2078 e que confirmou.
A testemunha CC9 disse que na madrugada de 13 de Setembro, entre a 1h 30m e as 3h, foi a
"Percorrida" a prova testemunhal, verificamos que não existe prova directa dos factos,
nomeadamente por alguém ter visto cometer o crime.
Acresce que nem sequer existe prova directa do homicídio, pois que não apareceu o corpo
morto da menor.
Em que é que se baseou então o Tribunal para dar como provados os factos? É o que passamos
a expor.
Define o art. 124º 1 do Cód. Proc. Penal, o que vale em julgamento como prova, ali se
determinando que "constituem objecto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a
existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a
determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis". Neste artigo, onde se regula o
tema da prova, estabelece-se que o podem ser todos os factos juridicamente relevantes para a
existência ou para a inexistência de qualquer crime, para a punibilidade ou não punibilidade do
arguido, ou que tenham relevo para a determinação da pena. A ausência de quaisquer
limitações aos factos probandos ou aos meios de prova a usar, com excepção dos
expressamente previstos nos artigos seguintes ou em outras disposições legais (só não são
permitidas as provas proibidas por lei ou as obtidas por métodos proibidos - arts. 125º e 126º
do mesmo Cód.), é afloramento do princípio da demanda da descoberta da verdade material
que continua a dominar o processo penal português (Maia Gonçalves, Cód. Proc. Penal, 12ª
ed., p. 331).
A prova pode ser directa ou indirecta/indiciária (Prof. Germano Marques da Silva, Curso de
Proc. Penal, II vol., p. 99 ss). Enquanto a prova directa se refere directamente ao tema da
prova, a prova indirecta ou indiciária refere-se a factos diversos do tema da prova, mas que
permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova.
A prova indirecta (ou indiciária) não é um "minus" relativamente à prova directa. Pelo
contrário, pois se é certo que na prova indirecta intervêm a inteligência e a lógica do julgador
que associa o facto indício a uma regra da experiência que vai permitir alcançar a convicção
sobre o facto a provar, na prova directa intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e
que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho.
No entanto, a prova indirecta exige um particular cuidado na sua apreciação, uma vez que
apenas se pode extrair o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por
outros elementos de prova, de forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente
possíveis.
A nossa lei processual penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova
indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do
julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objectivável, nada impedindo
que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios e acordo com as regras
da experiência, permita fundamentar a condenação.
Com efeito, o art. 127º do Cód. Proc. Penal prescreve que "salvo quando a lei dispuser
diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da
entidade competente". É o chamado princípio da livre apreciação da prova.
De acordo com o Prof. Germano Marques da Silva (Direito Processual Penal, vol. II, p. 111) "a
livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela
qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de conjecturas de difícil ou impossível
objectivação, mas a valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da
razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a
Também o Tribunal Constitucional (Ac. nº 464/97/T, D.R., II Série, nº 9/98 de 12.1), chamado
a pronunciar-se sobre a constitucionalidade da norma do art. 127º do Cód. Proc. Penal, e
estribando-se nos ensinamentos dos Prof. Castanheira Neves e Figueiredo Dias, refere que
"esta justiça, que conta com o sistema da prova livre (ou prova moral) não se abre, de ser
assim, ao arbítrio, ao subjectivismo ou à emotividade. Esta justiça exige um processo
intelectual ordenado que manifeste e articule os factos e o direito, a lógica e as regras da
experiência. O juiz dá um valor posicional à prova, um significado no contexto, que entra no
discurso argumentativo com que haverá de justificar a decisão. Este discurso é um discurso
mediante fundamentos que a ‘razão prática’ reconhece como tais (Kriele), pois que só assim a
obtenção do direito do caso «está apta para o consenso». A justificação da decisão é sempre
uma justificação racional e argumentada e a valoração da prova não pode abstrair dessa
intenção de racionalidade e de justiça".
O princípio da livre apreciação da prova tem duas vertentes: na sua vertente negativa significa
que na apreciação (valoração, graduação) da prova, a entidade decisória não deve obediência a
quaisquer cânones legalmente pré-estabelecidos - tem o poder/dever de alcançar a prova dos
factos e de valorá-la livremente, não existindo qualquer pré-fixada tabela hierárquica elaborada
pelo legislador; na sua vertente positiva, significa que os factos são dados como provados, ou
não, de acordo com a íntima convicção que a entidade decisória gerar em face do material
probatório validamente constante do processo, quer ele provenha da acusação, quer da defesa,
quer da iniciativa do próprio (Ac. da Relação de Coimbra de 9.2.2000, in C.J., ano XXV, tomo
1, p. 51).
Assim...
A matéria dada como provada nas alíneas aa), ab), ac), ad), ae), af), ag), ah) ai), aj) al), am),
an), ap), aah), aai), aaj) e aam) teve por base o depoimento das testemunhas AA3, CC3, CC4,
DD, CC8, II, DD1 , MM e BB1, os autos de reconstituição e os autos de busca e apreensão,
bem como a prova pericial subsequente, tudo interpretado à luz das regras da experiência.
A testemunha AA3, pelas 8h 30m / 8h 40m viu a CC ir em direcção a casa subindo as escadas
perto do mercado, com um saco, sinal que vinha das compras (e sabemos que fez as compras
pelo depoimento da testemunha NN). Esta testemunha, que estava à janela a fumar, manteve-
se na janela durante mais algum tempo e verificou que no local não havia movimento, não viu
carros, nem ouviu qualquer grito. Ou seja, de acordo com as regras da experiência, e dado que
o percurso é curto, o normal é que a menor tenha regressado a casa. E não há dúvida de que a
CC chegou a casa e que foi nessa altura que os arguidos lhe bateram. Tal resulta claro do auto
de reconstituição junto aos autos a fls. 273 ss, nomeadamente das fotografias de fls. 282, 284,
285, 286, 287, 291 e 292, sendo que o conteúdo daquele auto de reconstituição foi confirmado
pelos inspectores CC3 e CC4 , que estiveram presentes no acto e descreveram os actos
praticados pelo arguido AA durante tal reconstituição. Na dita reconstituição o arguido
exemplifica as chapadas que deu à CC, o local onde esta bateu com a cabeça, novo local onde
bateu com a cabeça na sequência de agressão da mãe, mostrou que a menor sangrou do nariz,
têmpora e boca, exemplificou a queda da menor, como constataram que a menor estava
efectivamente morta e como a co-arguida BB procedeu à limpeza das marcas de sangue, com o
auxílio de um balde e de uma esfregona.
Por outro lado, os actos que constam do auto de reconstituição são compatíveis com os
vestígios hemáticos recolhidos na sala (repare-se que a reconstituição tem lugar na sala), como
resulta do auto de busca e apreensão efectuado em 22.9.2004 (cfr. fls. 173 e 233 ss), onde
consta que foram recolhidos vestígios no chão, junto à porta de entrada, exterior e
interiormente, junto ao interruptor eléctrico interior à direita da porta de entrada, junto à
entrada do lado esquerdo do sofá, num par de ténis de MM Silva que se encontrava entre os
sofás, numa esfregona (haste) e respectivo balde. Estes vestígios, segundo perícias efectuadas,
são de sangue humano e de sangue humano e animal (cfr. fls. 235), e embora fossem
insuficientes para averiguar a quem pertencem através do ADN (fls. 1780 ss), são reveladores
de que naquela sala aconteceu algo terrível, algo que deu origem a que houvesse sangue
humano no chão e nas paredes, que foram limpos com uma esfregona e balde, sendo que o
sangue que estava na esfregona se encontrava na haste, revelador que quem utilizou a
esfregona tinha por sua vez as mãos sujas de sangue. Assim, os vestígios recolhidos na sala
vêm reforçar a fiabilidade da reconstituição.
De seguida os dois arguidos decidiram que o corpo da menor não podia ser encontrado. Daí
que tivessem optado por esquartejá-lo, como resulta do auto de reconstituição de fls. 2100 ss.
Para tanto tiveram oportunidade (enquanto a arguida BB limpava os vestígios existentes na
sala o arguido AA foi ao café onde encontrou as testemunhas II e MM, que confirmam ter
estado no café com o arguido AA e relatam que de seguida foram procurar a CC - assim, os
dois arguidos tiveram oportunidade de ficar sozinhos em casa e proceder ao esquartejamento).
E não há dúvidas de que os arguidos procederam ao corte do corpo da menor. Com efeito, o
arguido AA desenhou pelo seu próprio punho os instrumentos utilizados no esquartejamento
(fls. 1885) - facto confirmado pela testemunha DD - e participou na reconstituição,
demonstrando como utilizou a serra e a faca, como os dois arguidos se entre-ajudaram, como
procederam aos cortes, o tempo que demoraram, como ensacaram as partes do corpo da menor
e como as tentaram colocar na arca frigorífica. A esta reconstituição, legal e válida porque
feita voluntariamente pelo arguido, assistiram as testemunhas DD (inspector da PJ) e CC8
(médico-legista), que também confirmaram o modo como o arguido procedeu à reconstituição,
sendo que a testemunha DD confirmou ainda que a arca utilizada na reconstituição foi
apreendida na residência da arguida BB em 15.10.2004 (cfr. fls. 578 a 580 e fotografias a fls.
1712 ss). Por outro lado, que os actos constantes deste auto de reconstituição constituem o que
se passou, resulta deles serem compatíveis com outros elementos de prova recolhidos. Repare-
se que a testemunha II confirmou ter em casa uma serra que desapareceu e a testemunha CC8,
para além de esclarecer que do corte de um corpo morto há duas horas sai pouco sangue,
esclareceu ainda que os instrumentos que o arguido escolheu para utilizar na reconstituição
eram os que melhor se coadunavam com o acto, que o tempo que o arguido evidenciou ter
despendido era adequado e não excluiu a hipótese de o corpo de uma miúda magra, de 8 anos,
caber naquela arca, embora "no limite". Assim, não podemos concluir com certeza que o
corpo, ou todas as partes do corpo da menor tenham sido colocadas na arca, mas que pelo
menos as tentaram colocar lá resulta, não só do auto de reconstituição, como do facto de na
arca, em 16.10.2004, terem sido recolhidos vestígios hemáticos da espécie humana no interior
traseiro da segunda gaveta da arca (cfr. fls. 585), o que foi novamente confirmado pelo
relatório do exame efectuado pelo LPC (fls. 1780 ss, com especial relevo para fls. 1786 (ponto
B) e 1792). Recorde-se ainda que a testemunha CC3 explicou que os vestígios hemáticos que
foram recolhidos no interior da gaveta se encontravam precisamente no painel de trás da
segunda gaveta da arca. Ora se se poderia pôr a hipótese de o sangue humano encontrado na
arca resultar do manuseamento da arca por alguém ferido nas mãos, o facto de o sangue
humano ter sido encontrado no interior da parte de trás da gaveta afasta tal hipótese e aponta
para a conclusão de ali ter sido colocado ou tentado colocar uma parte de um corpo humano.
Como se deixou dito, nesta matéria o Tribunal deu particular atenção aos autos de
reconstituição existentes no processo, com reportagem fotográfica, a fls. 273 ss e 2100 ss.
Esclareça-se que se é verdade que os arguidos se remeteram ao silêncio e este não os pode
desfavorecer (art. 343º 1 do Cód. Proc. Penal) - silêncio que se repercute na impossibilidade de
o Tribunal poder proceder à leitura das declarações anteriormente prestadas pelos arguidos
(art. 357º do Cód. Proc. Penal) - isto não significa que não possam ser levados em conta outros
meios de prova como a reconstituição do facto ainda que nessa reconstituição tenha
participado qualquer dos arguidos - no caso, participou o arguido AA.
Desde que a reconstituição do facto tenha sido obtida de forma legal e válida, trata-se de um
elemento de prova a valorar dentro dos limites legalmente estabelecidos (livre convicção
criada com base na análise dos indícios segundo as regras da experiência). Ora as duas
reconstituições do facto efectuadas nos autos e supra referidas, foram obtidas de forma legal e
válida, não tendo o arguido AA sido sujeito a qualquer coacção ou mesmo pressão para
proceder às reconstituições. Aliás, ao acto de reconstituição de fls. 273 ss estiveram presentes
um Magistrado do Ministério Público e a Defensora do arguido, não podendo ser questionada
a regularidade do acto; e ao acto de reconstituição de fls. 2100 ss esteve presente, o médico-
legista, além de elementos da Polícia Judiciária. E só quem tivesse tido a vivência dos factos
os poderia reconstituir do modo como foram, havendo ainda a confirmação através de outros
indícios de que os factos assim ocorreram (sangue humano na sala e na arca). O auto de
reconstituição, não sendo um auto de declarações, mas um registo objectivo da forma como o
acto foi reconstituído e pôde ser observado por quem lá estava (órgãos de polícia criminal,
MP, defensora do arguido) não foi valorado em si mesmo ou de forma isolada, mas em
conexão com outros elementos conjugados com ele, permitindo uma leitura a outro nível e não
exactamente reconduzível ao acto em si.
Refira-se que a reconstituição do facto está especialmente prevista no art. 150º do Cód. Proc.
Penal como um dos meios de prova típicos (e diverso dos demais, nomeadamente diverso das
declarações do arguido), definindo aquele normativo os respectivos pressupostos e
procedimento.
Nos termos do nº 1 deste art. 150º, a reconstituição do facto "consiste na reprodução, tão fiel
quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição
do modo de realização do mesmo".
Seguindo de perto a recente jurisprudência do STJ (Ac. de 5.1.2005, in CJ, ano XIII, tomo 1,
p. 159 ss) se dirá que pela sua própria configuração e natureza - reprodução tão fiel quanto
possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do
modo de realização do mesmo - a reconstituição do facto, embora não imponha nem dependa
da intervenção do arguido, também a não exclui, sempre que este se disponha a participar na
reconstituição, e tal participação não tenha sido determinada por qualquer forma de
condicionamento ou perturbação da vontade (seja por meio de coacção física ou psicológica)
que se possa enquadrar nas fórmulas referidas como métodos proibidos enunciados no art.
126º do Cód. Proc. Penal. Assim, o meio de prova previsto no art. 150º citado, "só não será
admissível se não tiver sido validamente adquirido: se na reconstituição, ou para criar os
pressupostos de facto necessários à reconstituição, tiver sido utilizado qualquer meio (tortura,
coacção, ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral) que afecte a liberdade de
determinação, o consentimento ou a disponibilidade do arguido para a participação na
reconstituição do facto. A reconstituição do facto, como meio de prova tipicamente previsto,
uma vez realizada no respeito dos pressupostos e procedimentos a que está vinculada,
autonomiza-se das contribuições individuais de quem tenha participado e das informações e
declarações que tenham co-determinado os termos e o resultado da reconstituição. As
declarações (rectius, as informações) prévias ou contemporâneas que tenham possibilitado ou
contribuído para recriar as condições em que se supõe ter ocorrido o facto, diluem-se nos
próprios termos da reconstituição, confundindo-se nos seus resultados e no modo como o meio
de prova for processualmente adquirido". Ainda, como consta do sumário deste Acórdão que
se vem citando "a reconstituição do facto como meio de prova, uma vez realizado e
documentado em auto ou por outro modo (vg em registo audiovisual), vale como meio de
prova, processualmente admissível, sobre os factos a que se refere, isto é, como meio válido de
demonstração da existência de certos factos, a valorar, como os demais meios, nos termos do
disposto no art. 127º do Cód. Proc. Penal, ou seja, segundo as regras da experiência e a livre
convicção do julgador" e "uma vez realizada no respeito dos procedimentos legais a que está
sujeito, nada impede que o julgador possa valorar, como meio de prova, a reconstituição do
facto para efeitos de formação da sua convicção, nos termo do art. 127º do Cód. Proc. Penal,
mesmo que o arguido em audiência de julgamento se tenha recusado a prestar declarações e
tenha antes participado em tal reconstituição; nada impedindo ainda que, nessas circunstâncias,
os órgãos de polícia criminal que nela tenham também intervindo, possam prestar declarações
sobre o modo e os termos em que a mesma decorreu". A autonomia do meio de prova previsto
no art. 150º do Cód. Proc. Penal determina que os termos da colaboração prestada pelo arguido
e as consequências derivadas no plano da aquisição probatória, não devem ser postos em causa
caso venha a invocar, em momento posterior, o direito ao silêncio, tal como não devem ser
postas em causa, por exemplo, as apreensões efectuadas na sequência de informações
prestadas pelo arguido (salvo se a vontade e determinação do arguido tenha sido perturbada,
constrangida ou condicionada de tal modo que a situação possa ser enquadrada nas proibições
do art. 126º do Cód. Proc. Penal).
Ou seja, a reconstituição do facto, como meio de prova autónomo, não pode ser confundido
com as declarações prestadas nos autos pelo arguido, essas sim, expressamente previstas na lei
processual penal como ‘não permitidas’ se não se contiverem dentro do âmbito previsto no art.
357º, sendo que se tem como certo que, nos casos em que o arguido não presta declarações em
audiência, não pode haver contradições ou discrepâncias que possibilitem tal leitura.
Já desde o Ac. do STJ de 11.12.1996 (BMJ 462, p. 299) se decidiu que os agentes da PJ que
procederam à reconstituição do crime podem depor como testemunhas sobre o que se terá
passado nessa reconstituição, por essa situação não estar abrangida pelo nº 7 do art. 356º do
CPP.
Para além dos autos de reconstituição e da prova testemunhal e pericial com eles relacionada e
que os corrobora, é ainda de realçar que várias das testemunha inquiridas referem a
despreocupação da arguida com o "desaparecimento" da menor, aceitando-o sem desespero ou
angústia. Repare-se que a arguida só vai "procurar" a menor ao café entre as 22h 30m e as 23h
(de acordo com a testemunha NN), mais de duas horas depois da CC ali ter estado, não
contacta mais ninguém perguntando sobre o paradeiro da CC e também não é por sua
iniciativa que é contactada a GNR. De realçar ainda a compra pela arguida de petróleo e de um
esfregão de aço (fls. 876), com que lavou a casa no dia 18 de Setembro, sendo que as
testemunhas CC3 e CC4 referiram que a limpeza do chão e paredes da casa contrastava com o
estado de sujidade do resto da casa, nomeadamente no que se refere à louça e à roupa - ora este
tipo de limpeza, nestas circunstâncias, só é compatível com o desejo de eliminar indícios de
sangue que pudessem manter-se na casa.
Pelo que podemos concluir que a representação feita pelo arguido AA no auto de
reconstituição de fls. 273 ss, quanto ao desfecho das agressões, resulta da forma como estas se
produziram, tendo eles sucessivamente aplicado violência que se revelou apta a produzir
embates da cabeça da vítima contra a parede, pelo que a todas as luzes não podem ter deixado
de intuir aquele desenlace. Já a forma como é levado a cabo o esquartejamento do cadáver,
patente no auto de reconstituição de fls. 2100 ss, não deixa dúvida quanto à directa
intencionalidade do acto e bem assim quanto ao respectivo motivo.
O que antecede é assim bastante para fundar a convicção do Tribunal relativamente aos
correspondentes factos.
Acresce ainda, e relativamente à mesma factualidade, que a testemunha DD1 (padrasto do II)
declarou que o arguido AA lhe confidenciou que "tinham morto a miúda". Também a
testemunha II referiu que a BB lhe disse que "tinha dado uma chapada à CC e o AA acabou de
a matar" (posteriormente a arguida BB teria tentado justificar a afirmação dizendo ao II que só
tinha dito aquilo porque a PJ lhe tinha batido, porém no dia em que lhe falou na agressão à CC,
a BB e o II estavam sós e este não viu marcas na BB de que a mesma tivesse sido batida, não
havendo qualquer motivo para ela fazer tais afirmações ao companheiro se não fossem
verdade). Claro que os depoimentos destas testemunhas não podem ser vistos como confissão
dos arguidos - que não confessaram, mas optaram pelo silêncio durante a audiência de
julgamento - mas isso não significa que não possam pura e simplesmente não ser valorados
pelo tribunal.
O art. 129º do Cód. Proc. Penal estabelece a proibição, em princípio, do testemunho que não
verse sobre factos concretos e de conhecimento directo, em particular do "testemunho de ouvir
dizer", por isso se determina a necessidade de uma confirmação do depoimento indirecto, com
a consequente audição das pessoas "a quem se ouviu dizer". Só após confirmação pode tal
depoimento indirecto ser eficaz como meio de prova, só que no caso a confirmação teria que
ser efectuada pelos arguidos e estes não prestaram declarações nem podem ser obrigados a
prestá-las. Por força do nº 7 do art. 356º do CPP, para o qual remete o nº 2 do art. 357º, não é
permitido a reprodução do conteúdo das declarações cuja leitura não é autorizada, com recurso
a quem as tiver recolhido, o que bem se compreende, mas coisa diferente é o testemunho de
pessoa que não é órgão de polícia criminal e não recolheu declarações, apenas perguntou e
ouviu a resposta.
Aliás, os nossos tribunais superiores já decidiram que: "a prova por ouvir dizer, quando
reportada a afirmações produzidas extraprocessualmente pelo arguido, é passível de livre
apreciação por parte do tribunal (Ac. da RC de 6.10.1988, BMJ 380, p. 552); "se a testemunha
relata ter ouvido a confissão do próprio arguido, tal não configura depoimento indirecto nos
termos e para os efeitos do art. 129º do CPP (Ac. STJ de 15.11.2000, proc. 2551/2000-3ª); "a
prova por ouvir dizer, quando reportada a afirmações produzidas extraprocessualmente pelo
arguido, é passível de livre apreciação pelo tribunal quando o arguido se encontra presente em
audiência e, por isso, com plena possibilidade de a contraditar, ou seja, de se defender" - no
caso o arguido tinha optado por se remeter ao silêncio em audiência (Ac. RC de 18.6.2003, CJ
2003, tomo III, p. 51).
Também o Tribunal Constitucional já decidiu que "o art. 129º 1 (conjugado com o art. 128º 1)
do CPP, interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos
indirectos de testemunhas que relatem conversas tidas com um co-arguido que, chamado a
depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma
intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido. Por
isso não havendo um encurtamento inadmissível do direito de defesa do arguido, tal forma não
é inconstitucional" (Ac. Trib. Constitucional nº 440/99 de 8.7, proc. 268/99, DR II Série de
9.11.1999).
Conjugado todo o conjunto de prova indiciária, criou o Tribunal a convicção de que a CC está
morta (não sendo necessário o aparecimento do corpo face à convicção do Tribunal de que os
arguidos o fizeram desaparecer da forma descrita) e de que foram os arguidos que praticaram
os factos. Todos os elementos apurados, apreciados em conjunto, afastaram qualquer dúvida
razoável e criaram a plena convicção de que ambos os arguidos cometeram os factos do modo
descrito neste acórdão.
11. O art.º 710.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável supletivamente, dispõe que "a
apelação e os agravos que com ela tenham subido são julgados pela ordem da sua
interposição".
Assim, conheceremos em primeiro lugar do recurso interlocutório interposto pela arguida BB.
Contudo, quanto aos recursos do acórdão condenatório não é viável conhecê-los pela ordem de
interposição, pois razões de imperativo lógico levam-nos a relegar o recurso do Ministério
Público para último lugar. Efectivamente, versando este tão só a medida das penas, há que
estabelecer primeiro quais os factos provados e a sua qualificação jurídica, o que só ficará
concluído com a apreciação e julgamento dos recursos dos arguidos.
Como já decidiu este Supremo Tribunal de Justiça (Ac. de 05-01-2005, proc. 3276-04, relator
Conselheiro Henriques Gaspar) «Pela sua própria configuração e natureza - reprodução, tão
fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto - a
reconstituição do facto, embora não imponha nem dependa da intervenção do arguido, também
a não exclui, sempre que este se disponha a participar na reconstituição, e tal participação não
tenha sido determinada por qualquer forma de condicionamento ou perturbação da vontade,
seja por meio de coacção física ou psicológica, que se possa enquadrar nas fórmulas referidas
como métodos proibidos enunciados no artigo 126º do CPP.»
A colaboração do arguido na reconstituição do facto, porém, suscita um problema de
compatibilização com a prova por declarações. É que o arguido no decurso da reconstituição
do facto poderá fornecer algumas indicações verbais e, por isso, torna-se necessário saber se a
prova assim adquirida se engloba nos actos de inquérito ou instrução cuja leitura, em princípio,
não é permitida na audiência, por conterem declarações de arguido (art.º 356.º, n.º 1-b).
O arguido tem direito ao silêncio, sem que o mesmo o possa desfavorecer (art.ºs 61.º-c e 343.º,
n.º 1) e tem direito a que não sejam lidas as suas declarações anteriores, mesmo que prestadas
perante juiz, salvo se nisso consentir ou se, querendo prestar declarações, seja necessário
reavivar-lhe a memória ou confrontá-lo com contradições (art.º 356.º, n.ºs 3, 4 e 6).
Ora, sobre a compatibilidade das provas por reconstituição e das que contêm declarações do
arguido pronunciou-se não só o referido Acórdão do STJ, como também, entre outros, o de 25
de Março de 2004, proc. 248/04-5, relatado pelo mesmo relator deste processo - acórdão que
tem o seguinte sumário:
1- As declarações prestadas em sede de inquérito e a reconstituição dos factos são diligências
diferentes, embora possam ser complementares: nas declarações, é o discurso do declarante, de
teor eminentemente verbal e até oral, embora reduzido a escrito, seguindo um encadeamento
de perguntas e respostas, que está em foco e é valorado, e nele o declarante, sendo o arguido,
diz sobretudo o que fez, explica o modo de execução e as circunstâncias do acto; na
reconstituição dos factos, é o modus faciendi que está em causa, e nele a pessoa que procede à
reconstituição mostra como fez, refazendo no próprio local todos os passos da sua acção (A lei
diz: reprodução tão fiel quanto possível das condições em que se afirma ou se supõe ter
ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo).
2- Trata-se, portanto, de uma revivescência o mais «ao natural» possível de uma situação. E, se
esta revivescência de uma forma geral não prescinde de palavras, estas não constituem o ponto
crucial da reconstituição, visto que a linguagem gestual e corporal assume aqui uma primacial
relevância.
3- Ao passo que não há declarações sem palavras e, mais especificamente, sem discurso
verbal, já se admite que uma reconstituição possa prescindir deles. A reconstituição é reduzida
a auto - é certo -, mas esse auto não é um auto de declarações, não obedece à lógica deste, nem
a ele se reconduz. O que lá fica escrito não é o produto das declarações; é a tradução para
escrito de uma revivescência do que foi feito e que consistiu, sobretudo, numa reprodução do
acto que teve lugar no passado.
4- Daí que a reconstituição seja dirigida à obtenção de uma mais perfeita inteligibilidade do
que aconteceu - inteligibilidade em acto, que não propriamente em palavras. E daí que só
quem viveu o acontecimento o possa reconstituir de uma maneira inconfundível.
5- Não tendo as declarações prestadas pelo recorrente no inquérito e na instrução, na qualidade
de arguido, sido levadas em conta e tendo ele optado pelo silêncio na audiência de julgamento,
sendo certo que este não pode desfavorecê-lo, nos termos do art. 343.º n.º 1 do CPP, foram
todavia considerados os outros meios de prova, entre os quais o auto de reconstituição.
6- Este, não sendo um auto de declarações, mas um registo objectivo da forma como o acto foi
reconstituído e pôde ser observado por quem lá estava (os órgãos de polícia criminal, os
demais intervenientes) não foi valorado em si mesmo ou de forma isolada, mas em conexão
com outros elementos objectivos, com outros dados constatáveis por outras pessoas, com
outros elementos conjugados com ele e permitindo assim uma leitura a outro nível, não
exactamente recondutível ao auto em si.
Por sua vez, o referido acórdão deste STJ de 05-01-2005 afirmou que «A reconstituição do
facto, como meio de prova tipicamente previsto, uma vez realizada no respeito dos
pressupostos e procedimentos a que está vinculada, autonomiza-se das contribuições
individuais de quem tenha participado e das informações e declarações que tenham co-
determinado os termos e o resultado da reconstituição. As declarações (rectius, as
informações) prévias ou contemporâneas que tenham possibilitado ou contribuído para recriar
as condições em que se supõe ter ocorrido o facto, diluem-se nos próprios termos da
reconstituição, confundindo-se nos seus resultados e no modo como o meio de prova for
processualmente adquirido (...) O privilégio contra a auto-incriminação significa que o arguido
não pode ser obrigado, nem deve ser condicionado a contribuir para a sua própria
incriminação, isto é, tem o direito a não ceder ou fornecer informações ou elementos (v. g.,
documentais) que o desfavoreçam, ou a não prestar declarações, sem que do silêncio possam
resultar quaisquer consequências negativas ou ilações desfavoráveis no plano da valoração
probatória (cfr., v. g., acórdão de 3 de Maio de 2001, do Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem, no caso J. B. c. Suíça) (...) Sendo, porém, este o conteúdo do direito, estão situadas
fora do seu círculo de protecção as contribuições probatórias, sequenciais e autónomas, que o
arguido tenha disponibilizado ou permitido, ou que informações prestadas tenham permitido
adquirir, possibilitando a identificação e a correspondente aquisição probatória, ou a realização
e a prática de actos processuais com formato e dimensão própria na enumeração dos meios de
prova, como é a reconstituição do facto.»
Face a estes dados jurisprudenciais, estamos em condições de afirmar que nenhum obstáculo
legal impede ou impedia o visionamento na audiência de julgamento da prova por
reconstituição dos factos, apesar do arguido AA, que nela colaborou activamente, ter usado do
direito ao silêncio.
Trata-se de prova autónoma, que contém contributos do arguido, mas que não se confunde
com a prova por declarações. Por outro lado, nenhum elemento nos permite duvidar que o
arguido AA participou voluntariamente nessa reconstituição e que não foi sujeito a qualquer
coacção ou ofensa da integridade física ou moral, pois para além de aí se encontrar o
Procurador da República do Círculo, foi assistido no acto pela sua defensora, que estava
presente.
Assim, tal meio de prova não era proibido por lei e tinha virtualidade para ser exibido na
audiência de julgamento através da sua gravação por meio audiovisual, pois, recorde-se, a lei
permite que a documentação do acto se faça dessa maneira. E anota-se que a gravação existe
como complemento de um auto escrito da diligência, no qual figura também uma reportagem
fotográfica, tudo a constar do I volume, fls. 273 a 294.
E como meio de prova legal e admissível podia ter sido objecto de livre apreciação pelos
julgadores, como foi (art.º 127.º do CPP), não se confundindo tal meio de prova, como vimos,
com declarações anteriormente prestadas e cuja leitura fosse proibida em julgamento.
É certo que o arguido, ao proceder à reconstituição, «falou», como diz o recorrente, isto é,
produziu um discurso verbal que acompanhou a reprodução em acto (poderíamos chamar-lhe
em sentido teatral, representação ou mise-en-scène, mas de um acontecimento não ficcionado)
do modus faciendi que envolveu a prática do crime. Porém, esse discurso verbal não se
reconduz ao estrito conceito processual de «declarações», sendo antes a verbalização do acto
de recriação do acontecimento. Por conseguinte, o discurso ou «declarações» produzidos não
têm valor autónomo, dado que são instrumentais em relação àquela recriação. Daí que num dos
arestos atrás referidos, se tenha dito que «as declarações (rectius, as informações) prévias ou
contemporâneas que tenham possibilitado ou contribuído para recriar as condições em que se
supõe ter ocorrido o facto, diluem-se nos próprios termos da reconstituição, confundindo-se
nos seus resultados e no modo como o meio de prova for processualmente adquirido».
E, por outro lado, as intromissões dos elementos da PJ e do Procurador da República que
intervieram no acto, tal como o visionamento do vídeo permite apercebermo-nos, não
corresponderam a nenhum interrogatório ou tomada de declarações, mas a pedidos de
esclarecimento que vinham na sequência dos passos que o arguido AA ia reconstruindo, de
modo a possibilitarem a sua ligação e concatenação, a sua intelegibilidade e precisão, ou
simplesmente a pedidos de exemplificação.
Assim, o recurso intercalar da arguida BB improcede, pois a sua pretensão era a de que fosse
declarado nulo o despacho do tribunal de Júri que permitiu o visionamento em vídeo na
audiência da reconstituição dos factos e não ocorre tal nulidade.
foi encontrado o cadáver do prisioneiro, mas apenas um anel reconhecido como de seu uso.
Deduziu-se, então, que o corpo do desgraçado fora totalmente consumido pelo fogo e, embora
não estivesse excluída a hipótese de ter o prisioneiro conseguido salvar-se, fugindo, sem ser
visto, por uma brecha que se abrira na parede de sua cela, os incendiários foram processados, e
estavam a pique de ser condenados, quando, em plena sala de julgamento, surgiu a
pseudovítima: a hipótese de sua fuga e salvamento, até então rejeitada, era a única verdadeira.
Se o fugitivo não tivesse voltado, movido por um impulso de generosidade, os sediciosos
teriam sido injustamente condenados por homicídio consumado. Desde que seja formulável
uma hipótese de inexistência do evento "morte", não é admissível uma condenação a título de
homicídio. A verosimilhança, por maior que seja, não é jamais a verdade ou a certeza, e
somente esta autoriza uma sentença condenatória. Condenar um possível delinquente é
condenar um possível inocente.»
E Júlio Fabbrini Mirabete, Manual de Direito Penal, 2, 19.ª edição, S. Paulo, 2002, pág. 66,
também refere que «A prova do homicídio é fornecida pelo laudo de exame de corpo de delito
(necroscópico). Quando não é possível o exame directo (o corpo da vítima não é encontrado ou
desaparece), permite-se a constituição do corpo do delito indirecto por testemunhas, por
exemplo, não o suprindo a simples confissão do agente (art.ºs 156 e 167 do CPP)»
Também Magalhães Noronha, Direito Penal, 2, 27.ª Edição, S. Paulo, 1995 pág. 18, diz o
mesmo: «Prova-se o homicídio com o exame de corpo de delito, que, em regra, é directo. Na
impossibilidade deste, é aceitável o indirecto, constituído por testemunhas. Irureta Goyena cita
o caso de dois indivíduos que foram vistos lutando em um barco, tendo um deles arrojado o
outro à corrente caudalosa, não havendo o corpo sido encontrado⌠J. Irureta Goyena, El delito
de homicídio, 1928, p. 8⌡. Por falta de exame directo é que não deixaria de haver imputação
de homicídio.
Ressalve-se, naturalmente, o caso em que pode haver dúvida quanto ao resultado, impondo-se,
então, a solução favorável ao acusado. Lembre-se, por exemplo, que mesmo a confissão do réu
isolada não é prova bastante, como no caso que Carrara invoca de dois marujos de Chiaja que
se acusaram de haver afogado dois jovens que, entretanto, se tinham salvado e viviam
comodamente em Roma ⌠ Carrara, Programma, cit., § 1.088, nota 5⌡. Não só pode haver
equívoco como auto-acusação falsa.»
Encontrámos em http://juris.tjdf.gov.br/revista/D647.doc uma sentença exaustiva sobre este
tema, da Juíza de Direito do Distrito Federal de Brasília, Dr.ª Leila Cury, onde recolhemos os
seguintes trechos:
A respeito do cabimento da realização de exame de corpo de delito indirecto quando torna-se
impossível a realização do exame directo em face do desaparecimento do corpo da vítima,
existe um caso concreto na literatura forense, ocorrido nos idos de 1964, mas bastante
conhecido e citado na atualidade, relativo ao julgamento de LEOPOLDO HEITOR, acusado de
matar e ocultar o corpo da vítima DANA DE TEFFÉ. Aquele acusado impetrou diversos
habeas corpus visando sua soltura e/ou trancamento da respectiva acção penal, contudo, todos
foram denegados, sendo certo que um deles, julgado pelo Pretório Excelso, teve como relator o
Eminente Ministro Victor Nunes, de cujo voto extraio o seguinte trecho, litteris:
"... Alega-se ainda que a materialidade não se poderia comprovar pela falta de corpo-de-delito,
mas não é isso que acontece, pois o Código de Processo Penal, prescreve em seu art. 167, que
esta prova pode ser feita por intermédio de testemunhas, isto é, indirectamente, e os tratadistas,
como Espínola e outros, entendem ainda que para tanto basta apenas o depoimento de uma
testemunha. Ora, o Excelso Pretório já se pronunciou também a esse respeito, quando do
julgamento de um dos "habeas corpus" impetrado pelo acusado Leopoldo Heitor, concluindo o
Ministro Gonçalves de Oliveira por que, se assim fosse, muito fácil seria a qualquer
criminosos eliminar a sua vítima, ocultar seu cadáver e fugir desse modo à sanção penal ..."
(HC 40.540/RJ DJ 13.08.64, p. 02825 - destaquei).
Em época mais recente, outro caso bastante semelhante ao de DANA DE TEFFÉ e ao de M.
ocorreu na Comarca de Uberlândia-MG, tendo como acusado DACI ANTÓNIO PORTE e
como sua vítima MARIA DENISE LAFETÁ SARAIVA. Este fato foi julgado pelo Tribunal
do Júri daquela Comarca mineira, ocasião em que DACI foi condenado a pena de 13 anos de
reclusão.
(...)
Invoco novamente o entendimento doutrinário a respeito do mesmo assunto, trazendo, por
oportuno, à colação, o pensamento de HENRIQUE FERRI, verbis:
O erro judiciário pode sempre vir a ser corrigido, pois a lei prevê a existência de um processo
de revisão de sentença transitada em julgado, que ocorre, por exemplo, face à descoberta de
novas provas. Mas a reparação do mal pode revelar-se tardia e totalmente insatisfatória.
Todavia, o erro judiciário existe em qualquer caso penal e não é um exclusivo dos crimes de
homicídio, pelo que não faz sentido não condenar o agente por homicídio só porque não foi
examinado directamente o cadáver, como não o faz não condenar alguém por crime de
violação só porque não foi possível o exame directo à vítima.
Na ponderação entre os riscos da impunidade e do erro judiciário, há que optar por uma
solução de compromisso que assegure simultaneamente as exigências de repressão do crime e
a de presunção de inocência do condenado: no caso em que um crime tenha como elemento
típico a morte da vítima (v.g., o crime de homicídio), ou como pressuposto prévio a sua morte
(v.g., o crime de profanação de cadáver), a morte deve ser provada por exame pericial directo,
mas, na impossibilidade de proceder a tal exame e não havendo norma legal que o imponha,
devem ser admitidos outros meios de prova que indiquem "a certeza moral sobre a ocorrência
do evento" (UU). Haverá, portanto, uma exigência acrescida quanto à avaliação da prova.
Assim, ao contrário do que sucede com o acórdão final do tribunal colectivo, de que se pode
recorrer quanto à matéria de facto para o tribunal da relação com apelo às provas
documentadas em suporte áudio ou vídeo, quando intervém o tribunal de Júri o recurso dirige-
se directamente ao STJ e visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem prejuízo de
se invocar algum dos vícios a que aludem os n.ºs 2 e 3 do art.º 410.º, "desde que o vício (no
caso do n.º 2) resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da
experiência comum".
Entendeu o legislador que a intervenção do Júri dá maiores garantias de fidedignidade na
fixação da matéria de facto, pelo que restringiu o direito ao recurso nessa parte.
Recorde-se que no direito anglo-saxónico não há recurso da matéria de facto quando o
julgamento se processa com Júri. As garantias de defesa provêm da escolha dos jurados e do
comprometimento da sociedade que aí se faz representar por estes. No nosso direito não é
exactamente assim, mas, ao se restringir o direito de recurso em matéria de facto, o legislador
quis prestigiar a intervenção do Júri, sem afectar de forma inadmissível os direitos
constitucionais de defesa.
Daí que, embora a lei determine que as declarações prestadas oralmente na audiência devam
ser documentadas na acta [quando o tribunal puder dispor de meios estenotípicos, ou
estenográficos, ou de outros meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral
daquelas, bem como nos casos em que a lei expressamente o impuser (art.º 363.º)], a falta
dessa documentação, nos casos em que há audiência perante tribunal de Júri, constitui mera
irregularidade processual que não afecta os direitos de defesa, pois não lhe é permitida a
impugnação dos factos provados e não provados mediante uma confrontação pela
documentação.
A documentação em acta da audiência perante o Júri servirá para recordar ao tribunal, no
momento da decisão da 1ª instância, o que foi dito pelas testemunhas; servirá ainda para se
aquilatar se foi ou não cometida alguma nulidade de julgamento, mas a sua falta não "nega à
Arguida o direito constitucional de recorrer de facto - art.º 32°-1 da C.R.P.", nem determina a
repetição do julgamento como alega a recorrente na conclusão 7ª do seu recurso, pois o recurso
da matéria de facto não passa, no caso de julgamento com Júri, pela reapreciação da prova
documentada na acta.
A irregularidade da falta de documentação em acta das declarações prestadas no julgamento
devia ter sido arguida no acto e, não o tendo sido, nem constituindo qualquer diminuição dos
direitos de defesa, considera-se sanada (art.º 123.º do CPP).
passar em direcção a casa, sendo curta a distância entre a sua e a residência que era a da menor
e não tendo vislumbrado movimento na rua, nem carros, nem ouvido qualquer grito.
Outras testemunhas referiram outros aspectos relevantes que, embora situados
cronologicamente depois da prática do crime, não deixam de ter significado quanto a este,
enquanto elementos conjugados numa unidade significativa, como sejam as que referiram a
despreocupação da arguida com o «desaparecimento» da menor, «aceitando-o sem desespero
ou angústia», o facto de a arguida não ter logo participado à polícia o pretenso
desaparecimento da menor, sendo a dona da pastelaria referida que, preocupada com tal
suposto «desaparecimento», depois de ver, fechado o estabelecimento às 24,30 h., que a
arguida não tinha feito participação a pretexto de não ter dinheiro no telemóvel, fez a
respectiva comunicação. E ainda uma quantidade de outros elementos, referidos com
minudência na decisão, como a cena dos sapatos da menor, que se encontravam todos (todos
os que ela usava, incluindo os que trazia calçados nesse dia) em casa, não conseguindo a
arguida evitar de cair em contradição, quando questionada a tal propósito pela testemunha
BB1, irmã do companheiro com quem vinha partilhando a sua vida.
Acresce o depoimento do companheiro da recorrente, II, que referiu que a recorrente lhe disse,
quando o depoente, no decurso de uma visita aos calabouços da PJ lhe perguntou o que
aconteceu, que «tinha dado uma chapada à CC e o AA acabou de a matar» e tudo porque ela os
tinha visto a ter relações um com o outro, e o depoimento do padrasto daquele II, que também
referiu que, no decurso de uma visita aos mesmos calabouços, o arguido AA, a pergunta sua,
respondeu que «estava a ter relações com a minha irmã» e que «tinham morto a miúda».
Porém, porque a recorrente pôs em causa a valia de tais depoimentos, acerca do seu valor
teceremos oportunamente considerações autónomas.
Também os depoimentos dos agentes da PJ que estiveram presentes no acto de reconstituição e
relataram o que sobre ela observaram serviram de base à convicção dos julgadores. Sobre tais
depoimentos faremos também incidir a nossa análise de forma particular, tendo os mesmos
sido impugnados na sua legalidade pela recorrente.
O auto de reconstituição do esquartejamento do corpo, feito pelo arguido AA, e a que assistiu,
entre outras testemunhas, um perito de medicina legal, que, ouvido em audiência, relatou o
modo como o arguido fez a reconstituição, os objectos que utilizou para o efeito (uma serra
metálica, adequada a cortar ossos e músculos, e uma faca, a cortar nervos e tendões) e a ajuda
que lhe deu a arguida nessa operação, a demonstração que fez a respeito da introdução das
diversas partes do corpo nas gavetas da arca frigorífica, tendo-se comprovado a forte
possibilidade de aqueles objectos terem sido efectivamente utilizados (a serra sendo
provavelmente pertença do companheiro da arguida, que a partir da data do crime deixou de a
ver) entrou, a par de todos os elementos já mencionados, na formação da convicção do
tribunal.
Como também todo o comportamento da arguida tendente, nos dias seguintes, a apagar os
vestígios de sangue que ainda restavam, tendo adquirido petróleo e um esfregão de arame para
o efeito.
Como ainda a sincronização de movimentos entre ambos os arguidos, numa verdadeira luta
contra o tempo e contras as suspeitas que poderiam atrair.
Enfim, foi toda esse material probatório e ainda outras provas indiciárias não mencionadas
aqui mas constantes da motivação que se reproduziu no ponto 10., que conjugados entre si e
com as regras da experiência, serviram de base à convicção dos julgadores, cuja explicitação
foi objectivada até onde o poderia ser, sendo que a convicção comporta sempre alguma
margem que não é recondutível a termos de pura racionalidade, sem que todavia se possa falar
de arbitrariedade, pois mesmo a actividade cognitiva que intervém na aquisição do chamado
«saber objectivo» não prescinde de uma certa carga de emoção, de subjectivismo e de
convicção não inteiramente objectivável, como têm salientado filósofos e cientistas da estirpe
de Fernando Gil (A Convicção) e António Damásio (O Erro de Descartes e Ao Encontro de
Espinosa).
E convém assinalar mais uma vez que a convicção assim formada foi adquirida por um
tribunal de júri, que tem uma legitimidade acrescida, pois a sua constitucionalização para o
julgamento dos crimes mais graves, embora a sua participação não seja obrigatória (art. 207.º
que o arguido foi debitando na reconstituição tivessem sido usadas como fundamento da
referida convicção. O que serviu de prova foi o próprio auto de reconstituição, onde foi
precipitada a essência da diligência.
Na reconstituição, o arguido AA envolveu a recorrente. Todavia, esse envolvimento não é o
resultado de declarações de co-arguido, mas de um meio de prova com configuração diferente,
como foi assinalado. Com efeito, não foi em resultado de declarações prestadas pelo arguido
AA, que até optou pelo silêncio no julgamento, que a recorrente, que também optou pelo
silêncio, foi atingida. Foi em resultado de uma reconstituição feita por aquele, que é um meio
de prova que pode ser feito valer em julgamento, não obstante os arguidos escolherem a via do
mutismo no respeitante à matéria da incriminação, como já foi devidamente salientado.
Mas, mesmo que se pretenda assimilar a reconstituição nessa parte (isto é, na parte que
incrimina a recorrente) a declarações de co-arguido ou simplesmente estabelecer um paralelo
com elas, para o efeito de se lhe aplicar uma exigência acrescida de prova, aquela exigência
que se traduz na corroboração necessária das declarações de co-arguido por outros meios de
prova, dada a especial fragilidade dessas declarações, como tem referido a doutrina,
particularmente TERESA PIZZARRO BELEZA («Tão amigos que nós éramos»: o valor
probatório do depoimento de co-arguido no Processo Penal português», Revista do Ministério
Público, n.º 74, p. 39 e ss.) e ANTÓNIO ALBERTO MEDINA SEIÇA, (O Conhecimento
Probatório do Co-Arguido, Coimbra Editora, 1999, p. 205 e ss.), e também a jurisprudência
deste STJ (entre outros, os acórdãos de 30/10/01, Proc. n.º 2630/01 - 3.ª, relator - Conselheiro
Armando II; de 17/11/02, Proc. n.º 3210/02, 5.ª, relator - Conselheiro Pereira Madeira; de
5/6/03, Proc. n.º 976/03 - 5.ª, relator - Conselheiro Simas Santos, de 18/11/04, Proc. n.º
3272/04 - 5.ª, relator - Conselheiro Carmona da Mota e de 13/4/05, Proc. n.º 648/05 - 3.ª,
relator - Conselheiro Antunes Granxo) o certo é que a reconstituição não foi a única prova de
que se serviu o tribunal para dar a recorrente como comparticipante nos factos.
Como vimos já, foi toda a prova produzida conjugadamente com a reconstituição, na inter-
relação dialéctica de uma e outra, que contribuiu para a formação da convicção do tribunal. A
reconstituição dos factos, na forma como o arguido AA mostrou que eles foram praticados,
incluindo a participação da recorrente, ajustou-se aos conhecimentos trazidos pelas restantes
provas, mesmo que não fossem provas directas, tornando aquela reconstituição verosímil, e as
restantes provas, por sua vez, adquiriram uma outra (inte)legibilidade com a reconstituição. A
decisão recorrida exprimiu a mesma ideia desta maneira: «O auto de reconstituição (...) não foi
valorado em si mesmo ou de forma isolada, mas em conexão com outros elementos
conjugados com ele, permitindo uma outra leitura a outro nível e não exactamente
reconduzível ao acto em si.»
Todo esse acervo probatório, preenche o tal requisito da corroboração por outros meios de
prova, que a doutrina focada, divergente de uma outra corrente doutrinal, que pretende ver nas
declarações de co-arguido uma prova proibida, com a consequente proibição da sua valoração
(entre nós, veja-se RODRIGO SANTIAGO, «Reflexões Sobre «As Declarações Do Arguido»
Como Meio De Prova No Código de Processo Penal de 1987», Revista Portuguesa de Ciência
Criminal, 1994, n.º 4, p. 27 e segs.) e também a jurisprudência mencionada exigem, para se
poder conferir valor probatório às declarações de co-arguido.
Por conseguinte, ajustando-se a reconstituição, com o valor resultante das demais provas, ao
facto traduzido na supressão da vida da menor CC, amolda-se também ela ao facto de tal
resultado ter sido produzido por acção de ambos os arguidos. Não só por ser indesmentível a
circunstância de ambos os arguidos se encontrarem em casa quando a menor aí teve o seu
trágico fim, como por força de todos as aquisições cognitivas que as restantes provas
possibilitaram, desde os vestígios de sangue humano já referidos e que persistiram depois das
aturadas acções de limpeza levadas a cabo principalmente pela recorrente, como também por
todo o comportamento que esta teve, já limpando imediatamente as manchas de sangue que
ficaram no chão e nas paredes, já colaborando com o arguido no esquartejamento do corpo e
na sua colocação ou tentativa de colocação nas gavetas da arca frigorífica, já exibindo uma
atitude totalmente desfasada em relação ao pseudo-desaparecimento da criança, não
comunicando o facto à polícia imediatamente, a pretexto de não ter dinheiro no telemóvel, já
mostrando uma atitude despreocupada, segundo certas testemunhas, bem como sincronizando
os seus actos com os do arguido de uma forma que se pode considerar perfeita, no sentido de
despistar suspeitas de quem quer que fosse.
Um tal comportamento, se imediatamente se referencia ao crime de ocultação e profanação de
cadáver, não pode deixar de ter um significado profundo, segundo as regras da experiência, em
relação ao facto que produziu a morte, pois não seria normal uma mãe agir assim se ela própria
não tivesse uma ligação íntima ao que se passou antes, isto é, se não tivesse participado nos
factos. Um filho que cai fulminado no chão não é propriamente uma peça de louça que se parte
e cujos cacos se removem o mais depressa possível para serem deitados ao lixo com este
sentimento que normalmente acompanha esses acidentes: «Paciência! Acabou-se!»
Ora, todas estas provas e nomeadamente a reconstituição foram produzidas e examinadas na
audiência e como tal sujeitas ao princípio do contraditório, não podendo a recorrente invocar a
opção pelo silêncio de ambos os arguidos para arguir, por exemplo, a violação do princípio da
cross examination em relação às «declarações» que incorporam o próprio acto de
reconstituição, pois uma tal pretensão está para além do círculo de interesses que constituem a
protecção essencial daquele direito, integrado no direito à defesa. De qualquer forma, para
além da reconstituição em si, foram inquiridas testemunhas que assistiram ao acto e que a
recorrente teve oportunidade de contraditar em audiência, formulando as objecções que
porventura entendesse e pondo ou podendo pôr em causa as razões da sua credibilidade,
particularmente naquilo que afectava a sua posição enquanto comparticipante dos factos.
Deste modo e para concluir, mesmo fazendo a equiparação do acto de reconstituição com
declarações de co-arguido na parte em que o arguido AA envolveu a recorrente, respeitaram-se
as exigências de particular cuidado na aquisição da prova que a doutrina e a jurisprudência
deste Tribunal associam às declarações de co-arguido, nomeadamente no que se refere ao
requisito de corroboração por outros meios de prova.
11. 3. 4. Depoimentos de elementos da Polícia Judiciária.
A recorrente põe em causa a legalidade de tais depoimentos, tendo eles sido prestados, como já
foi referido, no âmbito das reconstituições que foram efectuadas, sendo certo que na
reconstituição do esquartejamento do cadáver, intervieram outras pessoas, como seja o caso de
um perito de medicina legal, para além daqueles elementos policiais.
Ora, esta questão tem sido inúmeras vezes abordada por este Supremo Tribunal e pode dizer-se
que a solução unânime que ela tem merecido não favorece a recorrente.
Efectivamente, a jurisprudência referida tem sistematicamente entendido que os órgãos de
polícia criminal só não podem depor em julgamento relativamente ao conteúdo de declarações
que tiverem recebido e cuja leitura não seja permitida, como será o caso das declarações
anteriormente prestadas pelo arguido quando ele opte pelo silêncio no julgamento, tudo nos
termos dos artigos 356.º, n.º 7, 357.º e 343.º, n.º 1, todos do CPP, mas não já relativamente a
factos de que tenham conhecimento directo obtido por meios diferentes das declarações de
arguido no decurso do processo. Assim, entre outros, os Acórdãos de 11/12/96, Proc. n.º
780/96 - 3.ª (relator: Relator: Cons. Flores Ribeiro); de 22/5/97, Proc. n.º 152/97 - 3.ª (Cons.
Abranches Martins); de 22/4/04, Proc. n.º 902/04 - 5ª (Relator: Cons. Pereira Madeira); de
15/1/05, Proc. n.º 3276/04 - 3.ª, este relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar, tendo já sido
referido a propósito de recurso interlocutório da arguida e, na parte que aqui interessa, dizendo
o seguinte: «Vista a dimensão da reconstituição do facto como meio de prova autonomamente
adquirido para o processo, e a integração (ou confundibilidade) na concretização da
reconstituição de todas as contribuições parcelares, incluindo do arguido, que permitiram, em
concreto, os termos em que a reconstituição decorreu e os respectivos resultados, os órgãos de
polícia criminal que tenham acompanhado a reconstituição podem prestar declarações sobre o
modo e os termos em que decorreu; tais declarações referem-se a elementos que ganham
autonomia, e como tal diversos das declarações do arguido ou de outros intervenientes no acto,
não estando abrangidas na proibição do art. 356.º, n.º 7 do CPP.»
Por conseguinte, o reparo da recorrente não tem fundamento à luz de tal jurisprudência, que é
também a que temos seguido, nomeadamente nos Acórdãos de 22/4/04, Proc. n.º 902/04 - 5.ª e
de 8/7/04, Proc. n.º 1124/04 - 5.ª
A isso acresce que as referidas testemunhas depuseram sobre outros factos que directamente
presenciaram, como a localização espacial de certos aposentos da casa onde foram praticados
depoimento das pessoas indicadas não ser possível por morte, anomalia psíquica superveniente
ou impossibilidade de serem encontradas essas pessoas, o depoimento indirecto vale com
prova, podendo a esse título contribuir para a formação da convicção do tribunal.
No dizer do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 213/94, relatado pelo Conselheiro Ribeiro
Mendes, e que faz uma excursão doutrinal sobre essa problemática, essa excepção revela-se
«como proporcionada, nela se precipitando uma adequada ponderação dos interesses do
arguido em poder confrontar os depoimentos das testemunhas de acusação, os da repressão
penal, prosseguidos pelo acusador público, e, por último, os do tribunal, preocupado com a
descoberta da verdade através de um processo regular e justo (due process of law) ⌠DR 2.ª S
de 23/8/94⌡.
No caso dos autos, a impossibilidade resulta de os arguidos terem optado pelo direito ao
silêncio. Mas será que neste caso, estando a pessoa presente e não querendo prestar
declarações por força do seu estatuto especial, que é o de ser arguido, não pode de forma
alguma o testemunho produzir qualquer efeito de prova?
A esta questão parece responder, de alguma forma, embora em contexto que não é
inteiramente coincidente com o destes autos, um outro Acórdão do Tribunal Constitucional - o
de 8/7/1999, relatado pelo Conselheiro Messias Bento - Acórdão n.º 440/99, proferido no Proc.
n.º 268/99, que se pronunciou sobre um Acórdão deste STJ e disponível em
www.tribunalconstitucional.pt/tc/acórdãos.
Nesse aresto, estava em causa a valoração segundo o princípio da livre apreciação da prova de
depoimento de testemunha que disse ter ouvido do próprio arguido os factos que relatava,
sendo que esse arguido, chamado a prestar declarações, o não quis fazer, no exercício do seu
direito ao silêncio.
O enquadramento factual, porém, continha algumas «nuances», como já foi assinalado, do
seguinte teor: as testemunhas (porque eram várias) tinham também participado nos factos, mas
na parte em que não participaram depuseram indirectamente, referindo a fonte de onde tinham
ouvido o que relatavam. Todas as pessoas indicadas foram chamadas a depor e puderam ser
contraditadas. Porém, o arguido em causa, também indicado como fonte, escudou-se no direito
ao silêncio.
Ora, o Tribunal Constitucional começou por equiparar esta situação de recusa à de
impossibilidade absoluta, decorrente da própria lei, de interrogar o mencionado arguido. E daí
partiu para uma outra equiparação: a de que «não há diferença substancial entre a situação do
arguido que não pode ser encontrado e a daquele que, chamado à audiência, invoca o seu
direito ao silêncio para não depor». E assim, no contexto daquele processo, com as
características já sumariamente referidas, concluindo que as testemunhas puderam ser
contraditadas, não havia nenhum facto cuja prova tivesse assentado exclusivamente nos
depoimentos indirectos, tendo o tribunal apreciado tais depoimentos com a prudência que a
impossibilidade de ouvir a fonte impunha e de acordo com as regras da lógica e da
experiência, sendo por isso razoável e proporcionado que esses depoimentos tivessem sido
valorados como meios de prova, o TC acabou por decidir que:
(...) o artigo 129.º, n.º 1 (conjugado com o artigo 128.º, n.º 1) do Código de Processo Penal,
interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de
testemunhas que relatem conversas tidas com um co-arguido, que, chamado a depor, se recusa
a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma intolerável,
desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido.
E acrescentou:
Não o atinge, ao menos na dimensão em que essa norma foi aplicada no caso.
Para concluir:
Por isso, não havendo um encurtamento inadmissível do direito de defesa do arguido, tal
norma não é inconstitucional.
Ora, sendo evidentes as cautelas que o TC pôs no tratamento da questão, o cuidado em dar o
recorte concreto da situação e o escrúpulo em restringir os efeitos da decisão, bem evidenciado
no acrescento da parte final, que pusemos em destaque, cremos que o caso dos autos pode, de
certo modo, beneficiar da teoria ali exposta.
Com efeito, as testemunhas referiram ter ouvido os arguidos falar em agressões à menor CC.
Todavia, os arguidos, presentes na audiência, usaram do direito ao silêncio e, por isso, não
foram questionados sobre esses factos, embora os respectivos advogados tivessem podido
exercer o respectivo contraditório em relação a essas testemunhas.
Os depoimentos apresentaram outras particularidades. No caso da testemunha II, esta referiu
que foi a pedido da PJ que interpelou a recorrente BB sobre o sucedido, mas que, na altura, o
depoente e a arguida estavam sós na sala, acontecendo ainda que, mais tarde, no decurso de
uma outra visita, a recorrente desdisse o que antes tinha afirmado, pretextando ter sido
agredida por elementos da PJ, mas não tendo o depoente visto sinais dessa agressão, o que,
diga-se, abona a favor da autenticidade da testemunha.
Por outro lado, os depoimentos são relativamente vagos, pois aquele II referiu que a arguida
BB disse que «tinha dado uma chapada na CC e o AA tinha acabado de a matar» e o depoente
DD1 referiu que o arguido AA disse que «tinham morto a miúda». Em ambos os casos,
referiram as testemunhas que os arguidos lhes comunicaram que estavam a ter relações sexuais
um com o outro, quando a menor entrou em casa.
Ora, o tribunal «a quo» valorou esses depoimentos segundo o princípio da livre apreciação da
prova, mas nessa valoração não parece ter excedido a prudência. Por um lado, foi depois de ter
concluído, na motivação da convicção, pela comparticipação de ambos os arguidos na
aplicação de violência física sobre a menor, que, a título de acrescento, referiu os depoimentos
das citadas testemunhas, iniciando esse parágrafo, quase na parte final, desta maneira
significativa: «Acresce ainda e relativamente à mesma factualidade ...», o que sugere um mais
em relação à prova essencial já explanada ao longo de dezenas de páginas. Por outro, não
considerou provadas as relações sexuais e apenas parece ter retido dos depoimentos o que já
estava comprovado por outros meios de prova, ou seja, as agressões à menor.
Deste modo, tal como naquele acórdão do Tribunal Constitucional, podemos considerar que a
impossibilidade de ouvir a fonte citada pelas testemunhas, tendo resultado do direito ao
silêncio a que se remeteram os arguidos, que assim nada declararam sobre os factos versados
nos depoimentos, estando presentes na audiência, não é substancialmente diferente da situação
prevista na lei de impossibilidade de a pessoa indicada ser encontrada. E a isso acrescendo que
a prova dos factos não resultou em exclusivo dos referidos depoimentos indirectos, pois foi
mais um elemento (não decisivo) no conjunto das provas produzidas, e que o tribunal agiu com
a prudência que a impossibilidade de ouvir a fonte impunha e de acordo com as regras da
lógica e da experiência, será de concluir que a valoração dos depoimentos nesses termos
relativos não ofendeu o disposto no art. 129.º do CPP, em correlação com os direitos dos
arguidos, nomeadamente o direito de defesa consignado no art. 32.º , n.ºs 1 e 5 da
Constituição.
Mesmo, porém, que fosse de considerar tais depoimentos como de nulo efeito em matéria de
prova, e visto que se não trata de um meio de prova proibido em termos absolutos, e por isso
não produz efeitos à distância, nem comunica a nulidade a toda a prova obtida por força da
livre convicção do tribunal, a consequência que daí poderia resultar seria pura e simplesmente
a de retirar efeito de prova a esses depoimentos, o que, vistas as contribuições probatórias que
entraram na formação da convicção do tribunal e a relativa, senão mesmo marginal
importância de tais depoimentos, não traria consequências relevantes para o resultado a que
chegou, em termos de convicção, o tribunal «a quo», não se perfilando por isso a alteração da
matéria de facto dada como provada e não provada.
considerar que ela continha declarações de co-arguido que não podiam valer contra a
recorrente, seja ainda por entender que foram valorizados contra a lei depoimentos indirectos
ou depoimentos de entidade policial, ou ainda porque a prova era insuficiente para a
condenação, não tendo havido prova directa do crime ou tendo sido incorrectamente valorados
contra ela os elementos probatórios carreados pelos escassos meios de prova. Porém, tudo isso
foi já amplamente analisado nos números precedentes, tendo-se concluído pela
compatibilidade lógica, racional e de acordo com as regras da experiência das conclusões em
matéria de prova com o sentido evidenciado pela análise dos diversos meios de prova que a
motivação da convicção exaustivamente põe em destaque.
Deste modo, só nos resta concluir que a decisão recorrida não patenteia a violação do princípio
in dubio pro reo por qualquer das formas que vimos que ele podia ser revelado.
Quanto aos restantes problemas, nomeadamente no que se refere à qualificação do crime e à
pena, eles serão analisados ulteriormente, conjuntamente com a análise do recurso do arguido
AA e do Ministério Público.
Quanto à apontada incongruência entre a alínea q) dos factos provados com o facto dado como
não provado no ponto 5, diz respeito ao tratamento que a arguida BB dispensava à filha, só a
ela dizendo respeito, não se percebendo por isso por que é que o recorrente levanta o
problema, quando nem a arguida a quem o facto se reporta o levantou. A decisão, nesse
aspecto, não foi contra ele proferida.
O mesmo sucede com a alínea aab) em contraposição com o ponto 105, dizendo o recorrente:
"a arguida por vezes falava da filha no passado e vestia blusa preta é indiscutivelmente
diferente de "estar de luto" como se pretende na pronúncia". Este facto também nada tem a ver
com o recorrente, mas com a arguida BB, que não arguiu a pretensa contradição ou alteração.
E quanto aos pontos 12, 16, 21, 24, 30, 31, 41, 47, 51, 52, 53, 54, 57, 59, 60, 68, 69, 73, 80, 83,
91, 96, 107, 113, 114, 117 e 125, que o recorrente diz estarem em contraposição com os factos
dados como provados, o mais que se pode dizer é que cabia ao recorrente o ónus de explicar
que diferenças são essas "com relevo para a decisão da causa", pois não compete a este
Tribunal fazer uma procura que só a ele, recorrente, cabia, e investigar por ele em que medida
a defesa foi afectada.
De resto, é impensável que o tribunal de julgamento estivesse vinculado aos dizeres da
acusação, nos seus mais ínfimos pormenores, não podendo alterar nada (nem mesmo a sua
redacção, por vezes defeituosa ou errática) sem o conhecimento prévio dos arguidos, pois o
que se visa quando se tem de dar esse conhecimento é assegurar a plenitude dos direitos de
defesa.
De modo que improcede igualmente a arguição destas nulidades.
12. 6. Reconstituições
Quanto aos problemas levantados com as reconstituições, nomeadamente quanto à
especificidade deste meio de prova, diferente das declarações ou depoimentos prestados em
inquérito ou instrução e podendo ser reproduzido em audiência sem violação do disposto no
art. 357.º do CPP, porque tais problemas são comuns com os levantados pela arguida BB,
remete-se para as considerações expendidas no ponto 11. 1.
Quanto ao valor delas para a formação da convicção no conjunto da prova produzida, remete-
se para os pontos 11. 2. e 11. 3. 2.
12. 9. Vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP, fundamentação da decisão e motivação da convicção
Nesta parte remete-se para o teor da explanação constante do ponto 11. 3. 2., onde a questão
dos vícios foi extensamente desenvolvida em correlação com a análise da motivação da
convicção e a sua conformidade com as exigências de fundamentação do art. 374.º, n.º 2 do
CPP e com as regras e os princípios basilares de apreciação da prova, nomeadamente nos
termos do art. 127.º mesmo diploma legal.
13. Conclui-se, assim, que o recurso interposto pelo arguido AA não merece provimento em
nenhuma das questões formuladas, que a seu ver determinariam o reenvio do processo para
novo julgamento.
Para dar como provado esse dolo eventual, o tribunal «a quo» serviu-se, como vimos, de toda a
prova em que se estribou a convicção, e não apenas da reconstituição feita pelo arguido AA,
sendo que aqui também relevam, para além das provas directas, as provas indirectas,
permitindo a apreensão dos factos probandos a partir de deduções e induções objectiváveis a
partir de factos indiciários, (Acórdão de 9/7/03, Proc. n.º 615/03 - 3.ª, relatado pelo Cons.
Armando Leandro) e tendo a prova um sentido unitário que não é possível dissociar enquanto
unidade de significação que foi apreendida, de acordo com o princípio da livre apreciação das
provas e as regras da experiência, pelo tribunal de júri.
O tribunal «quo», na motivação da convicção, nunca se ateve só a um meio de prova, em
especial a reconstituição e os depoimentos de certas testemunhas, mas a toda a prova
conjugadamente apreciada, sendo visível o seu esforço para correlacionar todos esses
elementos.
E no final concluiu:
Pelo que podemos concluir que a representação feita pelo arguido AA no auto de
reconstituição de fls. 273 e ss., quanto ao desfecho das agressões, resulta da forma como estas
se produziram , tendo eles sucessivamente aplicado violência que se revelou apta a produzir
embates da cabeça da vítima contra a parede, pelo que a todas as luzes não podem ter deixado
de intuir aquele desenlace.
E se isso foi assim quanto à previsão do resultado como possível, face ao anteriormente dado
como provado («sucessivas pancadas aplicadas na cabeça da menor CC, levando-a a embater
com a cabeça na esquina da parede, sendo visível que sangrava da boca, nariz e têmpora,
mercê dos embates na parede, que causaram também a queda da menor e a sua morte,
cessando então a actividade dos arguidos»), também o foi relativamente à aceitação das
consequências possíveis de acordo com tal previsão, sendo que este elemento subjectivo, que é
de ordem psicológica, mas também normativa, sendo de difícil objectivação em termos de
racionalidade do processo de apreensão da realidade, se extrai de todo o comportamento
mantido pelos arguidos, analisado à luz das regras da experiência.
Temos, pois, um crime de homicídio cometido em comparticipação e com dolo eventual.
Mas esse crime foi ainda cometido em circunstâncias que têm de ser realçadas, porque
relevantes para a sua caracterização típica.
Estamos a referir-nos a circunstâncias qualificativas típicas que agravam especialmente o
crime de homicídio, como são as do art. 132.º do CP.
Este art.º 132.º reporta-se ao homicídio qualificado e nele o legislador não quis organizar as
circunstâncias qualificativas de uma forma taxativa, antes optou por uma fórmula aberta,
embora cingida a certos parâmetros, que deixa ao aplicador uma margem de ponderação das
circunstâncias, por forma a casuisticamente determinar se este ou aquele facto integra o
conceito legal de homicídio qualificado.
Trata-se de um tipo de culpa, que começa por enunciar no seu n.º 1 uma cláusula geral ou um
critério generalizador, com recurso a elementos atinentes à culpa: "Se a morte for produzida
em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido
com pena de prisão de 12 a 25 anos".
Mas aliou-se essa formulação genérica à "chamada técnica dos exemplos-padrão, que
funcionam como critério especializador, em que a cláusula geral é concretizada por diversas
circunstâncias enumeradas no n.º 2, mas de forma exemplificativa, que não taxativa (Cf.
FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense do Código Penal, p. 25 e ss. e TERESA
SERRA, Homicídio Qualificado - Tipo De Culpa E Medida Da Pena, 2000, p. 15).
Alguns desses exemplos-padrão, estão formulados no n.º 2 do art.º 132.º deste modo: «É
susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número
anterior, entre outras, a circunstância de o agente: a) Ser descendente ou ascendente, adoptado
ou adoptante, da vítima; b) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão
de idade, deficiência, doença ou gravidez; c) Empregar tortura ou acto de crueldade para
aumentar o sofrimento da vítima; d) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de
causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo
torpe ou fútil; e) Ser determinado por ódio racial, religioso ou político; f) Ter em vista
preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou assegurar a
impunidade do agente de um crime; g) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas
pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de
perigo comum; h) Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso; i) Agir com frieza de
ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por
mais de vinte e quatro horas;...».
Que estas circunstâncias estão enunciadas a título meramente exemplificativo, é uma
afirmação inequívoca, pois resulta directamente da lei, quando refere que são essas, «entre
outras», as circunstâncias que podem concretizar a especial censurabilidade ou perversidade.
E, como não podia deixar de ser, é essa a Jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal
(Acs. STJ de 2002/11/14, proc. 3316/02, de 1991/12/12, proc. 42640, de 1992/05/06, proc. n.º
43109, de 1997/12/16, proc. n.º 102/98, de 1990/12/20, proc. 41848, etc., todos eles in www.
dgsi.pt.).
Mas a técnica legislativa resultante da conjugação do n.º 1 com o n.º 2 do art.º 132.º leva a que
possa ocorrer um homicídio em que se verifique alguma das circunstâncias previstas no n.º 2 e,
contudo, não se tratar de um homicídio qualificado, pois, no caso concreto, aquela
circunstância pode não revelar "especial censurabilidade ou perversidade" (n.º 1), como pode
suceder o contrário: a circunstância não estar prevista no n.º 2, mas poder ser substancialmente
análoga a qualquer delas (Comentário...,p. 26) e poder integrar-se no tipo especial de culpa.
Vem a doutrina entendendo, embora dividida, que os exemplos-padrão se prendem
essencialmente com a questão da culpa, mais do que com a ilicitude, pois ainda que se refiram
a um maior desvalor da conduta (por exemplo, o homicídio cometido na pessoa do pai ou do
filho), não é essa circunstância, por si, que determina a qualificação do crime, antes a especial
censurabilidade ou perversidade do agente, isto é, o especial tipo de culpa Leal Henriques e
Simas Santos assinalam no "Código Penal Anotado", II, pág. 61 e segs., que não é exacta a
afirmação do Ac. do STJ de 1990/06/06 de que "no caso de parricídio a regra é a de que se
verifica especial censurabilidade ou perversidade", pois esta tem de ser sempre comprovada).
Como se diz no Acórdão deste STJ de 11/12/1996, proc. n.º 188/97 (www.dgsi.pt), "A
qualificação do crime de homicídio qualificado não é consequência irrevogável da existência
de qualquer das circunstâncias constantes do n.º 2 do artigo 132.º do CP. Essencial é que as
circunstâncias em que o agente comete o crime revelem uma especial censurabilidade ou
perversidade, ou seja, uma censurabilidade ou perversidade distintas (pela sua anormal
gravidade) daquelas que, em maior ou menor grau, se revelem na autoria de um homicídio
simples».
Importa precisar o que é a especial censurabilidade ou perversidade.
Permitimo-nos aqui citar, mais uma vez, Teresa Serra (ob. cit., págs. 63 a 65):
«Como se sabe, a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a
concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se
ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No artigo 132.°,
trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de
tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a
uma determinação normal de acordo com os valores. Com a referência à especial perversidade,
tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e
constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade.
Significa isto pois, um recurso a uma concepção emocional da culpa e que pode reconduzir-se
«à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor, de que fala
BINDER. Assim poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que
prevalecem as tendências egoístas do autor, especialmente perversa, especialmente rejeitável,
será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e
determinaram quase exclusivamente a conduta do agente. Importa salientar que a qualificação
de especial se refez tanto à censurabilidade como à perversidade. A razão da qualificação do
homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas
circunstâncias em que a morte foi causada. Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto
lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou
perversidade do agente que o comete».
No caso dos autos há uma especial censurabilidade, pois, em primeiro lugar, a arguida BB era
ascendente da menor, tendo o especial dever de não cometer o crime e até de evitar o resultado
por meio de acção adequada, por força de um especial dever de garante (Cf. TAIPA DE
CARVALHO, Comentário ..., p. 846 e ss.) e em segundo lugar, porque ambos os arguidos
praticaram o crime contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, pois trata-se de
pessoas adultas que agrediram, com violência e repetidamente, uma criança que em Setembro
de 2004, tinha 8 anos, sendo magra e com altura entre 1,20 metros e 1,40 metros.
A isso acresce, e no que diz respeito ao arguido AA, o facto de ser tio da menor, o que, por um
lado, lhe conferia um dever especial, embora não equiparável ao da mãe, de zelar pela saúde e
bem-estar da sobrinha, por outro, conferia-lhe uma autoridade familiar sobre a mesma.
Acentue-se ainda que agiram os dois contra a menor, praticando actos de considerável
violência sobre ela.
Esse circunstancialismo, aliado às circunstâncias previstas nos exemplos-padrão (alíneas a) e
b) do n.º 2, no caso da arguida BB, e alínea b), no caso do arguido AA, revelam uma especial
censurabilidade, uma culpa acrescida que qualificam o crime de homicídio, mas só pelas
referidas alíneas, que não também pela alínea d), como foi decidido pelo tribunal «a quo»,
pois, não se sabendo qual o motivo que levou à prática do crime, não pode esse motivo
ignorado ser qualificado de fútil ou torpe.
O crime de homicídio qualificado, sendo punível apenas a título de dolo, compatibiliza-se com
este em qualquer das suas formas e, portanto, também com o dolo eventual, como acentua
FIGUEIREDO DIAS no citado Comentário Conimbricense: «O homicídio qualificado é, tal
como o homicídio simples, um tipo unicamente punível a título de dolo sob qualquer uma das
suas formas inscritas no art. 14.º: intencional, directo ou eventual». Isto, muito embora se não
desconheçam certas vozes discordantes, como a de MARIA MARGARIDA SILVA
PEREIRA, Direito Penal II - Os Homicídios, apontamentos das aulas teóricas dadas ao 5.º ano
96/97, Lisboa, 1998, p. 71 e 72. Aliás, já assim foi decidido por este Supremo Tribunal, por
exemplo nos Acórdãos de 11/12/97, Proc. n.º 1050/97 - 3ª, relatado pelo Cons. Oliveira
Guimarães, e de 21/4/05, Proc. n.º 3975/04 - 5ª, este do mesmo relator deste processo.
momento da prática dos crimes, quer nos momentos posteriores. Basta lembrar que até hoje
não revelaram o paradeiro dos restos mortais da menor CC...
"Beneficiar" os arguidos com penas situadas junto ao ponto médio entre o limite mínimo e
máximo da pena prevista para o crime de homicídio parece-nos indevido e violador das
normas que determinam o modo de escolha da pena.
Mesmo no caso do crime de ocultação de cadáver não se verifica razão alguma para não se
aplicar aos arguidos o máximo da pena prevista em abstracto. Para mais quando - como acabou
por ser entendido - nesse crime acabou por ficar consumido um outro, o de profanação de
cadáver. Actividade mais desvaliosa em termos jurídicos e sociais não se encontra. Não se
consegue vislumbrar qualquer caso em que se consiga obter maior ilicitude e culpa por parte
do agente na ocultação de um corpo (para mais de uma filha e sobrinha dos arguidos).
Daqui que, sempre salvo o devido respeito por opinião contrária, se entenda que as penas a
impor deverão ser agravadas.
Mais se entendendo que deverão ser os arguidos punidos de forma idêntica, tendo em conta
que, por um lado, o desvalor da acção da arguida BB é superior (a menor era sua filha, e daí
também a qualificativa d alínea a) do nº 2 do art.º 132º do C. Penal se lhe aplicar) mas que, por
seu lado, o arguido AA, ao contrário da irmã (primária) tem já diversos antecedentes criminais,
um deles precisamente por crime contra a vida.
Assim, propõe-se a alteração da decisão nos seguintes termos:
- O arguido AA, na pena única de 23 (vinte e três) anos de prisão, resultante de cúmulo
jurídico entre as penas de:
- 22 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. nos art.ºs. 131° e
132° n.ºs. 1 e 2, al. b); e de
- 2 anos de prisão pela prática de um crime de ocultação de cadáver, p. e p. pelo art.º 254.º, n.º
1, al. a), ambos do Código Penal.
- A arguida BB, na pena única de 23 (vinte e três) anos de prisão, resultante do cúmulo jurídico
das penas de:
- 22 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. nos art.ºs. 131º e
132º nºs. 1 e 2, als. a) e b); e de
- 2 anos de prisão pela prática de um crime de ocultação de cadáver, p. e p. pelo art.º 254º, n.º
1, al. a), ambos do Código Penal."
Ora, não cremos que o Ministério Público tenha razão relativamente ao crime de homicídio.
Sendo embora altamente censurável a forma como os arguidos agiram, a verdade é que esse
acréscimo de censurabilidade está já reflectido na opção pelo tipo qualificado. As
circunstâncias desvaliosas em que os arguidos actuaram, quer referidas ao desvalor da conduta,
quer ao desvalor da atitude do agente, fazendo parte do tipo (de culpa), foram já determinantes
para a qualificação dos factos, não podendo, por isso, ser novamente valoradas em sede de
determinação concreta da pena, dentro dos critérios do art. 71.º do CP, sob pena de infracção
do princípio da proibição de dupla valoração.
Por outro lado, o recorrente estriba-se numa pretensa oposição entre os fundamentos expressos
para a determinação da pena e as penas concretamente impostas, pois, na decisão recorrida,
usou-se a expressão «dificilmente se encontrará um caso de homicídio em que a acção dos
arguidos seja mais grave e desvaliosa». Porém, essa afirmação corresponde mais a um
sentimento do que a um fundamento. É uma espécie de desabafo emocional, e o que conta para
a determinação concreta da pena são circunstâncias bem definidas, relevantes em termos de
culpa e prevenção, que não as afirmações feitas em estilo de comentário mais ou menos
impressionista.
Acresce que o crime foi cometido com dolo eventual, segundo a factualidade provada, ou seja,
a forma mais enfraquecida de dolo, o que não pode deixar de ter repercussões consideráveis
em sede de determinação da pena, tanto mais que, como vimos, não é sequer de todo pacífica a
compatibilidade do crime de homicídio qualificado com o dolo eventual. E se uma tal
circunstância não nos impediu de avançarmos decididamente, de acordo com o que pensamos
ser uma correcta solução jurídica, para o crime qualificado, o certo é que a polémica traduzirá,
ao menos, um consenso quanto à natureza mais débil desta forma de dolo, a merecer
III: DECISÃO
16. Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:
A) negar provimento ao recurso interlocutório da arguida BB, mantendo-se o despacho
recorrido;
B) conceder provimento parcial aos recursos dos arguidos AA e BB e , em consequência,
revogando parcialmente a decisão recorrida, decidem:
- condená-los como co-autores do crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos
artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), quanto ao primeiro, e alíneas a) e b), quanto à
segunda, na pena de 16 (dezasseis) anos de prisão cada um deles;
C) no provimento parcial do recurso do Ministério Público, condená-los pelo crime de
ocultação e profanação de cadáver, previsto e punido no art.º 254.º, n.º 1, als. a) e b), do C.
Penal, na pena de 2 anos de prisão;
- em cúmulo jurídico destas penas, condená-los na pena única de 16 anos e 8 (oito) meses de
prisão;
17. A arguida BB pagará, pelo decaimento parcial, 8 UCs de taxa de justiça, com metade de
procuradoria.
menor? E que os dois arguidos se asseguraram (!) da morte da menor? E que depois
esquartejaram o cadáver e o meteram em sacos de plástico nas gavetas da arca frigorífica?
A resposta a estas perguntas foi obtida unicamente pelas reconstituições do arguido AA, pois
os outros meios de prova indicados na sentença permitem afirmar que houve uma morte, mas
não como aconteceu e quem a provocou.
Ora, se é possível sustentar que a reconstituição dos factos tem um valor probatório por si
próprio contra o arguido que nela colaborou, ainda que não tenha prestado declarações em
audiência - pelo menos tem sido esta a jurisprudência do STJ - já o mesmo não se pode dizer
em relação a co-arguido que não colaborou na diligência, salvo se outros meios de prova
vierem corroborar os factos.
Na verdade, não sendo um meio de prova proibido no que respeita ao co-arguido, é no entanto
particularmente frágil e não deve ser considerado suficiente para sustentar uma condenação,
salvo se houver corroboração por outras provas, pois o arguido que colabora na diligência não
presta juramento, não está impedido de mentir e tem interesse em sacudir as suas próprias
responsabilidades.
A valoração das reconstituições sem corroboração quanto à arguida BB, como aconteceu, é
ilegal e inconstitucional e devia ter conduzido à sua absolvição pelo crime de homicídio. Já
não assim quanto ao crime de profanação e ocultação de cadáver, pois não podia ter sido
executado pelo arguido AA sem a colaboração activa da arguida, com ele presente no local e
hora do crime.
O tribunal de júri definiu que o arguido AA agiu com intenção de matar, ainda que a título de
dolo eventual. Porém, das reconstituições resulta a intenção de agredir e não se produziu
qualquer outra prova útil. Se tivesse sido provada a forte motivação que constava da
pronúncia, talvez fosse possível concluir que houve intenção de matar, ainda que a título de
dolo eventual. Mas nem a motivação do crime foi possível estabelecer.
Mesmo o posterior corte do cadáver e sua ocultação nada nos dizem sobre a intenção de matar
deste arguido, nem quanto à participação da arguida BB nas ofensas à integridade física da
menor, pois são conhecidos casos em que o agente procedeu do mesmo modo apesar da morte
não ter sido provocada intencionalmente, bastando que se instale o pânico e o receio da
perseguição policial. E não se conjecture que a menor pode ter falecido como resultado desses
cortes, pois a acusação definiu que a menor já então estava morta e tais factos não podem ser
alterados neste Supremo Tribunal.
Em suma, é patente pela leitura da sentença condenatória que o tribunal de júri decidiu, nos
pontos indicados, contra os arguidos e, assim, violou o princípio da presunção de inocência
que obriga o tribunal a só proferir uma condenação quanto não persista qualquer dúvida
razoável. E a condenação fundada em meras suposições ou no carácter eventualmente perverso
e associal dos arguidos é também ilegal e inconstitucional.
Estas são, em resumo, as razões da minha discordância.
Para completo esclarecimento, junto parte do projecto que elaborei e que não logrou
vencimento.
III
III_A
O Código de Processo Penal estabelece a regra de que "são admissíveis as provas que não
forem proibidas por lei" (art.º 125.º do CPP (4) .
Apesar da formulação desta norma legal parecer tautológica, dela podemos retirar que, por um
lado, são permitidos outros meios de prova que não apenas os configurados na lei, por outro,
aqueles que aí estão previstos só se tornarão proibidos se forem obtidos por meios
expressamente excluídos, designadamente (mas não só), por tortura, coacção ou, em geral,
ofensa da integridade física ou moral das pessoas (art.º 126.º).
Um dos meios de prova configurados no CPP é a reconstituição dos factos, pois «Quando
houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma, é
admissível a sua reconstituição. Esta consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das
condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de
realização do mesmo» (art.º 150.º, n.º 1)».
E a lei dispõe sobre o procedimento a adoptar nos seguintes termos: «O despacho que ordenar
a reconstituição do facto deve conter uma indicação sucinta do seu objecto, do dia, hora e local
em que ocorrerão as diligências e da forma da sua efectivação, eventualmente com recurso a
meios áudio-visuais. No mesmo despacho pode ser designado perito para execução de
operações determinadas» (art.º 150.º, n.º 2).
Da reconstituição do facto deve ser lavrado um auto, pois esse é o instrumento destinado a
fazer fé quanto aos termos em que se desenrolaram os actos processuais (art.º 99.º), mas o
mesmo pode ser parcialmente substituído ou completado por documentação audiovisual ou por
outra adequada, como a fotográfica, tal como resulta do citado art.º 150.º, n.º 2.
A reconstituição do facto, assim, é um meio de prova permitido, a valorar «segundo as regras
da experiência e a livre convicção da entidade competente» (art.º 127º do CPP).
E nada impede que seja um meio de prova que pode ser levado à audiência, pois nesta «o
tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo
conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa»
(art.º 340.º, n.º 1).
Como já decidiu este Supremo Tribunal de Justiça (Ac. de 05-01-2005, proc. 3276-04, relator
Conselheiro Henriques Gaspar) «Pela sua própria configuração e natureza - reprodução, tão
fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto - a
reconstituição do facto, embora não imponha nem dependa da intervenção do arguido, também
a não exclui, sempre que este se disponha a participar na reconstituição, e tal participação não
tenha sido determinada por qualquer forma de condicionamento ou perturbação da vontade,
seja por meio de coação física ou psicológica, que se possa enquadrar nas fórmulas referidas
como métodos proibidos enunciados no artigo 126º do CPP.»
A colaboração do arguido na reconstituição do facto, porém, suscita um problema de
compatibilização com a prova por declarações. É que o arguido no decurso da reconstituição
do facto poderá fornecer algumas indicações verbais e, por isso, torna-se necessário saber se a
prova assim adquirida se engloba nos actos de inquérito ou instrução cuja leitura, em princípio,
não é permitida na audiência, por conterem declarações de arguido (art.º 356.º, n.º 1-b).
O arguido tem direito ao silêncio, sem que o mesmo o possa desfavorecer (art.ºs 61.º-c e 343.º,
n.º 1) e tem direito a que não sejam lidas as suas declarações anteriores, mesmo que prestadas
perante juiz, salvo se nisso consentir ou se, querendo prestar declarações, seja necessário
reavivar-lhe a memória ou confrontá-lo com contradições (art.º 356.º, n.ºs 3, 4 e 6).
Ora, sobre a compatibilidade das provas por reconstituição e das que contêm declarações do
arguido pronunciou-se não só o referido Acórdão do STJ, mas antes dele já o fizera, por
exemplo, o de 25 de Março de 2004, proc. 248/04-5, relator Conselheiro Rodrigues da Costa,
este com o seguinte sumário:
1- As declarações prestadas em sede de inquérito e a reconstituição dos factos são diligências
diferentes, embora possam ser complementares: nas declarações, é o discurso do declarante, de
teor eminentemente verbal e até oral, embora reduzido a escrito, seguindo um encadeamento
de perguntas e respostas, que está em foco e é valorado, e nele o declarante, sendo o arguido,
diz sobretudo o que fez, explica o modo de execução e as circunstâncias do acto; na
reconstituição dos factos, é o modus faciendi que está em causa, e nele a pessoa que procede à
reconstituição mostra como fez, refazendo no próprio local todos os passos da sua acção (A lei
diz: reprodução tão fiel quanto possível das condições em que se afirma ou se supõe ter
ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo).
2- Trata-se, portanto, de uma revivescência o mais «ao natural» possível de uma situação. E, se
esta revivescência de uma forma geral não prescinde de palavras, estas não constituem o ponto
crucial da reconstituição, visto que a linguagem gestual e corporal assume aqui uma primacial
relevância.
3- Ao passo que não há declarações sem palavras e, mais especificamente, sem discurso
verbal, já se admite que uma reconstituição possa prescindir deles. A reconstituição é reduzida
a auto - é certo -, mas esse auto não é um auto de declarações, não obedece à lógica deste, nem
a ele se reconduz. O que lá fica escrito não é o produto das declarações; é a tradução para
escrito de uma revivescência do que foi feito e que consistiu, sobretudo, numa reprodução do
acto que teve lugar no passado.
4- Daí que a reconstituição seja dirigida à obtenção de uma mais perfeita inteligibilidade do
que aconteceu - inteligibilidade em acto, que não propriamente em palavras. E daí que só
quem viveu o acontecimento o possa reconstituir de uma maneira inconfundível.
5- Não tendo as declarações prestadas pelo recorrente no inquérito e na instrução, na qualidade
de arguido, sido levadas em conta e tendo ele optado pelo silêncio na audiência de julgamento,
sendo certo que este não pode desfavorecê-lo, nos termos do art. 343.º n.º 1 do CPP, foram
todavia considerados os outros meios de prova, entre os quais o auto de reconstituição.
6- Este, não sendo um auto de declarações, mas um registo objectivo da forma como o acto foi
reconstituído e pôde ser observado por quem lá estava (os órgãos de polícia criminal, os
demais intervenientes) não foi valorado em si mesmo ou de forma isolada, mas em conexão
com outros elementos objectivos, com outros dados constatáveis por outras pessoas, com
outros elementos conjugados com ele e permitindo assim uma leitura a outro nível, não
exactamente recondutível ao auto em si.
Por sua vez, o referido acórdão deste STJ de 05-01-2005 afirmou que «A reconstituição o
facto, como meio de prova tipicamente previsto, uma vez realizada no respeito dos
pressupostos e procedimentos a que está vinculada, autonomiza-se das contribuições
individuais de quem tenha participado e das informações e declarações que tenham co-
determinado os termos e o resultado da reconstituição. As declarações (rectius, as
informações) prévias ou contemporâneas que tenham possibilitado ou contribuído para recriar
as condições em que se supõe ter ocorrido o facto, diluem-se nos próprios termos da
reconstituição, confundindo-se nos seus resultados e no modo como o meio de prova for
processualmente adquirido (...) O privilégio contra a auto-incriminação significa que o arguido
não pode ser obrigado, nem deve ser condicionado a contribuir para a sua própria
incriminação, isto é, tem o direito a não ceder ou fornecer informações ou elementos (v. g.,
documentais) que o desfavoreçam, ou a não prestar declarações, sem que do silêncio possam
resultar quaisquer consequências negativas ou ilações desfavoráveis no plano da valoração
probatória (cfr., v. g., acórdão de 3 de Maio de 2001, do Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem, no caso J. B. c. Suíça) (...) Sendo, porém, este o conteúdo do direito, estão situadas
fora do seu círculo de protecção as contribuições probatórias, sequenciais e autónomas, que o
arguido tenha disponibilizado ou permitido, ou que informações prestadas tenham permitido
adquirir, possibilitando a identificação e a correspondente aquisição probatória, ou a realização
e a prática e actos processuais com formato e dimensão própria na enumeração dos meios de
prova, como é a reconstituição do facto.»
III_B
Convém precisar um conceito que está implícito nestes Acórdãos do STJ e que assume
particular relevo no caso dos autos. É que as contribuições verbais do arguido que se têm de
considerar diluídas nos termos da reconstituição são só as que se mostrarem indispensáveis à
compreensão dos actos que o arguido pretende reconstituir.
Assim, tudo o mais que na altura da reconstituição o arguido tenha adiantado e que esteja para
além do âmbito intrínseco da diligência, designadamente porque lhe foi perguntado, excede o
âmbito probatório do meio de prova em causa e tem de merecer o mesmo tratamento das
"conversas informais", que, como refere o mesmo Acórdão, «em rigor processual, não existem
(cfr., v. g., os acórdãos deste Supremo Tribunal de 30/10/2001, proc. 2630/01; de 3/10/20º2,
proc. 2804/02 e de 19/7/2003, proc. 615/03; na doutrina, DAMIÃO DA CUNHA, "O Regime
Processual de Leitura de Declarações na Audiência de Julgamento (art.ºs. 356º e 357º do
CPP)", in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 7,Fasc. 3º, Julho-Setembro de 1997, p.
403 ss, desig. 422-433).»
III_C
Outra questão é a de saber se, no caso de co-autoria, a reconstituição em que colabora um dos
arguidos pode ser usado como meio de prova válido contra outro arguido que ficou alheio a
essa diligência.
Estamos aqui perante problema similar ao do valor probatório das declarações de co-arguido.
E sobre tal assunto, este STJ tem discorrido assim, conforme citação do Acórdão de 29 de
Janeiro de 2004, proc. 4247/05-5, relator Conselheiro Carmona da Mota:
«Se bem que o depoimento de um co-arguido não constitua, no direito processual penal
português, «uma prova proibida no sentido do art. 126.º do CPP» (Teresa Beleza, Revista do
Ministério Público, n.º 74, ps. 45/48), a verdade é que a sua «diminuída credibilidade» (idem,
ps. 48/49), a «impossibilidade de depoimento sob juramento do arguido no direito português»
(idem, ps. 49/59), o «direito do arguido ao silêncio» (idem, ps. 50/51), a «exigência legal de
coerência de todas as confissões» (idem, ps. 51/57), a «impossibilidade de submissão ao
contraditório em caso de depoimento de co-arguidos» (idem, ps. 57/58) e a «impossibilidade
de uma cross-examination em caso de depoimento de co-arguidos» têm conduzido a doutrina à
conclusão de que:
«O depoimento de co-arguido - não sendo, em abstracto, uma prova proibida, é no entanto um
meio de prova particularmente frágil, que não deve ser considerado suficiente para basear uma
pronúncia e, muito menos, para sustentar uma condenação»;
«Não sendo esse depoimento (...) corroborado por outras provas, a sua credibilidade é nula»;
«A sua valoração seria ilegal e inconstitucional» (Teresa Beleza, Revista do Ministério
Público, n.º 74, ps. 58/59);
«A regra da corroboração (5) traduz de modo particular uma exigência acrescida de
fundamentação, devendo a sua falta merecer a censura de uma fundamentação insuficiente»
(António Alberto Medina de Seiça, O Conhecimento Probatório do Co-Arguido, Coimbra
Editora, 1999, ps. 205 e ss.)(6) .
De igual modo, a reconstituição dos factos feita com a colaboração de um arguido não é uma
prova proibida para averiguar da responsabilidade de outro co-arguido que nela não tenha
colaborado, mas não sendo corroborada por outras provas, a sua credibilidade é nula quanto a
este.
III_D
Temos agora elementos para decidir o recurso interlocutório da arguida BB.
Nenhum obstáculo legal impede ou impedia o visionamento na audiência de julgamento da
prova por reconstituição dos factos, apesar do arguido AA, que nela colaborou activamente, ter
usado do direito ao silêncio.
Trata-se de prova autónoma, que contém contributos do arguido, mas que não se confunde
com a prova por declarações. Por outro lado, nenhum elemento nos permite duvidar que o
arguido AA participou voluntariamente nessa reconstituição e que não foi sujeito a qualquer
coacção ou ofensa da integridade física ou moral, pois para além de aí se encontrar o
Procurador da República da comarca, foi assistido no acto pela sua defensora, que estava
presente.
Assim, tal meio de prova não era proibido por lei e tinha virtualidade para ser exibido na
audiência de julgamento através da sua gravação por meio audiovisual, pois, recorde-se, a lei
permite que a documentação do acto se faça dessa maneira. E anota-se que a gravação existe
como complemento de um auto escrito da diligência, no qual figura também uma reportagem
fotográfica, tudo a constar do I volume, fls. 273 a 294.
E como meio de prova legal e admissível podia ter sido objecto de livre apreciação pelos
julgadores, como foi (art.º 127.º).
Todavia, o visionamento do vídeo da reconstituição revela que o arguido AA, a pretexto da
reconstituição dos factos, foi sujeito também a perguntas várias, ao jeito de interrogatório, às
quais foi respondendo e, portanto, forneceu muitos elementos que não podem deixar de
considerar-se fora das meras indicações estritamente necessárias ao âmbito da reconstituição.
Tais declarações, espúrias à diligência de reconstituição, não podiam valer como prova no
julgamento, pois, sendo produzidas sem o formalismo legal necessário, não passaram de
"conversas informais» sem qualquer valor probatório. Assim, deviam ter sido expurgadas do
vídeo antes da sua exibição em julgamento.
O Tribunal não entendeu desse modo. Mas não estamos perante uma nulidade do julgamento,
já que não devemos confundir a nulidade dos actos a que se reportam os art.ºs 118.º a 123.º,
que obrigam à repetição do acto nulo (se não estiver já sanado) e ainda de todos os que
estiverem subsequentemente afectados, com o uso de meios proibidos de prova, pois aqui a
respectiva nulidade determina apenas que a prova não possa ser utilizada (art.º 126.º, n.º 1).
Importa, portanto, saber se foi feito uso de um meio proibido de prova.
Sucede que as «conversas informais» que se podem ouvir na reprodução em vídeo da
reconstituição de 25.09.2004 não serviram de fundamento ao tribunal de 1ª instância para a
condenação dos arguidos, pois não são mencionadas em qualquer parte do acórdão recorrido.
Nota-se até que se tivessem constituído um dos fundamentos da decisão, provavelmente não
haveria condenação por crime de homicídio voluntário, pois o arguido AA apenas admitiu a
prática de ofensas à integridade física.
Diz o Acórdão recorrido em determinado passo: «No mais, nomeadamente quanto à gravação
em vídeo de uma daquelas reconstituições, não necessitou o Tribunal, e para o efeito que ora
nos ocupa, de dela se servir. É que o auto de fls. 273 ss, para além de reproduzir, com patente
aptidão para o fim a que se destina, a reconstituição do facto que ilustra, ficou justamente
circunscrito às características modelares desse meio de prova, insusceptível de deriva em
amálgama ou sequer confusão com qualquer outro meio de prova.»
Assim, não se fez uso de um meio proibido de prova, pois o tribunal, após o visionamento da
cassete vídeo, aproveitou apenas o que já estava documentado em auto escrito, isto é, os actos
de reconstituição do facto e o significado que na altura lhe deu o arguido AA, através de
indicações que se diluíram na diligência, sendo que a participação do arguido foi voluntária e
fora de qualquer constrangimento físico ou psicológico.
Mas uma outra questão se coloca. É que sempre que num processo são disponibilizados meios
proibidos de prova põe-se o problema de saber se, uma vez anulados ou invalidados, não
ocorrem outros efeitos consequenciais, «o chamado "efeito à distância", "Fernwirkung des
Beweisverbot", ou, na formulação americana, "fruit of the poisonous tree".» (citado no acórdão
3276-04, já referido).
Esses "frutos da árvore envenenada" são, aliás, referidos pela recorrente, pois numa sua
conclusão diz que «...mesmo que não valha como prova, foi visionado o filme, os Jurados
viram-no, e a ausência de formação jurídica, poderá levá-los a ignorar as regras, que, aliás,
desconhecem, e concluir por uma culpa quando é completa a ausência de prova, e quando
outra decisão que não a absolvição, jamais teria lugar.»
Não sabemos nem nunca poderemos saber se algum dos jurados ou juízes foi influenciado, no
seu íntimo, pelas "conversas informais" do arguido, pois trata-se de uma realidade não
mensurável directamente.
Todavia, o que nos importa neste recurso é o aspecto objectivo e não o subjectivo. E a
convicção do conjunto dos julgadores, juízes e jurados, está objectivada no texto da sentença e,
por este, podemos certificar-nos que não houve qualquer influência da tal "árvore
envenenada". Em qualquer caso, este Supremo Tribunal de Justiça tem os poderes necessários
para intervir, mesmo no domínio da matéria de facto, pois a fundamentação de facto foi
extensa e exaustiva, o que facilita a tarefa de averiguar em que se baseou a convicção dos
julgadores
Assim, o recurso intercalar da arguida BB improcede, pois a sua pretensão era a de que fosse
declarado nulo o despacho do tribunal de Júri que permitiu o visionamento em vídeo na
audiência da reconstituição dos factos e não ocorre tal nulidade.
Todavia, a seu tempo veremos que influência teve a reconstituição dos factos como meio de
prova para a condenação da recorrente e quais as consequências que daí se têm de retirar, já
que, como dissemos anteriormente, não sendo corroborada por outras provas, a sua
credibilidade é nula quanto a ela. E essa apreciação poderá ser decisiva na decisão final deste
recurso, não como nulidade da sentença como pretende a recorrente, mas por se vir a atribuir
uma nova configuração aos factos provados.
IV
IV_A
Como resulta dos factos provados (e é do domínio público) nunca foi encontrado ou visto o
corpo da menor CC, nem mesmo parcialmente.
Todavia, os dois arguidos foram condenados por crimes que têm como elemento típico e
necessário a morte da vítima.
Este é motivo para reflexão.
Não encontrámos nenhum caso semelhante que tenha sido julgado nos tribunais portugueses.
A doutrina e a jurisprudência portuguesa são parcos em informação sobre esta problemática, o
que não sucede no Brasil, onde o tema é largamente debatido e até tem solução legal,
possivelmente por aí haver uma criminalidade mais violenta.
O Código de Processo Penal do Brasil dispõe no art.º 158.º que «Quando a infracção deixar
vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, directo ou indirecto, não podendo
supri-lo a confissão do acusado», mas o art.º 167.º refere que «Não sendo possível o exame de
corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe
a falta».
UU, nos "Comentários ao Código Penal", V, 63-65, reflectiu sobre este tema assim:
«Prova da materialidade do homicídio. O homicídio é, tipicamente, um crime material: é
inconcebível sem que se verifique o evento morte de um homem. Como em geral nos crimes
que deixam vestígios, é base essencial da acusação, na espécie, o exame de corpo de delito,
isto é, a constatação da materialidade do crime. Nem mesmo a confissão do acusado, sem
outro elemento de convicção, supre a falta do corpus delicti pois o confitente pode ter-se
equivocado ou ser um mórbido auto-acusador, ou ter sido coagido a declarar-se autor do
crime.(7) * O exame de corpo de delito pode ser directo (mediante a inspecção ocular e
autópsia do cadáver, para averiguação da causa mortis, meios que a produziram, etc.) ou
indirecto (por meio de testemunhas, quando os vestígio do crime não possam ser pericialmente
verificados). Será possível o êxito de um processo penal por crime de homicídio sem que
apareça o cadáver da vítima? Dizia Carrara: "Não se pode afirmar que existe crime de
homicídio, enquanto não esteja averiguado que um homem tenha sida morto por obra de outro.
E não se pode dizer que um homem haja morrido, enquanto não se encontra o seu cadáver ou,
pelo menos, os restos deste, devidamente reconhecidos." Tal critério é demasiadamente
rigoroso, e poderia, na sua irrestrição, conduzir à impunidade de manifestos autores de
homicídio. Haja vista o caso citado por IRURETA GOYENA (8): dois indivíduos, dentro de
uma barca no rio Uruguai, foram vistos a lutar renhidamente, tendo sido um deles atirado pelo
outro à correnteza, para não mais aparecer. Foram baldadas as pesquisas para o encontro do
cadáver. Ora, se, não obstante a falta do cadáver, as circunstâncias eram de molde a excluir
outra hipótese que não fosse a da morte da vítima, seria intolerável deixar-se de reconhecer,
em tal caso, o crime de homicídio. Faltava a certeza física, mas havia a absoluta certeza moral
da existência do homicídio. Conforme justamente observa GOYENA, não se deve confundir o
"corpo de delito" com o "corpo da vítima", e para a comprovação do primeiro basta a certeza
moral sobre a ocorrência do evento constitutivo do crime. Somente enquanto seja possível
formular-se dúvida, ainda que mínima, em torno à morte da desaparecida vítima de uma
violência, que se deve afastar a possibilidade de imputação do homicídio. Eloquente
advertência em tal sentido foi um filme titulado Fúria, exibido, há alguns anos, nos cinemas
brasileiros. O seu episódio central era um crime de multidão contra um indivíduo suspeito de
kidnapping e que fora recolhido a uma cadeia pública. Os sediciosos atearam fogo à cadeia,
que ficou reduzida a escombros. Entre estes não foi encontrado o cadáver do prisioneiro, mas
apenas um anel reconhecido como de seu uso. Deduziu-se, então, que o corpo do desgraçado
fora totalmente consumido pelo fogo e, embora não estivesse excluída a hipótese de ter o
prisioneiro conseguido salvar-se, fugindo, sem ser visto, por uma brecha que se abrira na
parede de sua cela, os incendiários foram processados, e estavam a pique de ser condenados,
quando, em plena sala de julgamento, surgiu a pseudovítima: a hipótese de sua fuga e
salvamento, até então rejeitada, era a única verdadeira.
IV_B
A criminalidade moderna e os meios que hoje existem para fazer desaparecer totalmente os
vestígios de um cadáver impõem que não se exija um exame directo ao corpo da vítima no
caso de crime que tenha como resultado ou como pressuposto a morte de outrem. Na verdade,
a impossibilidade de proceder a exame directo tornaria impune certos actos de enorme
gravidade, quer patrocinada pela alta criminalidade, quer pelo criminoso comum que, por
engenho ou sorte ocasional, conseguiu desfazer-se de todos os vestígios dos seus actos
hediondos.
É evidente que o risco de condenar alguém por homicídio sem a presença física do cadáver ou
de algum vestígio material que possa seguramente certificar a morte da vítima (por exemplo, o
aparecimento de um órgão vital) coloca na primeira linha a hipótese do erro judiciário.
O erro judiciário pode sempre vir a ser corrigido, pois a lei prevê a existência de um processo
de revisão de sentença transitada em julgado, que ocorre, por exemplo, face à descoberta de
novas provas. Mas a reparação do mal pode revelar-se tardia e totalmente insatisfatória.
Todavia, o erro judiciário existe em qualquer caso penal e não é um exclusivo dos crimes de
homicídio, pelo que não faz sentido não condenar o agente por homicídio só porque não foi
examinado directamente o cadáver, como não o faz não condenar alguém por crime de
IV_C
No caso em apreço, uma testemunha viu a menor CC regressar a casa, já muito perto e à hora
estabelecida para o crime; a arguida comunicou tardiamente às entidades policiais o
desaparecimento nunca explicado da menor; apareceram vestígios hemáticos no chão, nas
paredes, no balde e esfregona, na sola de umas sapatilhas que estavam na sala e no interior de
uma gaveta da arca frigorífica; o arguido AA colaborou numa reconstituição dos factos na qual
indicou como veio a falecer a menor; colaborou ainda noutra reconstituição de
esquartejamento da menor e por várias vezes referiu à PJ locais onde o corpo poderia ser
encontrado; para além do depoimento de quem ouviu os arguidos dizer que mataram (ou que o
AA acabou por matar) a menor. Os referidos vestígios, segundo perícias efectuadas, são de
sangue humano e de sangue humano e animal (cfr. fls. 235), e embora fossem insuficientes
para averiguar a quem pertencem através do ADN (fls. 1780 ss), são reveladores de que na sala
da casa onde vivia a CC e para onde ela se dirigia aconteceu algo terrível, algo que deu origem
a que houvesse sangue humano no chão e nas paredes, que foram limpos com uma esfregona e
balde, sendo que o sangue que estava na esfregona se encontrava na haste, revelador que quem
utilizou a esfregona tinha por sua vez as mãos sujas de sangue.
Toda a prova aponta para a ocorrência da morte da menor CC e é incompatível com qualquer
outra hipótese factual verosímil, que nunca ninguém, nem os próprios arguidos, tentou
conceber. Na verdade, como explicar a profusão de vestígios hemáticos humanos na casa da
CC, mesmo no interior traseiro de uma gaveta da arca frigorífica, e simultaneamente o seu
desaparecimento?
Por isso, face ao que já explicámos sobre o assunto, não será o facto de não ter sido possível o
exame directo do cadáver que impedirá a condenação por crime em que o resultado típico é a
morte da vítima ou por crime que tem como pressuposto essa morte.
Resta notar que nem os próprios recorrentes, nas conclusões dos seus recursos, colocam a
hipótese da CC não estar morta.
O que parece significativo.
V_A
Como se lê no acórdão recorrido, «"Percorrida" a prova testemunhal, verificamos que não
existe prova directa dos factos, nomeadamente por alguém ter visto cometer o crime. Acresce
que nem sequer existe prova directa do homicídio, pois que não apareceu o corpo morto da
menor.»
Acresce, diremos nós, que ambos os arguidos usaram do direito ao silêncio e que não podem
ser valoradas as suas declarações em inquérito.
A prova do homicídio resultou, por isso, da avaliação que o Tribunal de Júri fez sobre um
conjunto de provas, de acordo com o princípio da livre apreciação das provas, o qual postula
que "salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da
experiência e a livre convicção da entidade competente" (art.º 127.º).
A livre apreciação da prova significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que
predeterminem ou hierarquizem o valor dos diversos meios de prova (veja-se Figueiredo Dias,
Assim, ao contrário do que sucede com o acórdão final do tribunal colectivo, de que se pode
recorrer quanto à matéria de facto para o tribunal da relação com apelo às provas
documentadas em suporte áudio ou vídeo, quando intervém o tribunal de Júri o recurso dirige-
se directamente ao STJ e visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem prejuízo de
se invocar algum dos vícios a que aludem os n.ºs 2 e 3 do art.º 410.º, "desde que o vício (no
caso do n.º 2) resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da
experiência comum".
Entendeu o legislador que a intervenção do Júri dá maiores garantias de fidedignidade na
fixação da matéria de facto, pelo que restringiu o direito ao recurso nessa parte.
Recorde-se que no direito anglo-saxónico não há recurso da matéria de facto quando o
julgamento se processa com Júri. As garantias de defesa provêm da escolha dos jurados e do
comprometimento da sociedade que aí se faz representar por estes. No nosso direito não é
exactamente assim, mas, ao se restringir o direito de recurso em matéria de facto, o legislador
quis prestigiar a intervenção do Júri, sem afectar de forma inadmissível os direitos
constitucionais de defesa.
Daí que, embora a lei determine que as declarações prestadas oralmente na audiência devam
ser documentadas na acta [quando o tribunal puder dispor de meios estenotípicos, ou
estenográficos, ou de outros meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral
daquelas, bem como nos casos em que a lei expressamente o impuser (art.º 363.º)], a falta
dessa documentação, nos casos em que há audiência perante tribunal de Júri, constitui mera
irregularidade processual que não afecta os direitos de defesa, pois não lhe é permitida a
impugnação dos factos provados e não provados mediante uma confrontação pela
documentação.
A documentação em acta da audiência perante o Júri servirá para recordar ao tribunal, no
momento da decisão da 1ª instância, o que foi dito pelas testemunhas, servirá ainda para se
aquilatar se foi cometida ou não cometida alguma nulidade de julgamento, mas a sua falta não
"nega à Arguida o direito constitucional de recorrer de facto - art.º 32°-1 da C.R.P.", nem
determina a repetição do julgamento como alega a recorrente na conclusão 7ª do seu recurso,
pois o recurso da matéria de facto não passa no caso de julgamento com Júri pela reapreciação
da documentação.
A irregularidade da falta de documentação em acta das declarações prestadas no julgamento
devia ter sido arguida no acto e, não o tendo sido, nem constituindo qualquer diminuição dos
direitos de defesa, considera-se sanada (art.º 123.º).
V_B
Padecerá, então, a decisão recorrida de algum dos vícios a que se reporta o art.º 410.º, n.º 2,
como invoca a recorrente?
A condenação da recorrente BB pelo crime de homicídio não resultou de prova directa, como
já dissemos.
Então em que se baseou o tribunal de Júri para estabelecer o facto fulcral do homicídio, que
está contido na al. ab) dos factos provados: a dada altura, por motivo não concretamente
apurado, ambos os arguidos começaram, em conjunto, a dar sucessivas pancadas na cabeça da
menor CC, levando-a a embater com a cabeça na esquina da parede, sendo visível que
sangrava, da boca, nariz e têmpora, mercê dos embates na parede, que causaram também a
queda da menor e a sua morte, cessando então a actividade dos arguidos?
A esta questão o acórdão recorrido disse o seguinte: «A matéria dada como provada nas
alíneas aa), ab), ac), ad), ae), af), ag), ah) ai), aj) al), am), an), ap), aah), aai), aaj) e aam) teve
por base o depoimento das testemunhas AA3, CC3 , CC4 , DD, CC8, II, DD1 , MM e BB1, os
autos de reconstituição e os autos de busca e apreensão, bem como a prova pericial
subsequente, tudo interpretado à luz das regras da experiência.»
Ora, as reconstituições feitas pelo co-arguido AA têm uma relevância nula no que respeita à
recorrente, se desacompanhadas de outros elementos que corroborem a comparticipação dela,
como já foi referido e explicado anteriormente (ponto III_C).
Existirá essa corroboração?
Os autos de busca e apreensão, bem como a prova pericial subsequente, apenas servem para
confirmar, ainda que indirectamente (como também já esclarecemos no ponto IV), a morte da
CC, mas não a comparticipação da recorrente num eventual homicídio, pois referem-se a
vestígios hemáticos e orgânicos que, apesar dos muitos e dedicados esforços da PJ, nada
adiantaram quanto à autoria.
E as referidas testemunhas, segundo a fundamentação do acórdão, o que de mais importante
disseram foi o seguinte:
- a testemunha AA3, pelas 8 h 30 m / 8 h 40 m viu a CC ir em direcção a casa, com um saco de
compras;
- os inspectores CC3 e CC4 estiveram presentes na reconstituição dos factos e descreveram os
actos praticados pelo arguido AA nessa diligência;
- as testemunhas DD, inspector da PJ, e CC8 (médico-legista) estiveram presentes na
reconstituição do esquartejamento e confirmaram o modo como o arguido aí procedeu;
- a testemunha II referiu que a arguida BB lhe disse que "tinha dado uma chapada à CC e o AA
acabou de a matar";
- a testemunha DD1 referiu que, numa altura em que se encontrou com o arguido AA nas
instalações da Polícia Judiciária, perguntou-lhe "afinal o que tinha acontecido" e o AA
respondeu que "estava a ter relações com a minha irmã" e que "tinham morto a miúda", sendo
que então a testemunha já não quis saber mais nada;
- a testemunha MM confirmou que a arguida BB estava em casa por volta das 21 h 30 m/ 22 h
e disse que não sabia da CC;
- a testemunha BB1 disse que a BB lhe referiu como é que a CC estava vestida e calçada
quando desapareceu. Mais tarde, a testemunha deparou com os sapatos que a BB tinha dito que
a CC tinha calçados e confrontou a BB com isso, tendo ela respondido que então a CC devia
ter trocado de sapatos e que tinha levado as chinelas. Porém, posteriormente, a testemunha
encontrou uma das chinelas debaixo do sofá da sala e a outra chinela no quarto. Procurou o
calçado da CC e encontrou em casa todos os sapatos, sandálias e chinelas que ela usava nesse
Verão.
Isto é, no essencial a prova testemunhal relevante para formar a convicção do tribunal ou
confirmou as reconstituições feitas pelo co-arguido AA ou contribuiu com um testemunho "de
ouvir dizer", já que os depoimentos do AA3 e da BB1 têm alguma importância no que respeita
à morte da CC e ao conhecimento que a recorrente dela necessariamente teve, mas não quanto
à sua eventual comparticipação nos actos de violência que a antecederam.
Os depoimentos que confirmam o que se passou na reconstituição validam apenas o que se
passou nessa diligência, mas não corroboram uma eventual comparticipação da recorrente na
produção da morte da CC.
Os depoimentos de ouvir dizer têm a validade que o acórdão recorrido refere e estão sujeitos a
livre apreciação pelo tribunal, mas o seu valor é sempre diminuto e indirecto, para mais
quando se sabe que as duas testemunhas que ouviram os ora arguidos pronunciar-se sobre a
morte da CC foram, por sua vez, constituídos arguidos nos autos. Assim, os depoimentos de
ouvir dizer mostram-se insuficientes para corroborar as reconstituições do co-arguido no que
toca a uma eventual comparticipação da ora recorrente na morte da sua filha.
O acórdão recorrido ainda invoca que «Para além dos autos de reconstituição e da prova
testemunhal e pericial com eles relacionada e que os corrobora, é ainda de realçar que várias
das testemunha inquiridas referem a despreocupação da arguida com o "desaparecimento" da
menor, aceitando-o sem desespero ou angústia. Repare-se que a arguida só vai "procurar" a
menor ao café entre as 22h 30m e as 23h (de acordo com a testemunha NN), mais de duas
horas depois da CC ali ter estado, não contacta mais ninguém perguntando sobre o paradeiro
da CC e também não é por sua iniciativa que é contactada a GNR. De realçar ainda a compra
pela arguida de petróleo e de um esfregão de aço (fls. 876), com que lavou a casa no dia 18 de
Setembro, sendo que as testemunhas CC3 e CC4 referiram que a limpeza do chão e paredes da
casa contrastava com o estado de sujidade do resto da casa, nomeadamente no que se refere à
louça e à roupa - ora este tipo de limpeza, nestas circunstâncias, só é compatível com o desejo
de eliminar indícios de sangue que pudessem manter-se na casa.»
Todavia, esta prova, conjugada com a restante, tem força suficiente para sustentar que a
recorrente estava em casa quando a sua filha morreu na sequência de agressões feitas pelo co-
arguido e que tudo fez para apagar os vestígios dessa morte, ajudando o seu irmão a
esquartejar o cadáver e a posteriormente o ocultar.
Na verdade, ela estava em casa, como a própria confirma na participação que fez à GNR de
Portimão pelo desaparecimento da CC (fls. 18).
Também é ponto assente que o irmão agrediu a menor, pois ele próprio se colocou na posição
de agressor no decurso da reconstituição a que voluntariamente se sujeitou, e que por causa
dessas agressões a menor veio a morrer, até porque ficaram vestígios hemáticos humanos na
casa e em objectos (balde, esfregona, ténis) que a recorrente tentou limpar com produtos de
limpeza, enquanto que o seu irmão ia ao café para impedir que o companheiro da recorrente e
o DD1 regressassem tão cedo a casa.
Como confirmado está que houve esquartejamento da menor na casa da recorrente, pois o co-
arguido admitiu esse acto em reconstituição que consta dos autos e há vestígios hemáticos
humanos na parte interior de uma das gavetas da arca frigorífica, onde o corpo, já
desmanchado e colocado em sacos de plástico foi provisoriamente escondido.
Assim, razões de ordem lógica e que se prendem com critérios de experiência comum, levam-
nos a confirmar, como fez o tribunal de Júri, que a recorrente colaborou no esquartejamento e
ocultação do cadáver, tanto mais que esses actos não podiam ser levados a cabo apenas por
uma actividade do co-arguido, sendo forçosa a sua colaboração activa, como única adulta que
na casa acompanhava o seu irmão na altura.
Mas a reconstituição do crime de homicídio não é corroborada por outras provas quanto ao
facto da ora recorrente também ter agredido a sua filha, pois, não havendo confissão nem
testemunhas presenciais, apenas o depoimento por ouvir dizer de uma testemunha com
interesse na decisão da causa (foi constituído arguido nos autos), a quem a recorrente terá
contado que "deu uma estalada na CC e depois o irmão acabou de a matar", as indicações do
co-arguido não são suficientes para a incriminar por esses factos (morte da filha).
Tudo ponderado, verifica-se pela própria leitura da decisão recorrida (factos e respectiva
fundamentação) que o tribunal de Júri valorizou a reconstituição dos factos, em que só
colaborou o co-arguido AA e não a recorrente, como sendo suficiente para incriminar esta
última pela co-autoria nas agressões de que foi vítima a menor CC, de que resultou a morte
desta, apesar de não existir uma só prova que corroborasse esta versão.
E a ausência de corroboração de uma prova pessoal que provém de co-arguido não é suficiente
para a condenação, pelas várias razões já referidas anteriormente.
Isto é, perante duas hipóteses possíveis na fixação dos factos provados, pois a arguida ou
participou com o irmão nas agressões de que resultou a morte da CC, ou limitou-se a assistir às
agressões do seu irmão à menor, o tribunal optou, na sua convicção, pela primeira, escudado
na reconstituição do crime em que só participou o arguido.
Para além do direito a um julgamento justo ("a fair trial"), a condenação da arguida só poderia
ocorrer "para além de qualquer dúvida razoável".
Ao optar por um meio de prova de duvidoso valor, o tribunal de Júri violou, quanto a este
ponto, o "in dubio pro reo", pois valorou-o em prejuízo da recorrente.
Estamos em presença de um erro notório da apreciação da prova quanto a este aspecto (art.º
410.º, n.º 2-c), pois há uma evidente discrepância entre os factos provados em ab), ae), aah),
aai) e aaj) e a respectiva fundamentação.
V_C
Em princípio, a ocorrência de um dos vícios a que se reporta o art.º 410.º, n.º 2, obriga ao
reenvio do processo para novo julgamento, para nova decisão sobre todo o processo ou sobre
pontos de facto concretamente identificadas.
Porém, o reenvio só deve ser ordenado se "não for possível decidir da causa" (cfr. art.º 426.º,
n.º 1).
Não é o caso, pois o Supremo Tribunal de Justiça está habilitado pelos elementos da própria
decisão recorrida, a sanar o erro notório detectado, pois basta expurgar a intervenção da
arguida BB naqueles factos.
E assim, os factos provados ab), ae), aah), aai) e aal) ficarão a constar com a seguinte
redacção:
ab) a dada altura, estando os dois arguidos presentes, por motivo não concretamente apurado, o
arguido AA começou a dar sucessivas pancadas na cabeça da menor CC, levando-a a embater
com a cabeça na esquina da parede, sendo visível que sangrava, da boca, nariz e têmpora,
mercê dos embates na parede, que causaram também a queda da menor e a sua morte,
cessando então a sua actividade;
ae) assim, logo decidiram que teriam de fazer com que não fosse verificada na casa a
existência de quaisquer sinais do que o AA havia acabado de praticar, que o corpo da menor
nunca fosse encontrado e que, de preferência, fosse criada a convicção em todos que a menor
teria sido levada por terceiros;
aai) as actividades atrás descritas foram levadas a cabo pelos arguidos em concertação de
esforços e intenções, com excepção do facto referido em ab) que foi só praticado pelo AA, de
forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo serem aquelas condutas punidas pela lei;
aal) não obstando a tal a circunstância de a menor ser sobrinha do arguido, devendo pelo
mesmo ser defendida e não vítima;
No facto aaj) será retirada também a participação da recorrente, mas ainda ficará sujeito a nova
reapreciação quando se decidir o recurso do recorrente AA. Só então se lhe dará a redacção
final.
Será acrescentado um novo facto não provado do seguinte teor: (não ficou provado que) «a
arguida BB tenha dado pancadas na sua filha CC no decurso dos factos provados em ab)»
V_D
Em suma, atento o princípio "in dubio pro reo", a recorrente será absolvida do crime de
homicídio qualificado que lhe era imputado.
Quanto ao crime de ocultação de cadáver, p.p. pelo art.º 254.º, n.º 1, al. a), do C. Penal, os
factos provados integram todos os elementos objectivos e subjectivos, dando-se por
reproduzidas aqui as considerações tecidas na 1ª instância.
A pena a aplicada na 1ª instância por este crime (21 meses de prisão) será reapreciada no
momento em que decidirmos o recurso do Ministério Público, que pediu uma agravação.
Quanto à prática de um eventual crime de favorecimento pessoal [a ocultação de cadáver teve
por finalidade impedir a reacção criminal contra o seu irmão (ponto aam) da matéria de facto)]
não é o mesmo punível, pois a recorrente agiu em benefício de parente em segundo grau (art.º
367.º, n.º 5-b, do CP).
Termos em que o recurso principal da arguida BB merece provimento parcial.
VI
RECURSO DO ARGUIDO AA:
VI_A
Nulidades do acórdão recorrido:
O recorrente invoca nulidades do acórdão recorrido que percorreremos rapidamente, pois é
manifesta a sua falta de razão.
Diz ele que a "reconstituição" de 25/09/2005 está ferida de nulidade, não podendo ser utilizada
por violação do disposto no citado art.º 126º do CPP, pois o arguido esteve votado a um
desgaste físico e psicológico, impedido que esteve de descansar por mais de 80 horas.
A verdade, porém, que esse "desgaste físico e psicológico" não está documentado nos autos
(nem evidentemente alguma vez estaria). Mas, mais importante, é que a defensora do ora
recorrente esteve presente no acto e não suscitou a questão, o que afasta qualquer dúvida sobre
a voluntariedade da conduta do recorrente, que livremente quis colaborar então, mas não
VI_B
Erro notório na apreciação da prova?
De tudo o que já dissemos a propósito dos recursos da co-arguida BB, resulta que a prova
decorrente das duas reconstituições em que o recorrente AA livremente colaborou é válida,
ainda que em julgamento tenha usado do direito ao silêncio.
E como prova válida, poderia ter sido livremente apreciada pelo tribunal de Júri, como foi.
Para além dessa prova por reconstituição dos factos, os outros elementos probatórios
recolhidos também já abordados coadjuvam a convicção firme de que o recorrente AA, por
motivos não apurados, agrediu a menor CC, com sucessivas pancadas na cabeça, levando-a a
embater com a cabeça na esquina da parede, sendo visível que sangrava, da boca, nariz e
têmpora, mercê dos embates na parede, que causaram também a queda da menor e a sua morte.
Contudo, é preciso reflectir sobre a intencionalidade da conduta do recorrente.
O acórdão recorrido (mencionando os dois arguidos) diz o seguinte na parte que respeita à
fundamentação de direito: «Resulta dos factos dados como provados que os arguidos, em
conjunto, agindo com vontade livremente determinada e não desconhecendo a punibilidade de
tal conduta, deram sucessivas pancadas na cabeça da menor CC, levando-a a embater com a
cabeça na esquina da parede, sendo visível que sangrava da boca, nariz e têmpora, mercê dos
embates na parede, que causaram também a queda da menor e a sua morte, consequência que
os arguidos previram que resultasse da sua actuação e com que se conformaram, cessando
apenas a sua conduta quando a menor já estava efectivamente morta. Não há qualquer dúvida,
assim, de que os arguidos cometeram em co-autoria um crime de homicídio doloso, ainda que
na vertente de dolo eventual (cfr. o nº 3 do art. 14º do Cód. Penal).»
Ora, já está excluída a comparticipação da arguida nestes factos, mas resta saber quais os
elementos probatórios em que se baseou o tribunal de 1ª instância para concluir que houve
dolo eventual por parte do recorrente.
Recordemos que ficou provado que «a dada altura, por motivo não concretamente apurado, o
arguido AA começou a dar sucessivas pancadas na cabeça da menor CC, levando-a a embater
com a cabeça na esquina da parede, sendo visível que sangrava, da boca, nariz e têmpora,
mercê dos embates na parede, que causaram também a queda da menor e a sua morte,
cessando então a sua actividade».
Por estes factos sabemos que o AA deu pancadas (com as mãos) na cabeça da CC o que a
levou a embater mais do que uma vez ("embates") na esquina da parede, o que, por seu turno,
causou a queda da mesma e a morte.
Mas, se é evidente que houve uma acção voluntária do arguido para agredir a menor na cabeça
(dolo directo nas ofensas à integridade física), não é afirmado que essa acção fosse dirigida
intencionalmente para que a mesma embatesse na esquina da parede e para que caísse no chão,
pois terão sido esses embates ou essa queda que causaram as lesões mortais e não as pancadas
na cabeça. Tanto mais que "levando-a a embater" não é o mesmo que "forçando-a a embater".
Ainda assim, mesmo que as pancadas na cabeça não tenham sido dadas com a intenção de
atirar a menor contra a esquina da parede, esse resultado era necessário, já que as agressões
ocorreram dentro de uma casa e praticadas por um homem adulto contra uma menor de 8 anos
de idade. Por isso, pelas regras de experiência comum, podemos dar como assente que o
recorrente previu que a menor embatesse com a cabeça na parede ou no chão e que daí
pudessem resultar lesões causadoras da morte, pois o embate da cabeça numa superfície dura
pode sempre causar uma lesão no órgão vital que é o cérebro.
Resta saber se o recorrente se conformou com esse resultado (morte), como estabeleceu o
tribunal de Júri (facto aaj), ou se confiou que tal não sucedesse, pois esse ponto ab) da matéria
de facto não permite qualquer ilação a esse respeito.
O ponto aaj) parece resolver essa questão, ao afirmar (ainda com referência aos dois arguidos)
«... bem sabendo que, tendo em conta o local vital em que atingiam o seu corpo (a cabeça)
repetidamente e com violência, levando a que a cabeça da menor embatesse na parede, lhe
poderiam retirar a vida, consequência que aceitaram, não cessando mesmo assim essa sua
actividade.)
Mas estes "factos" contidos no ponto aaj) são conclusivos e, portanto, careciam de uma
fundamentação que não existe. Em que se baseou o tribunal recorrido para afirmar que o
recorrente aceitou que com a sua conduta poderia tirar a vida à menor?
A única prova de que se valeu o tribunal para descrever a acção que conduziu à morte da
menor CC foi a reconstituição do crime levada a efeito em 25 de Setembro de 2004.
Ora, em tal reconstituição não se afigura haver qualquer elemento objectivo ou subjectivo que
tivesse permitido ao tribunal concluir pela conformação do arguido com o evento morte. E se
esse elemento existe, o tribunal teria de fundamentar como a ele chegou.
Nem parece que para aqui devam ser chamadas as regras de experiência comum, tanto mais
que não se apurou qual a motivação do crime. Se tivesse sido provada uma forte motivação,
como constava da pronúncia (cfr. pontos 8 e 9 da matéria de facto não provada), talvez fosse
possível concluir através dessas regras de experiência comum pela existência da intenção de
matar, ainda que a título de dolo eventual.
Mesmo o posterior corte do cadáver e sua ocultação nada nos dizem sobre a intenção de matar,
pois são conhecidos casos em que o agente procedeu do mesmo modo apesar da morte não ter
sido provocada intencionalmente, bastando que nele se instale o pânico.
Por isso, na falta de elementos probatórios sobre se o recorrente se conformou ou não se
conformou com o resultado "morte" da menor CC, o tribunal devia ter optado pela solução
mais favorável ao arguido, atento o princípio "in dubio pro reo".
Há, assim, erro notório na apreciação da prova (art.º 410.º, n.º 2-c), pois o tribunal, só tendo
elementos probatórios quanto ao dolo em relação à conduta inicial e ao evento pretendido
(lesão corporal), mas não os tendo quanto ao resultado mais grave efectivamente ocorrido
(morte da menor), optou quanto a esse resultado final pela hipótese mais desfavorável ao
arguido, com violação do princípio "in dubio pro reo".
VI_C
O reenvio para novo julgamento também não se mostra necessário, pois este Supremo Tribunal
de Justiça tem elementos suficientes para decidir.
E, na sanação desse vício, levando em conta apenas o texto da decisão recorrida e a respectiva
fundamentação quanto à matéria de facto, estabelece-se a redacção final do ponto aaj) do
seguinte modo:
«assim no que se refere à morte da CC, sua sobrinha, o arguido AA utilizou a força e
aproveitou-se de a mesma não poder defender-se (atenta a idade e compleição física), pelo que,
tendo em conta o local em que atingia o seu corpo, repetidamente e com violência, era possível
que a cabeça da menor embatesse na parede e no chão e, assim, lhe viesse a retirar a vida,
como efectivamente aconteceu, resultado esse que previu mas com o qual não se conformou;»
VI_D
Mas, no caso, tendo o arguido agredido a menor com sucessivas pancadas dadas na cabeça,
com força suficiente para a levar a embater com essa parte vital do corpo na esquina da parede
e a cair ao chão, provocou-lhe perigo para a vida, pelo que estamos perante ofensa à
integridade física grave, prevista no art.º 144.º, al. d), do C. Penal.
O crime previsto e punível pelos art.ºs 145.º, n.º 1, al. b) e 144.º do C. Penal, pode ainda ser
qualificado «se as ofensas previstas nos artigos 143º, 144º ou 145º forem produzidas em
circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido
com a pena aplicável ao crime respectivo agravada de um terço nos seus limites mínimo e
máximo» (art.º 146.º, n.º 1). «São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou
perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no nº 2 do artigo 132º» (n.º 2).
Este art.º 132.º reporta-se ao homicídio qualificado e nele o legislador não quis organizar as
circunstâncias qualificativas de uma forma taxativa, antes optou por uma fórmula aberta,
embora cingida a certos parâmetros, que deixa ao aplicador uma margem de ponderação das
circunstâncias, por forma a casuisticamente determinar se este ou aquele facto integra o
conceito legal de homicídio qualificado.
Isso é feito pela afirmação genérica de um especial tipo de culpa, que vem assim descrito no
n.º 1: "Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou
perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos".
Mas aliou-se essa formulação genérica à "chamada técnica dos exemplos-padrão
(«Regelbeispieltechnik» (11), em que a cláusula geral seria constituída por um tipo de culpa
(art.º 132.º, n.º 1) combinado com uma exemplificação não definitiva e facultativa (art.º 132.º
n.º 2)" (12).
Alguns desses exemplos padrão, estão formulados no n.º 2 do art.º 132.º deste modo: «É
susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número
anterior, entre outras, a circunstância de o agente: a) Ser descendente ou ascendente, adoptado
ou adoptante, da vítima; b) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão
de idade, deficiência, doença ou gravidez; c) Empregar tortura ou acto de crueldade para
aumentar o sofrimento da vítima; d) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de
causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo
torpe ou fútil; e) Ser determinado por ódio racial, religioso ou político; f) Ter em vista
preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou assegurar a
impunidade do agente de um crime; g) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas
pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de
perigo comum; h) Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso; i) Agir com frieza de
ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por
mais de vinte e quatro horas;...».
Que estas circunstâncias estão enunciadas a título meramente exemplificativo, é uma
afirmação inequívoca, pois resulta directamente da lei, quando refere que são essas «entre
outras». E, como não podia deixar de ser, é essa a Jurisprudência uniforme deste Supremo
Tribunal (13).
Mas a técnica legislativa resultante da conjugação do n.º 1 com o n.º 2 do art.º 132.º, leva a que
possa ocorrer um homicídio em que se verifica alguma das circunstâncias previstas no n.º 2 e,
contudo, não se trata de um homicídio qualificado, pois, no caso concreto, aquela circunstância
não revela "especial censurabilidade ou perversidade" (n.º 1), como pode suceder o contrário, a
circunstância não estar prevista no n.º 2, mas poder ser substancialmente análoga (14) , e
integrar-se no tipo especial de culpa do n.º 1. (15)
Vem a doutrina entendendo, embora dividida (16), que os exemplos-padrão prendem-se
essencialmente com a questão da culpa, mais do que com a ilicitude, pois ainda que se refiram
a um maior desvalor da conduta (por exemplo, o homicídio cometido na pessoa do pai ou do
filho), não é essa circunstância, por si, que determina a qualificação do crime, antes a especial
censurabilidade ou perversidade do agente, isto é, o especial tipo de culpa (17).
Como se diz no Acórdão deste STJ de 1996/12/11, in proc. n.º 188/97 (www.dgsi.pt), "A
qualificação do crime de homicídio qualificado não é consequência irrevogável da existência
de qualquer das circunstâncias constantes do n.º 2 do artigo 132.º do CP. Essencial, é que, as
circunstâncias em que o agente comete o crime revelem uma especial censurabilidade ou
perversidade, ou seja, uma censurabilidade ou perversidade distintas (pela sua anormal
gravidade) daquelas que, em maior ou menor grau, se revelem na autoria de um homicídio
simples».
Importa precisar o que é a especial censurabilidade ou perversidade.
Permitimo-nos aqui citar, mais uma vez, Teresa Serra (ob. referida, págs. 63 a 65).
«Como se sabe, a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a
concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se
ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No artigo 132.°,
trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de
tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a
uma determinação normal de acordo com os valores...Com a referência à especial
perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido
determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados
pela sociedade. Significa isto pois, um recurso a uma concepção emocional da culpa e que
pode reconduzir-se «à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor,
de que fala BINDER. Assim poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela
em que prevalecem as tendências egoístas do autor, especialmente perversa, especialmente
rejeitável, será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase
total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente...Importa salientar que a
qualificação de especial se refez tanto à censurabilidade como à perversidade. A razão da
qualificação do homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade
revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada. Com efeito, qualquer homicídio
simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a
censurabilidade ou perversidade do agente que o comete».
No caso dos autos há uma especial censurabilidade, pois o recorrente praticou ofensas à
integridade física graves contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, pois trata-
se de homem adulto que agride, com força e repetidamente, uma criança que em Setembro de
2004, tinha 8 anos, sendo magra e com altura entre 1,20 metros e 1,40 metros.
Esta enorme desproporção física aliada ao facto de ser tio da menor, o que, por um lado, lhe
conferia um dever especial de zelar pela saúde e bem-estar da sobrinha, por outro, conferia-lhe
uma autoridade familiar sobre a mesma, revelam uma especial censurabilidade, uma culpa
acrescida que nos levam a qualificar o crime cometido pelo recorrente como ofensa à
integridade física grave, agravada pelo resultado (morte) e qualificada por revelar especial
censurabilidade do agente, previsto e punível pela conjugação dos art.ºs 146.º, 145.º, n.º 1, al.
b) e 144.º, al. d), do C. Penal, para o qual se convola a pronúncia pelo crime de homicídio
qualificado.
Tal convolação é permitida, pois a possibilidade de vir a ocorrer foi comunicada ao Il.
Defensor do recorrente na audiência de julgamento realizada neste Tribunal, para que pudesse
organizar a sua defesa e, em qualquer caso, sempre lhe é muito mais favorável.
Quanto ao crime de ocultação de cadáver, p.p. pelo art.º 254.º, n.º 1, al. a), do C. Penal, os
factos provados integram todos os seus elementos objectivos e subjectivos, pelo que este crime
lhe é imputado em concurso real com o anterior, dando-se por reproduzidas as considerações
tecidas na 1ª instância.
As penas a aplicar pelos dois crimes serão fixadas na decisão do recurso do Ministério Público.
VII
O Ministério Público recorreu do acórdão condenatório, por entender que se justificava uma
agravação das penas aplicadas aos dois arguidos:
"Na verdade, se como atrás se referiu, a finalidade de reintegração do agente na sociedade há-
de ser, em cada caso, prosseguida pela imposição de uma pena cuja espécie e medida,
determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial que se mostre
adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente e pela intensidade da
advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades, no caso destes arguidos as
penas que lhes foram impostas pecaram por defeito.
Certo é que, face à gravidade dos crimes levados a cabo pelos arguidos, à falta de qualquer
mostra de arrependimento da sua parte e às conclusões das perícias juntas aos autos quanto à
sua personalidade, dúvidas surjam quanto à possibilidade de algum vez virem a integrar
normalmente a sociedade...
Mas também não parece haver qualquer esperança de, com a relativamente curta pena de
prisão em que acabaram por ser condenados, tal integração na vida normal se veja facilitada.
É que, com as penas que lhes foram impostas, não se consegue - como atrás se mencionou -
cumprir as exigências de prevenção especial que se mostram necessárias ao caso.
Não se esqueça que, muito embora se tenha qualificado como tendo actuado com dolo
eventual na morte da menor, esse é o único elemento "atenuante" que se encontra na conduta
dos arguidos (para além de certa colaboração com as autoridades policiais, no caso do arguido
AA). Todos os demais elementos são agravantes da culpa dos agentes, quer se fale no
momento da prática dos crimes, quer nos momentos posteriores. Basta lembrar que até hoje
não revelaram o paradeiro dos restos mortais da menor CC...
"Beneficiar" os arguidos com penas situadas junto ao ponto médio entre o limite mínimo e
máximo da pena prevista para o crime de homicídio parece-nos indevido e violador das
normas que determinam o modo de escolha da pena.
Mesmo no caso do crime de ocultação de cadáver não se verifica razão alguma para não se
aplicar aos arguidos o máximo da pena prevista em abstracto. Para mais quando - como acabou
por ser entendido - nesse crime acabou por ficar consumido um outro, o de profanação de
cadáver. Actividade mais desvaliosa em termos jurídicos e sociais não se encontra. Não se
consegue vislumbrar qualquer caso em que se consiga obter maior ilicitude e culpa por parte
do agente na ocultação de um corpo (para mais de uma filha e sobrinha dos arguidos).
Daqui que, sempre salvo o devido respeito por opinião contrária, se entenda que as penas a
impor deverão ser agravadas.
Mais se entendendo que deverão ser os arguidos punidos de forma idêntica, tendo em conta
que, por um lado, o desvalor da acção da arguida BB é superior (a menor era sua filha, e daí
também a qualificativa d alínea a) do nº 2 do art.º 132º do C. Penal se lhe aplicar) mas que, por
seu lado, o arguido AA, ao contrário da irmã (primária) tem já diversos antecedentes criminais,
um deles precisamente por crime contra a vida.
Assim, propõe-se a alteração da decisão nos seguintes termos:
- O arguido AA, na pena única de 23 (vinte e três) anos de prisão, resultante de cúmulo
jurídico entre as penas de:
- 22 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. nos art.ºs. 131° e
132° n.ºs. 1 e 2, al. b); e de
- 2 anos de prisão pela prática de um crime de ocultação de cadáver, p. e p. pelo art.º 254.º, n.º
1, al. a), ambos do Código Penal.
- A arguida BB, na pena única de 23 (vinte e três) anos de prisão, resultante do cúmulo jurídico
das penas de:
- 22 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. nos art.ºs. 131º e
132º nºs. 1 e 2, als. a) e b); e de
- 2 anos de prisão pela prática de um crime de ocultação de cadáver, p. e p. pelo art.º 254º, n.º
1, al. a), ambos do Código Penal."
Quanto ao arguido AA, temos a considerar que cometeu dois crimes, um de ofensa à
integridade física grave, agravada pelo resultado (morte) e qualificada por revelar especial
censurabilidade do agente, previsto e punível pela conjugação dos art.ºs 146.º, 145.º, n.º 1, al.
b) e 144.º, al. d), do C. Penal, a que corresponde a pena abstracta de 4 a 16 anos de prisão, e
um crime de ocultação e profanação de cadáver, p.p. no art.º 254.º, n.º 1, als. a) e b), a que
corresponde uma pena abstracta de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias.
A ilicitude do crime preterintencional é elevadíssima, pois a acção deve considerar-se muito
próxima da de um homicídio qualificado, a que corresponderia uma pena de 12 a 25 anos de
prisão.
O dolo foi muito intenso quanto às ofensas à integridade física e de uma negligência grosseira
quanto à produção do resultado "morte".
O arguido não confessou os factos na audiência nem mostrou arrependimento e a
personalidade revelada pelo exame médico-legal indica que "manifesta desprezo pela vida
humana - resultado de mau ajustamento social e de frieza afectiva - e tem tendências anti-
sociais/psicopáticas com dificuldade de controlo dos impulsos, que o leva a ser agressivo,
tentando solucionar os conflitos através de tal agressividade, não sentindo remorsos pelas
consequências dos actos que assim leva a cabo, desprezando os direitos, desejos ou
sentimentos dos outros".
E acrescenta o acórdão recorrido:
Como habilitações literárias, o arguido AA tem a 4ª classe e desde que saiu da escola começou
a trabalhar, embora sempre exercendo serviços indiferenciados e sem vínculo laboral, nunca
tendo emprego nem residência certos e vivendo ultimamente no interior de um veículo
automóvel, ou em casa dos seus irmãos, sobrevivendo à custa de trabalhos ocasionais que
levava a cabo em diversos locais.
O arguido sofreu já várias condenações: foi condenado, em 10.11.1993, na pena de 4 anos de
prisão pela prática de um crime de homicídio na forma tentada; em 1995, foi condenado pela
prática de um crime de furto qualificado, na pena, em cúmulo com a pena proferida pelo crime
de homicídio tentado, de 3 anos e 8 meses de prisão; em 2001, foi condenado na pena de 90
dias de multa pela prática de um crime de condução ilegal de veículo; e em 2003, de novo pela
prática de um crime de condução ilegal de veículo, foi condenado na pena de 6 meses e 15 dias
de prisão, suspensa na sua execução mediante o cumprimento de condições, vindo a suspensão
a ser revogada.
O arguido nasceu no seio de uma família numerosa (os pais e 9 irmãos), onde se destacavam
os hábitos alcoólicos do pai e as dificuldades económicas.
Em benefício do arguido só temos a colaboração voluntária com a investigação no decurso do
inquérito, que levou a que fosse possível apresentar no julgamento provas decisivas. Contudo,
o facto de ter indicado à PJ muitas provas falsas quanto à localização do corpo da vítima,
esmorece de algum modo o valor atenuativo daquela colaboração.
Na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção geral e especial das penas,
mas sem se perder de vista a culpa do agente.
Numa concepção moderna, a finalidade essencial e primordial da aplicação da pena reside na
prevenção geral, o que significa "que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a
necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto...alcançando-se
mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica
violada..." (Anabela Miranda Rodrigues, "A Determinação da Medida da Pena Privativa de
Liberdade", Coimbra Editora, pág. 570).
"É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que justifica que se fale aqui de
uma «moldura» de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que a
comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas:
o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das
necessidades preventivas da comunidade. Mas, abaixo desta medida de pena, outras haverá
que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na
validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a
protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a
finalidade de prevenção geral; definido, pois, em concreto, pelo absolutamente imprescindível
para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de
defesa da ordem jurídica (mesma obra, pág. seguinte).
A prevenção especial, por seu lado, é encarada como a necessidade de socialização do agente,
embora no sentido, modesto mas realista, de o preparar para no futuro não cometer outros
crimes.
"Resta acrescentar que, também aqui, é chamada a intervir a culpa a desempenhar o papel de
limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas..." (ainda a mesma obra,
pág. 575). "Sendo a pena efectivamente medida pela prevenção geral, ela deve respeitar o
limite da culpa e, assim, preservar a dignidade humana do condenado" (pág. 558).
Tudo ponderado, de acordo com os critérios definidos nos art.ºs 70.º e 71.º do CP, tendo em
consideração a enorme ilicitude dos factos, o grau elevado de culpa, a personalidade do
arguido e as fortes exigências de prevenção geral do crime, levam a fixar a pena pelo crime
p.p. nos art.ºs 146.º, 145.º, n.º 1, al. b) e 144.º, al. d), do C. Penal, em 15 anos de prisão.
Quanto ao crime de ocultação e profanação de cadáver, valem aqui as considerações que
fizemos quanto à co-arguida. Mas, como a sua colaboração foi decisiva para apurar este crime,
mesmo com as limitações apontadas, entende-se adequado manter a pena por este crime que
foi fixada no tribunal recorrido (20 meses de prisão).
Reapreciando os factos em conjunto e a personalidade do arguido, para os efeitos do disposto
no art.º 77.º do C. Penal, entende-se fixar a pena única resultante do cúmulo jurídico daquelas
Num caso com esta gravidade, em que não há prova directa e só circunstancial, mesmo no que
respeita à morte da vítima, a Justiça tem de se limitar à verdade processual, isto é, à que resulta
da legalidade e do valor objectivo dos meios de prova, pois a busca de qualquer outra
"verdade" pode conduzir a um sério e irreparável erro judiciário.
Voto vencido de
A) José Vaz Santos Carvalho
------------------------------------------------------------------
(1) Este processo, por vencimento do relator inicial, Cons. Santos Carvalho, veio a caber ao
presente relator, que era 1.º adjunto. Convém, no entanto, especificar que, tanto quanto
possível, se manteve o texto do anterior relator, modificando-se o mesmo nas partes essenciais
sobre que incidiu a discordância. Estas alterações incidiram sobretudo a partir do ponto 11. 3.
em diante, aproveitando-se, no entanto, certas partes do texto do primitivo relator que não
colidiam com os pontos de vista adoptados.
(2) Na redacção original estava aí escrito "quando a menor tinha cerca de 3 anos de idade",
mas esta referência foi eliminada após a rectificação de fls. 3669.
(3) Por se haver desatendido a isso, com violação, aliás, do artigo 158 do Código de Processo
Penal, é que ocorreu o famoso erro judiciário de Araguari, de que resultou a condenação dos
irmãos Naves pelo suposto homicídio de Benedito Pereira Caetano, que, anos depois,
retornava, vivo e são, da Bolívia, para onde se mudara, levando dinheiro subtraído a seus pais.
A confissão dos acusados havia sido extorquida pela violência de um delegado militar.
(4) Diploma a que nos reportaremos quando outro não for mencionado.
(5) «Com a corroboração significa-se a existência de elementos oriundos de fontes probatórias
distintas da declaração que, embora não se reportem directamente ao mesmo facto narrado na
declaração, permitem concluir pela veracidade desta» (António Alberto Medina de Seiça, O
Conhecimento Probatório do Co-Arguido, Coimbra Editora, 1999, p. 228)
(6) «A ausência de uma norma expressa a comandar a exigência da corroboração e a cominar-
lhe as consequência da sua verificação na concreta decisão, impede-nos, naturalmente, de
afirmar a existência de uma proibição de valoração do conhecimento probatório do co-arguido
que não se mostre corroborado. Porém, pensamos que a falta de corroboração merece censura,
embora a um outro plano. Se (...) a regra da corroboração traduz, essencialmente, uma
exigência acrescida de motivação da sentença, mostra-se insuficiente que a motivação exprima
as razões pelas quais o tribunal não considerou aquela fonte probatória imerecedora de crédito
(primeiro estádio da valoração); ou mesmo as razões por que a considerou digna de crédito
(segundo estádio da valoração). Torna-se necessário ainda que a motivação contenha
explicitado os elementos de corroboração detectados pelo tribunal para sustentar a
credibilidade da própria declaração (terceiro estádio da valoração). Apreciar livremente
significa motivar correctamente; a corroboração constitui um elemento da apreciação e, por
conseguinte, da motivação: a sua ausência traduz uma insuficiência da fundamentação, que
não logrou alcançar o padrão de convencimento a que toda a fundamentação, enquanto
discurso justificativo da decisão, se destina» (ob. cit., p. 227).
(7) Por se haver desatendido a isso, com violação, aliás, do artigo 158 do Código de Processo
Penal, é que ocorreu o famoso erro judiciário de Araguari, de que resultou a condenação dos
irmãos Naves pelo suposto homicídio de Benedito Pereira Caetano, que, anos depois,
retornava, vivo e são, da Bolívia, para onde se mudara, levando dinheiro subtraído a seus pais.
A confissão dos acusados havia sido extorquida pela violência de um delegado militar.
(8) Ob. cit., pág. 18.
(9) J. Irureta Goyena, El delito de homicidio, 1928, p. 8.
(10) Carrara, Programma, cit., § 1.088, nota 5.
(11) «Técnica dos exemplos da regra».
(2) "Homicídio Qualificado - Tipo de Culpa e Medida da Pena", Teresa Serra, 2000, pág. 15.
(13) Acs. STJ de 2002/11/14, proc. 3316/02, de 1991/12/12, proc. 42640, de 1992/05/06, proc.
n.º 43109, de 1997/12/16, proc. n.º 102/98, de 1990/12/20, proc. 41848, etc., todos eles in
www. dgsi.pt.
(14) "Comentário Conimbricense...", ob. cit. pág. 26.
(15) Teresa Serra, ob. cit, págs. 67 e segs., na esteira de Wessels, designa o primeiro caso por
homicídio simples atípico e o segundo por homicídio qualificado atípico.
(16) "Comentário Conimbricense...", ob. cit., pág. 27.
(17) Leal Henriques e Simas Santos assinalam no "Código Penal Anotado", II, pág. 61 e segs.,
que não é exacta a afirmação do Ac. do STJ de 1990/06/06 de que "no caso de parricídio a
regra é a de que se verifica especial censurabilidade ou perversidade", pois esta tem de ser
sempre comprovada.