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CONFERÊNCIAS

Publicação – Revista de Direito da Universidade Sao Francisco –

Bragança Paulsita- vol. 11, n.º 1, pp. 121- 135, 1994.

DIREITO E CIDADANIA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Tércio Sampaio Ferraz Júnior 1

As relações entre direito e cidadania podem ser enfocadas de diversos

ângulos. Nesse sentido, elas constituem um problema filosófico quando se leva

em conta as questões de legitimidade presentes nas relações entre Estado e

Sociedade; ou um problema histórico, se enfocarmos a questão da factualidade

destas relações no tempo; cultural, quando discute a configuração da cidadania

na herança ocidental, etc. Como um ponto de confluência destas diversas

possibilidades, a questão ganha o seu correio relevo quando enfocada à luz da

Constituição. É deste ângulo privilegiado que gostaria de analisar o problema. E

para não nos perdermos demasiadamente em abstrações, vamos enfocar a

1
* Conferência proferida pelo Prof. Ur. Tércio Sampaio Ferraz Júnior, Titular da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no Salão Nobre do Compus de
Bragança Paulista da Universidade São Francisco, no dia 11 de Agosto de J 993,
comemoração da instituição dos cursos jurídicos no Brasil.
questão no âmbito constitucional brasileiro.

Partamos, pois, do pressuposto de que a Constituição de 67/69, se

caracterizasse por uma impotência política genérica da sociedade civil perante a

tecnocracia estatal (relação esta pouco a pouco levada a uma crise), com

menosprezo do voto como moeda política básica e com o reconhecimento da

superioridade dos "guardiões" da racionalidade económica sobre qualquer forma

de representação popular - a desproporção de forças entre Executivo e

Legislativo foram um indício forte do que estamos mostrando - associados à

violência da repressão militar. Não obstante essa asfixia da capacidade conjunta

e transparente de agir, todo o traçado constitucional autoritário de 1967/69

estava voltado, na sua prática, a propiciar um desprendimento de forças

económicas capazes de assegurar um desenvolvimentismo legitimante. Se, no

começo, havia uma predisposição para deixar a sociedade civil suficientemente

"livre" no seu isolamento, para que a:

economia florescesse, na continuidade do regime esta "liberdade" foi

adquirindo, no entanto, sua face real de concessão do Estado (lembre-se a

insistência do presidente Geisel, no início da distensão política, em falar de

"liberdade com responsabilidade"). Era a cidadania encarada como fim, como

objeto a realizar-se no futuro, não como base e pressuposto (lembre-se também

da concepção do desenvolvimento económico como condição de posterior

desenvolvimento político).

Diante dessa configuração perversa da cidadania, a Constituição de 1988


começa, no seu Preâmbulo, por acentuar o caráter político do Estado instituído

em termos de "Estado Democrático", em face de uma sociedade caracterizada

como "fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e

comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica de

controvérsias". Como valores supremos da sociedade são destacados, "a

liberdade, :a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a

justiça", cabendo ao Estado assegurá-los, bem como assegurar o exercício dos

direitos sociais e individuais.

A análise do Preâmbulo (cuja função dogmática usual é revelar a mens

legis, configurar uma abreviatura para localizar os princípios diretores e definir a

autoridade constituinte) mostra um elenco de valores; que nos fornece uma

excelente pista para o exame da questão.

Tomemos o elenco de valores. Pelo seu enunciado, aparece, pela ordem,

a liberdade como o primeiro deles. O valor liberdade, integra a personalidade

como seu contorno essencial, de início no sentido positivo da criatividade, de

expansão do próprio ser da pessoa, de capacidade de inovar e, em seguida, num

sentido de não ser impedido; no sentido positivo, a liberdade tem relação com a

realizabilidade do homem, com sua participação na construção política, social,

económica e cultural da sociedade; no sentido negativo, refere-se-à

autodeterminação do homem, à possibilidade de ser diverso, de não submeter-se

à vontade dos outros. Pela ordem, a liberdade é seguida da segurança, que, como

valor, tem a ver com os destinatários da ordem jurídica. Significa exigência de

tratamento uniforme dos endereçados. Exige, pois, que todos, nas mesmas
condições, tenham o mesmo tratamento. Segurança exclui, portanto, tratamento

arbitrários, ou seja, não só os que não são uniformes, mas também os que

ocorrem à margem do direito. Num primeiro momento, enquanto valor

tipicamente liberal, a segurança exige a submissão do Estado à lei da qual é

também o guardião. O sentido legitimamente da segurança exige a organização

legal do Estado como ordem normativa, limites claros de sua atuação como

instituição. Mas, numa extensão mais ampla, configura não apenas a repulsa ao

tratamento arbitrário do Estado contra o cidadão, mas a de cidadão contra

cidadão, sugerindo uma forte dimensão social. Como valor amplo alcança, pois,

também as arbitrariedades decorrentes de situações legalmente conformes, mas

socialmente injustas que são, então, juridicamente repelidas pela sua inclusão,

no art. 6º, como um direito social.

Bem-estar e desenvolvimento podem ser entendidos como valores

mutuamente complementares. Pela ordem, porém, conquanto, sem

desenvolvimento não possa existir bem-estar, como valor este se sobrepõe

àquele. Um desenvolvimento à custa do bem-estar relativo da comunidade não é

legítimo. O bem-estar não é encarado como um valor subjetivo, isto é, pertinente

ao sujeito isolado, mas como valor objetivo. Sua configuração não é, por isso,

positiva, mas negativa. Não há bem-estar enquanto não se erradica a pobreza, a

marginalização, as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III). Nesse sentido

pode-se dizer que o bem-estar, como valor, releva-se em uma situação de não-

miséria. Nestes termos deve-se então configurar o desenvolvimento como valor.

É uma repulsa ao sentido utilitário de desenvolvimento. Tanto que o artigo 3º,


III, atribui à Republica, constituída num Estado Democrático de Direito, o

objetivo fundamental de garantir o desenvolvimento nacional e não de realizá-

lo. Desenvolvimento não é meio nem fim, nem correlação de meios e fins, mas

uma situação permanente de uma sociedade que muda e que se reconhece como

voltada para seu próprio progresso e aperfeiçoamento. Não é, pois, meio para o

bem-estar, mas sua realização contínua, em diferentes graus relativos às

possibilidades reais.

A igualdade é enumerada, a seguir, no elenco de valores constitucionais

básicos. Sabe-se que a igualdade, como valor, toma vários sentidos. Na tradição

constitucionalista liberal ela é inicialmente igualdade jurídica, isto é, perante a

lei, o que postula uma desigualdade de fato, decorrente das diferentes aptidões

pessoais; sua força axiológica aponta, porém, na esteira das revoluções

modernas, para uma neutralização de certas desigualdades culturais e

normativas, como a fundada em discriminações religiosas e políticas; no correr

do século XIX neutraliza-se a desigualdade quanto ao trabalho; já no século XX,

os movimentos em favor da libertação da mulher exigem a neutralização de

desigualdades decorrentes do sexo; a derrocada do nazismo levou a importância

da neutralização das desigualdades raciais (Ferreira Filho, 1975, V. 3:80;

1984:73). O texto da Constituição de 1988, pelo conjunto de normas que

prescrevem qualquer tipo de discriminação, pelo enunciado superlativo do caput

do artigo 5º: "todos são iguais perante a lei", garantindo-se, entre outros, "o

direito à igualdade" -, generaliza uma aspiração bem mais ampla que alcança

também as desigualdades de fato, na medida em que desvaloriza a existência de


condições empíricas discriminantes e exige equalização de possibilidades. Como

tal, o valor igualdade, tomado não apenas como condição para o exercício das

liberdades fundamentais - igualdade perante a lei - mas como conteúdo

autónomo de um dos direitos básicos (as Constituições brasileiras anteriores não

enunciam a igualdade como um dos direitos, afirmam somente a igualdade

perante a lei), repercute imediatamente no entendimento dos direitos sociais

fundamentais.

Numa aproximação negativa, o valor igualdade significa pois exigência

de não-discriminação política, jurídica, religiosa, sexual, racial; trata-se, nesse

sentido, de um valor individual que pressupõe que, de fato, os homens são

diferentes. Mas numa aproximação positiva, o valor aponta para a igualdade dos

pontos de partida, enquanto equalização de possibilidade, de oportunidade e de

participação económica e social; nesse sentido significa um valor social, que

pressupõe que, de fato, os homens podem e devem ser menos diferentes.

Por fim, enumeru-se o valor justiça. Na tradição ocidental, deve-se

entender a justiça como um princípio formal que se preenche substantivamente

das demais virtudes ou, como diríamos agora, dos demais valores. Justiça, neste

sentido, é afirmação de um sentimento de inconformismo perante certas

diferenças (valor igualdade), perante arbitrariedades (valor segurança), perante a

miséria (valor bem-estar), perante a apatia (valor desenvolvimento), perante a

negação da dignidade da pessoa como um ser capaz de autodeterminar-se e de

participar na realização do bem-comum (valor liberdade). A justiça, como valor

fundante, organiza os demais valores e se revela, num sentido substantivo


próprio, como equilíbrio axiológico, ponderação e prudência, mas também como

desafio e realização.

Por meio dos valores enumerados no preâmbulo, deve-se entender, em

suma, que a Constituição de 1988 tem uma exponencial preocupação em traçar o

espaço da cidadania em termos de supremacia do valor síntese da dignidade

humana. A forte insistência, não só na fraternidade, mas na proibição de

discriminações de qualquer natureza, mostra que a dignidade humana é

conjugação de liberdade com um princípio de sociabilidade. Afirma-se a

capacidade humana de reger o próprio destino, expressando sua singularidade

individual. Ao mesmo tempo nega-se o isolamento, pois afirma-se também o

enraizamento social do homem, posto que sua dignidade repousa na pluralidade

e no seu agir conjunto (Arendt, 1981:191): o homem como um ser distinto e

singular entre iguais, base de cidadania.

O sentido da dignidade humana alcança, assim, a própria distinção entre

Estado e Sociedade Civil, ao configurar o espaço de cidadania, que não se vê

absorvida nem por um nem por outro, mas deve ser reconhecida como um

pressuposto de ambos. Em verdade, portanto, deve-se dizer que, embora no

Direito Público, assim como no Direito Privado, disponha-se sobre a cidadania,

sua configuração decorre da legitimidade de valores, que antecede esta

tradicional distinção técnica da Dogmática Jurídica. Não é uma criação do

Estado nem um conceito que dele decorre. Significa que, constitucionalmente,

esta reconhecido que o homem tem um lugar no mundo político em que age.

Os traços gerais da nacionalidade (art. 12), que se conjugam com a


nacionalidade da língua (art. 13), apontam para esta efetivação da dignidade do

viver em um lugar como ser distinto e singular entre iguais (esfera pública) e do

respeito pela condição humana da sua vida privada. O âmbito da cidadania é,

assim, o espaço da soberania, isto é, da imperatividade do pacto e do

cumprimento do pactuado. Os chamados direitos políticos são, assim, condições

de exercício de cidadania, mas com ela não se confundem. Em outras palavras, é

a cidadania que constitui a distinção entre o público e o privado. Pois a

cidadania é o princípio da liberdade participativa, base da vida política,

enquanto lugar em que o homem exerce seu autogoverno, e que lhe traça,

simultaneamente, o espaço do não político. Perante a cidadania, a República,

este centro da comunidade, do que é comum todos e a todos se revela, constitui

a esfera pública, da qual o Estado é uma das articulações. O sentido

legitimamente deste reconhecimento preserva, pois, a legitimidade da própria

Constituição enquanto constituição da República.

Nestes termos deve ser entendido o artigo 1^: a República (Federativa do

Brasil) constitui-se em Estado Democrático de Direito. Ela não é constituída

pelo Estado (ainda que Democrático de Direito), mas se constitui em Estado. E

o faz pela afirmação da cidadania, que é um dos seus fundamentos, junto com a

dignidade da pessoa humana, a soberania, os valores sociais do trabalho e da

livre iniciativa, o pluralismo político (art. 1º, I até V). Este conjunto que se

resume num conceito abrangente de cidadania, dá sentido político de esfera

pública ao parágrafo único do art. 1º: "Todo o poder emana do povo". Note-se

que o texto diz: todo o poder e não todo poder. Trata-se de um só poder de
cidadania enquanto agir conjunto, que a todos inclui e a ninguém absorve. Por

isso, soberano e pluralista, respeitador dos limites da | sociedade civil, dos

valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Estas são as bases principais,

fundamentos da ordem republicana.

Este sentido da República exige a cidadania como uma espécie de

fundamento primeiro, porque, sem este reconhecimento de que o ser humano

deve ter o seu lugar no mundo político, preverte-se a soberania numa relação de

submissão para a qual o pluralismo então não conta, absorve-se a esfera pública,

e a dignidade humana toma-se princípio vazio sem condições de afirmação

concreta. Nestes termos deve ser entendida a concepção da cidadania, salientada

por Celso Lafer em seu trabalho sobre Hannah Arendt (Lafer, 1988:146), como

um "direito a ter direitos".

A Constituição delineia assim, com base na cidadania, o próprio

exercício da atividade política como poder legítimo em termos de princípio da

representação partidária, conjugado em parcelas de exercício direto, nos quadros

de uma estrutura de divisão dos poderes. Por este último princípio ressalta-se a

legitimidade da atividade política no âmbito legislativo, posto que este é, por

excelência, o lugar de expansão da cidadania e o centro de convergência da

soberania popular: num Estado Democrático de Direito só a lei deve obrigar. E

lei é a norma submetida ao processo legislativo bem como as demais normas

que nela se fundam. Em termos de legitimidade isto repercute globalmente nas

atividades do Executivo, cuja competência presidencial de iniciativa e do direito

de veto devem estar a serviço da soberania popular e jamais se fundarem em


critérios tecnocráticos, ainda que "bem-intencionados", exteriores à cidadania.

Isto deve valer também para as famigeradas "medidas provisórias com força de

lei" (art. 62), as quais, como instrumento normativo, contêm um mecanismo

perverso capaz de destruir-lhe a legitimidade; a edição de novas medidas com

idênticos conteúdos toda vez que alguma delas for rejeitada pelo Legislativo.

Embora tecnicamente discutível, deve-se reconhecer a legitimidade de tal

procedimento de tal procedimento. Do mesmo modo, seus requisitos -relevância

e urgência -, embora tecnicamente submetidos ao juízo de oportunidade do

Presidente, devem ter seus limites traçados pelo Poder Judiciário que, se

provocado, não pode omitir-se ao dever de configurar-lhes o conceito com base

na legitimidade constitucional.

Com isso delineia-se também para a cidadania, o sentido legítimo do

Poder Judiciário. Numa ordem denominada pela representação partidária e pelo

exercício direto do poder, reconhece-se que a política é atividade própria da

cidadania, à qual se submete a competência adminsitrativa do Executivo. Neste

quadro, o Judiciário, armado de suas garantias c excluído da atividade político-

partidária, é o único dos poderes cujo exercício, sendo público, exige, não

obstante, um certo alheiamente próprio da reflexão e do julgamento. Daí o

sentido da sua legitimidade repousar na dignidade da prudência (saber jurídico e

reputação ilibada(, que lhe confere o prestígio do equilíbrio e a suprema função

de guarda da constitucionalidade.

Não é preciso muito esforço para perceber que vivemos no Brasil, uma

situação em que grandes massas são condenadas,. miséria e á fome, num


universo político que vê o poder crescer pela multiplicação dos meios de

violência e pela extensão dos meios de controle sobre a sociedade.

A cidadania, na Constituição brasileira, tem um sentido amplo,

equivalente a todos os direitos e obrigações decorrentes da nacionalidade, bem

como um sentido estrito referente à participação no governo. No sentido amplo é

preciso, pois, examinar sua expansão no campo económico e social. Qual o

papel da cidadania na economia?

O contexto da economia é o âmbito das atividades humanas voltadas

para a necessidade de sobrevivência. O contexto da economia política é o

âmbito da economia, tomando-se, historicamente, uma preocupação comum do

Estado (Foucault, 1982:281). É nesse contexto que se coloca, a nosso ver, o

problema da cidadania no espaço da economia. Como configurá-lo na

Constituição?

A questão nos faz olhar, inicialmente, para o artigo 170 da Constituição.

O enunciado desta norma instaura os princípios da legitimidade da vida

económica. Sua textura não é de simples exegese, posto que o próprio enunciado

distingue entre fundamento, fim e princípios da ordem económica, os quais são

entremeados de valores gorvemados por perspectivas ideológicas.

O fundamento da ordem merece um destaque. A ordem económica está

fundada "na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa". Obviamente

isto é uma norma e não um enunciado descritivo ("deve-se reconhecer que a

ordem económica está fundada" etc.). Este reconhecimento, prescrito pela

Constituinte, tem uma carga de legitimidade: aceita-se, parte-se daí, não se


discute. Poderia ser de outro modo, por exemplo, "a ordem económica tem por

fundamento o trabalho, ou a propriedade". Não é isso que se prescreve, porém.

O fundamento está "na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa".

Os dois fundamentos são, porém, distintos. A "livre iniciativa" é um

modo qualificado de agir, presente em todos os momentos, já perfeita e acabada

naquilo em que consiste: a iniciativa não se toma mais ou menos livre; como

fundamento, ou há ou não há livre iniciativa; já no caso da "valorização do

trabalho humano", o acento está na "valorização", portanto num ato de apreciar

e fazer realizar o que se considera bom: o trabalho humano.

“Valorização do trabalho humano" significa, assim, a legitimidade da

Ordem, desde que construída sobre um empenho constante, e permanente, de

promover a dignidade humana do trabalho na atividade econômica. Estranha, no

caso, a expressão “tarbalho humano”. Por que "humano"? Que outra forma de

trabalho poderia haver? Trabalho animal? Realizado por máquinas? A expressão

está aberta às interpretações. Em termos de cidadania há de se resguardar, a

nosso ver, o termo "trabalho", qualificado pelo adjetivo "humano", de todas as

formas desumanizadoras da atividade laborial. Trabalho é atividade do homem

denominada pela relação meio/fim, uma atividade instrumentalizada que tem um

produto: aquilo que o trabalhador fabrica e coloca no mundo, como algo que

vem da sua arte c esforço e ganha vida própria no comércio com os outros. Pelo

trabalho, o homem acresce a natureza, ao mudá-la conforme os seus propósitos.

O trabalho, assim, humaniza a natureza, criando o mundo humano, o mundo das

coisas permanentes que o homem criou como realidade objetiva. A valorização


do trabalho liga-se, deste modo, à valorização dessa auto-realização do artifício

humano que guarda, no seu íntimo, o sentido da liberdade. Trabalho, assim, é

início, livremente disposto, e fim, produto acabado ao cabo de um processo, que

todos podem perceber e sentir como algo que não havia e passou a existir. Nesse

sentido, apanágio da cidadania!

Mas há no mundo contemporâneo uma forma pervertida de considerar o

trabalho que, ao invés de valorizá-lo, o degrada. Trata-se do trabalho dominado

pela necessidade pura e simples de sobreviver, de satisfazer a busca insana de

multiplicação do mercado, e não de criar o mundo intermediário humano. Este

trabalho se desumaniza porque deixa de ser produtivo, no sentido de ter

resultado ao final da atividade. Pois a atividade que o caracteriza passa a ser um

processo sem fim, que só se acaba quando se chega à exaustão da "força de

trabalho". Este é o "trabalho" realizado por máquina e animais, por bens, em

geral, que o direito tributário permite sejam depreciados e abatidos na renda

empresarial. Uma máquina ou um animal não vêem cessado o seu "trabalho"

quando o produto está pronto, ao contrário do homem que é capaz, como o Deus

bíblico, de olhar, ver que está bom e, ao concluir sua obra, descansar. A

valorização do trabalho humano, portanto, é uni repúdio à automação ou à

animalização do sistema de produção, a um processo que se rejeita por motivos

alheios a si mesmo, uma espécie de repetição compulsória de atividades que

cessam apenas para o homem comer, dormir e recuperar as forças. Não é um

repúdio à máquina ou ao animal, mas à maquinalização e animalização da

atividade laborial do homem. Assim, como ordem económica que se funda na


valorização do trabalho humano, o que se repudia não é a capacidade

operacional das máquinas mas do homem como máquina, ou seja, uma ordem

que inverte fins e meios, que almeja apenas a "libertação de mão-de-obra" (vide

art. 7º, XXVII), que produz apenas para produzir mais ou melhorar seus próprios

instrumentos de produção, que trata o homem como um objeto de

racionalização, uniformizando-o e dele exigindo apenas uma coordenação

rítmica conforme regras de eficiência, que faz com que desapareça a distinção

entre o trabalho e seus utensílios, em que o processo de produção, como uma

grande máquina, é que determina o movimento dos homens e não o contrário.

Aceitar isto seria, certamente, destruir a cidadania. O que se diz da valorização

do trabalho humano como fundamento da Ordem Económica vale também para

a livre iniciativa. Afirmar a livre iniciativa é acreditar na liberdade como

fundamento da Ordem Económica. É acreditar na autonomia empreendedora do

homem na conformação da atividade económica, é aceitar sua intrínseca

contingência e fragilidade, é preferir uma ordem aberta ao fracasso a uma

estabilidade certa e "infalivelmente" eficiente.

Dizer que a livre iniciativa é fundamento da Ordem Económica é

também afirmar que a estrutura desta está centrada na atividade das pessoas e

dos grupos e não na atividade do Estado. Não significa a exclusão deste, mas

ressalta que o exercício da atividade económica, na produção, na gestão, na

direção, na empresa, está regulado originariamente pelo chamado princípio da

exclusão: o que não está proibido, está permitido. Obviamente, isto não é um

reconhecimento do laissezfaire. Há de se ter em conta que livre iniciativa e


valorização do trabalho humano devem estar conjugados. Trata-se de uma

Ordem com dois fundamentos. Liberdade, como base, está em ambos. Na

iniciativa, em termos de liberdade negativa de ausência de impedimentos para a

expansão da própria criatividade. Na valorização do trabalho humano, em

termos de liberdade positiva, de participação sem alienação na construção da

riqueza económica. Portanto não há nenhum sentido de ilimitado absoluto na

livre iniciativa. A ilimitação, note-se, está no início, no principiar da atividade,

mas não nos desempenhos e nas consequências. Livre iniciativa, assim, não

exclui a atividade fiscalizadora, estimuladora, arbitrai e até suplementar

empresarial do Estado. Este, porém, não deve limitar a espontaneidade humana

de produzir algo novo, de começar e empreender desde o princípio algo que não

estava ali. É desta liberdade que se fala como livre iniciativa. Conjugada com a

valorização do trabalho humano, porém, ela se define como participação, como

construção positiva da dignidade humana na produção de riqueza, isto é, como

tarefa social que os homens realizam em conjunto. E no respeito a esse duplo

fundamento que a Ordem Económica revela sua própria legitimidade. Sob este

fundamento ergue-se uma ordem, cujo fim, diz o caput do artigo 170, é

"assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social".

A Ordem Económica tem por fim assegurar a existência digna conforme

os ditames da justiça social. O fim é assegurar a iodos. Um dos fins ou

objetivos fundamentais da Republica (art. 3a) é promover o bem de todos (arí. 3a,

III) erradicar a pobreza e a marginal ização e reduzir desigualdades. A

República é uma instituição de todos, que, por representantes ou diretamente,


realiza valores básicos. A Ordem tem por fim assegurar uma realização. Por si,

ela não realiza. Apenas deve assegurar uma realização da existência digna.

Quem realiza não é o Estado, é a República, como tarefa institucional de todos.

Existência digna, conforme os ditames da justiça social, não é um bem

subjetivo e individual, mas de todos, que não admite miséria nem

marginalização em parte alguma e distribui o bem-estar e o desenvolvimento

com equidade. Protege, não privilegia. É fraternidade e ausência da

discriminação. Não se mede por um absoluto, mas é, conforme certos limites de

possibilidade estabelecidos, um sentido de orientação para não excluir ninguém.

Assegurar, como fim da Ordem, é velar para que não ocorram impedimentos na

realização de valores.

Por fim, a cidadania se faz presente na Ordem Social. O art. 193 da

Constituição proclama que "a ordem social tem como base o primado do

trabalho e como objetivo o bem estar e a justiça sociais". Em que sentido este

enunciado manifesta a cidadania?

Aqui, como na Ordem Económica, se fala de trabalho. O contexto,

porém, muda-lhe a significação. Como fundamento, na Ordem Económica, o

trabalho deve ser valorizado como fator de produção.

Na Ordem Social, o trabalho não tem sentido de elemento de produção,

não se conjuga com a livre iniciativa, mas é base única que diz respeito à própria

sobrevivência humana. Ou seja, a Ordem Económica, ao salientar o valor do

trabalho humano, repudia a sua degradação, no processo económico, a mero

objeto: força de trabalho. Pois a Ordem Social, como que ciente, não obstante,
da possibilidade de ocorrência desta degradação, encara de frente a

"produtividade" do trabalho que reside na "força" humana, "cuja intensidade não

se esgota depois que ela produz os meios de sua subsistência e sobrevivência"

(Arendt, 1981:99). Do ponto de vista social, o que conta não é a produção das

coisas, bens que podem ser acumulados, mas o próprio processo vital do ser

humano. Portanto, o que conta não é o trabalho, mas a força do trabalho.

A Ordem Social, nestes termos, deve ser encarada como um sistema de

proteção da força de trabalho que é, assim, a sua base.

Estruturada com base no primado do trabalho sobre os próprios

interesses da produção, que pertinem à Ordem Económica, a Ordem Social é

também movimento, projeção de fins que a legitimaram. Fala-se no bem-estar e

na justiça sociais. Note-se, porém, a diferença entre as duas ordens. A económica

deve visar assegurara todos a existência digna conforme os ditames da justiça

social. O objetivo da Ordem Social é o próprio bem-estar social e a justiça

social. A primeira deve garantir que o processo económico, enquanto produtor,

não impeça, mas, ao contrário, se oriente para o bem-estar e a justiça sociais. A

segunda não os assegura, instrumentalmente, mas os visa, diretamente. Os

valores económicos são valores-meio. Os sociais, valores-fim.

Consagrando valores-fim, a Ordem Social visa à justiça social. Esta

expressão nos permite delinear o público e o privado no espaço da sociabilidade

aquela esfera híbrida, na qual os interesses privados ssumem importância

pública (Arendt, 1981:45). Trata-se de uma instituição da era moderna, cuja raiz

primordial é a unicidade da humanidade, o lugar em que o processo vital comum


se organiza publicamente. Isto ocorre, historicamente, no momento em que o

trabalho enquanto força de trabalho se emancipa da esfera privada e conquista

um caráter público, o que certamente coincide em parte com a ascensão política

das classes trabalhadoras. Nesta nova esfera, a vida ó o supremo bem. Por isso,

em termos de cidadania, o risco é que aí impere um único interesse, cujo sujeito

é uma abstraçao: a espécie humana ou a coletividade uniforme e conformemente

submissa. E aí que entra o sentido legítimo da justiça social.

O termo, em nossa tradição constitucional, deita raízes da Doutrina

Social da Igreja. Trata-se de uma expressão de complicada configuração

exegética. Seu conteúdo está nas relações humanas enquanto relação entre seres

que sobrevivem pela sua própria força de trabalho e seu problema é constituí-los

em igualdade como pessoas e não como abstrações. Constituí-los como pessoas

significa ao mesmo tempo reconhecê-los como distintos e, ao mesmo tempo,

igualados pela condição da sobrevivência.

Igualá-los pela condição da sobrevivência quer dizer reconhecer que, na

esfera da sociabilidade, os homens têm um destino comum: a própria vida.

Reconhecê-los como distintos é atribuir-lhes, naquela mesma esfera, um

princípio de independência em relação aos instrumentos da sobrevivência, é não

colocá-los, os homens, coleti vãmente, a serviço da vida. Nestes termos, justiça

social é disciplina valorativa da sociedade, de modo que, na esfera da

sociabilidade, o público e o privado tenham garantidos os seus traços próprios e

não se reduzam um ao outro.

Por tudo o que dissemos pode-se entender que sem o reconhecimento da


cidadania, qualquer constituição e, em particular, a Constituição brasileira,

toma-se letra no papel. Em consequência, sem ela, o direito perde, seguramente,

sua substância.

Afinal, no uso da expressão "Estado Democrático de Direito", estão

presentes componentes que tendem a fazer da liberdade ao mesmo tempo

liberdade-autonomia e liberdade-participação. De um lado, isto vem marcado

pelo modo como se estendem os direitos políticos à máxima universalidade

aliados à plena extensão dos direitos sociais, económicos e culturais. De outro,

pelo empenho em se evitar que, no modo como se adquirem, numa sociedade

pluralista, tais direitos, venha o seu exercício cingir-se e esgotar-se no mero jogo

de classes dominantes. Seus efeitos, assim, não devem se produzir apenas frente

ao Estado, mas em relação aos particulares; na relevância da sociedade civil

deve-se ver o reconhecimento de que o controle da legitimidade constitucional

não é a expressão de uma fiscalização formalmente orgânica, mas também uma

tarefa comum, que deve fazer da Constituição uma prática e não somente um

texto ao cuidado dos juristas;

a participação, não apenas do Legislativo, do Executivo, do Judiciário, mas

também do cidadão em geral, na concretização e na efetivação dos direitos, é

uma peça primordial do seu contexto democrático-social legítimo.

A Constituição brasileira de 1988, nesse sentido, nasceu de uma

esperança. Ela está voltada para uma expectativa de concretização,

concretização de suas aspirações sociais que embasam firmemente os

movimentos políticos que sucederam a tecnocracia desenvolvimentista da


Revolução de 64. O mal-estar geral de uma nação que teme acreditar, que assiste

impotente às manobras políticas de classes permanentemente dirigentes, que

sofre as malezas de uma profunda e radical injustiça social, trouxe à luz um

texto conturbado, tecnicamente difícil de sistematizar-se e por isso mesmo fácil

de ser manipulado, distorcido, arranhado, posto de lado, esquecido. Não

obstante, este texto está carregado de interrogações, demandadas simples de

gente muito simples, que certamente mal sabe que temos uma Constituição, mas

que, em tudo que vê e que ouve, no convívio diário, no trabalho, na casa, na

fábrica e no campo, sente a ineludível mensagem de uma proposta de

democracia. Por isso, apesar de tudo, esta Constituição é, como disse Ulisses

Guimarães, a Constituição cidadã.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

01. ARENDT, Hannah: A Condição Humana, Rio: Forense, 1981.


02. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves: Comentários Constituição de
1967, SP: Saraiva, 1975.
03._______________:Do Processo Legislativo, SP: Saraiva, 1984.
04. LAFER, Celso: A Reconstrução dos Direitos Humanos, SP:Edição do
Autor, 1988.

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