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REPORTAGEM DE CAPA
Entre as histórias da Bíblia, uma das mais contadas e recontadas é aquela em que Moisés,
à frente do povo escolhido, desafia os poderes de um faraó egípcio, lançando-o numa
viagem de 40 anos pelo deserto rumo à Terra Prometida, Canaã. Segundo o relato, os
israelitas viviam no exílio no Egito, nas cidades a leste do Delta do Nilo, e tinham passagem
livre para ir e voltar a sua terra natal. No entanto, com a chegada ao trono de um novo
faraó, o povo foi escravizado - e só seria libertado por Moisés, um israelita criado por uma
filha do faraó, que se revoltou diante do tratamento dispensado a seu povo e terminou por
liderá-lo na revolta e no Êxodo. Em sua história estão descritos milagres como a sarça
ardente, as dez pragas do Egito, a abertura do Mar Vermelho e o aparecimento de maná no
deserto. É ele também que recebe de Deus, no Monte Sinai, as tábuas com os Dez
Mandamentos.
Nas últimas décadas, inúmeros esforços foram feitos para descobrir um pouco
mais da história de Jesus. Houve até uma tentativa de reconstituir seu rosto, a
partir de dados e medidas do crânio de um judeu do século I d.C. Mas pouco se
avançou, e houve até fraudes, como a urna funerária apresentada há dois anos
com a inscrição 'Tiago, irmão de Jesus', que se revelaria uma falsificação.
Por anos, os cientistas buscaram o indícios de um Moisés histórico, sem sucesso. É pouco
provável que existisse um líder tão importante comandando uma revolta de proporções, e
ainda criado por uma filha de faraó, sem que isso fosse registrado nos documentos oficiais
ä egípcios. Se a existência da figura de Moisés, porém, é posta em dúvida, há evidências
de que a presença de povos originários de Canaã no Egito, entre os séculos XVI a.C. e XIII
a.C., era comum. Os egípcios eram um povo rico e poderoso, capaz de estocar grãos e
manter sua produção estável devido à constância das cheias do Nilo e ao avançado
sistema de irrigação. Isso naturalmente atraía seus vizinhos mais pobres. 'Quando havia
fome, era comum que o povo de Canaã fosse ao Egito. É possível que houvesse uma
tradição antiga, talvez imemorial, de migrações ao sul', conta Silberman. 'Além disso, os
tipos de condição de servidão que vemos descritos no Êxodo parecem realistas.' Mas os
indícios específicos de israelitas no Egito ou de uma fuga pelo deserto não foram
encontrados. 'Não é razoável aceitar a idéia de fuga de um grande grupo de escravos do
Egito, através de fronteiras fortemente vigiadas por guarnições militares, para o deserto e
depois para Canaã, numa época com colossal presença egípcia na região', escrevem
Finkelstein e Silberman em seu livro.
'Nesse tempo havia uma nova situação mundial, em que os impérios antigos,
particularmente o assírio, estavam perdendo seu poder', diz Silberman. Os assírios, que
haviam dominado o Oriente Médio e controlado os reinos de Judá e Israel, mais ao norte,
começaram a abandonar a região entre 630 a.C. e 640 a.C., criando, assim, um vácuo
político. Ao mesmo tempo, o Egito ensaiava um renascimento militar e se tornava um forte
candidato a ocupar o lugar deixado pela Assíria. Josias, rei de Judá, queria anexar Israel, o
reino vizinho do norte, antes que outros o fizessem. Ao se preparar para uma guerra muito
perigosa contra o Egito, contra os assírios remanescentes e os países vizinhos, a corte de
Josias decidiu compilar uma história que iria validar o que estavam fazendo. 'Queriam
deixar claro que era como se Deus tivesse ordenado a eles', diz Silberman. Nesse
contexto, o Êxodo tinha uma importância fundamental. A história da fuga bem-sucedida do
Egito e da ajuda de Deus contra os exércitos do faraó poderia servir de incentivo e
justificativa para um novo confronto com esse poderoso vizinho.
Esse ponto, no entanto, permanece polêmico. 'Ainda há debates intensos sobre muitos dos
temas que tratamos no livro. Muitas de nossas idéias são altamente controversas e
certamente não compartilhadas por todos', admite Silberman. Apesar disso, suas teorias
ganham cada vez maior respaldo na comunidade acadêmica. 'A partir do final da década
de 60, uma ä nova geração de arqueólogos com uma competência técnica extraordinária,
como é o caso de Finkelstein, começou a revolucionar essa área de estudo', diz o
historiador e arqueólogo Francisco Marshall, coordenador do núcleo de História antiga da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 'O trabalho deles é notável. É preciso quebrar
um conjunto de paradigmas muito forte, e isso não é uma coisa simples.'
Sobre essa questão, os cientistas têm concluído que a dinastia real de Davi não era tão
poderosa como diz a tradição bíblica. Tudo indica que Davi, Salomão e sua dinastia
governavam apenas Judá, e não um reino unificado. Israel, mais poderoso que Judá entre
os séculos XI a.C. e X a.C., possuía outros governantes e uma relação comercial mais
intensa com as regiões adjacentes. Além disso, na época de Davi e Salomão, Jerusalém,
centro administrativo de seu reino, era uma cidade pequena e pouco influente. Ela só iria se
tornar um centro expressivo séculos depois. 'O reino de Judá permaneceu relativamente
desocupado de uma população permanente, muito isolado e marginal durante e logo
depois do tempo presumido de Davi e Salomão, sem grandes centros urbanos e sem
hierarquia articulada de vilas, aldeias e cidades', escrevem Finkelstein e Silberman.
NEM TANTO PODER ASSIM
Para arqueólogos, Davi existiu de fato, mas não chegou
a unificar as 12 tribos israelitas
O duelo mais famoso da história mundial Corbis/Stock Photos
está nas páginas da Bíblia. Armado de uma
funda, o pastor Davi mata o gigante Golias e
corta-lhe a cabeça. Mais tarde, Davi se
tornará o novo rei de Israel, unificando sob
seu comando as 12 tribos em um só reino e
dando início à era de ouro do povo de Israel.
Salomão, seu filho, se torna o rei mais sábio
de seu tempo. Empreendedor de grandes
obras, como o Templo de Jerusalém,
mandou fortificar essa e outras cidades
provinciais, como Hazor, Megiddo e Gezer.
A história de Davi e seu filho Salomão, com
suas manobras políticas e intrigas
dinásticas, pareceu durante séculos uma
descrição exata do que realmente havia
acontecido em Judá e Israel. No entanto,
nova luz sobre essa época, entre os anos de
1005 a.C. e 930 a.C., aponta para um
mundo bem diferente. É certo que pelo menos Davi realmente existiu, devido à
descoberta de uma inscrição do século IX a.C. que cita o nome de sua dinastia.
No entanto, seu reinado não chegou a unificar as 12 tribos israelitas, nem foi tão
vasto como diz a Bíblia. 'Quando olhamos para os padrões de assentamentos
em Judá nessa época, só encontramos algumas pequenas aldeias, e não há
nenhuma evidência de um comércio exterior de porte ou mesmo a capacidade
para construções monumentais', comenta Silberman. O Templo de Salomão,
descrito na Bíblia como tendo dimensões internas de 10 metros de largura por
30 metros de profundidade, era de fato grande para os padrões do Oriente
Médio daquele tempo, mas não era o maior (esse posto cabe a um templo em
Alep) e não pode nem de longe ser comparado aos templos gregos que seriam
construídos alguns anos depois.
#Q: A Bíblia, reescrita pela ciência - Continuação:#
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