Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
O poeta, desde que se propõe escrever sobre uma dor sentida, deve
procurar representar, materializando-a, essa dor, não nas linhas
espontâneas em que ela se lhe desenhou na sensibilidade, mas no
contorno imaginado que lhe dá, voltando-se para si mesmo e vendo-se
a si próprio como tendo tido certa dor (inteligibilização do sensível).
Todavia, a metamorfose a que submete a sua dor, fingindo-a,
representando-a, apenas altera o plano onde essa dor decorre. A dor
real, ou seja, a dor dos sentidos, primeiro, é a dor imaginária (dor em
imagens), depois. O poeta materializa as suas emoções em imagens
susceptíveis de provocar no leitor (e o poeta é o seu primeiro leitor) o
regresso à emoção inicial.
Isto
“Essa coisa é que é linda” (o adjectivo “linda” aplicado a algo que está
sob um terraço imaginário, e que, portanto, só metaforicamente existe).
O poeta não quer intelectualizar as emoções, quer permanecer ao nível do sensível para
poder desfrutar dos momentos – porque a constante intelectualização não o permite.
Sente-se como enclausurado numa cela pois sabe que não consegue deixar de raciocinar.
Sente-se mal porque, assim que sente, automaticamente intelectualiza essa emoção e,
através disso, tudo fica distante, confuso e negro. Ele nunca teve prazer na realidade
porque para ele tudo é perda, quando ele observa a realidade parece que tudo se
evaporou.
Ela canta, pobre ceifeira
Na primeira parte, desde o início, existe um conflito entre uma situação exterior
ao poeta e o seu mundo exterior. Com efeito, a voz da ceifeira domina toda esta primeira
parte com a sua suavidade, mensagem de um universo de alegria, inocência e
espontaneidade, e o poeta procura apresentá-la num ritmo ondulante, repousado ou
embalador, para tanto lançando mão de aliterações e da alternância de sons vocálicos
ásperos e brandos.
Portanto, a ceifeira canta “como se tivesse… razões para cantar”. Não as tem.
Logo, o seu canto é inconsciente. Apesar disso, ou por isso, a sua voz é alegre, cheia de
vida, encanta e prende o poeta, que, por um lado, se alegra por a ver feliz e, por outro, se
entristece, porque sabe que, se aquela ceifeira fosse capaz de tomar consciência da sua
situação, não encontraria motivos para cantar.
A antítese que atrás referimos como figura muito importante para a definição
e desenvolvimento do tema: “alegre e anónima viuvez”; “ouvi-la alegra e entristece”; “poder
ser tu, sendo eu!”
Publicado na revista Renascença, no ano de 1914, diz muito dos sentimentos do poeta,
relativamente à sua infância. Em 1913 (data em que o poema é escrito), Fernando tem 25
anos, uma idade em que é “normal” o surgimento de uma maturidade intelectual, que leva da
adolescência à idade adulta. Mas o que o perturba são ainda as memórias de uma infância
feliz, se bem que muito breve, face aos problemas que o assolavam na sua adulta juventude: a
instabilidade das emoções, a investigação de temas “maiores do que ele próprio”, a sua “obra”
e principalmente a sua “missão”.
João Gaspar Simões, primeiro biógrafo de Pessoa, aborda na sua Vida e Obra de Fernando
Pessoa o tema da juventude sob o título sui generis de “Paraíso Perdido” (págs. 17-28 do
Volume I). Compreende-se este título, se compreendermos as circunstâncias da vinda a este
mundo do poeta. Ele nasce no n.º 4 do Largo de São Carlos, 4.º andar esquerdo, em Lisboa.
Nasceu portanto entre um teatro – o Teatro de São Carlos – e uma igreja – a Igreja dos
Mártires. Entre uma igreja popular, tipicamente lisboeta e um teatro das elites, o primeiro teatro
lírico português, onde se encenavam as grandes óperas, a que muitas vezes o seu pai assistira
na condição de crítico para o Diário de Notícias. Para o rapaz, ficarão para sempre marcadas
na memória as badaladas do sino daquela igreja do Chiado, num timbre que se misturaria
progressivamente com aquele timbre indistinto, apenas reconhecido pela sensação de vaga
felicidade e despreocupação. A sua vida de aldeia, que ele refere no poema, é uma vida de
idílio despreocupado, em marcado contraste com a vida citadina que o esmaga e preocupa,
quando já não mais uma criança, luta contra se tornar um adulto.
São esses primeiros cinco anos de vida edílica que para sempre ficam na sua memória, como
um conforto falso a que recorre quando o desespero o invade e o domina. A memória do
apartamento espaçoso, que respirava um ambiente vagamente aristocrático, escadarias
abertas e iluminadas, para um largo aberto e limpo, servia para serenar e pacificar. Isso e as
“poeiras musicais” trazidas pela figura do seu pai – cujas feições ele mal recorda, e que morre
quando ele tem cinco anos – com o qual ainda festejava os seus anos, enquanto era amado,
filho único, “menino de sua mãe”. São os anos em que sobretudo a vida é apenas para ser
vivida e não pensada. Uma vida que nunca mais retornaria igual senão como “um sonho”, a
“soar-lhe na alma distante”.
1. Um sino toca: o sino da aldeia do poeta. Mas cada badalada do sino "Soa dentro da minha
alma". Que diferença pode existir entre um sino que toca fora da minha alma e um sino que
toca dentro da minha alma?
2. O verso "Tão como triste da vida" tem uma construção pouco habitual. Explique o que se
passa.
3. Na segunda quadra o poeta diz uma coisa muito estranha: este sino toca a primeira
pancada, porque a primeira parece sempre a repetição de outra. Pode dizer-se que isso tem
que ver com o fato de o sino soar dento da alma do poeta? Justifique a resposta.
4. Poeta que passa "sempre errante"; que significa esse adjectivo? Que motivos levarão o
poeta a considerar-se errante?
5. Na terceira quadra há dois me muito curiosos: "por mais que me tanjas" e "soas-me na
alma". Que efeito produzem eles no texto?
7. Haverá diferença entre ouvir um sino na aldeia e ouvir um sino na cidade? Quais as palavras
que dão esse ambiente tranquilo da aldeia?
Chuva Oblíqua
(Nota: Chuva Oblíqua é um poema constituído por 6 partes, das quais apenas aqui se
apresentam a primeira).
Primeira parte:
Com tudo isto, pode dizer-se que o sonho é mais forte que a realidade
exterior.
Segunda parte:
Terceira parte:
Quarta parte:
Quinta parte:
Parecia ter-se alcançado uma totalidade, a Unidade dos opostos, mas “De
repente alguém sacode esta hora dupla” e o “pó das duas realidades cai…” e fica-lhe nas
mãos, símbolo da sua capacidade criadora que segue uma rapariga que abandona a feira.
Sexta parte:
3.4. Sonho/realidade
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado-
Duas, de lado a lado-,
Jaz morto, e arrefece.
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.