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Álbum de Memórias

(Carolina Simionato)

Ela abriu seu álbum na primeira página.


Há algum tempo pegava-se contemplando sua infância. A única época
que considerava boa de sua vida, portanto tinha certa urgência em lembrá-la.
Esta urgência que consumia-lhe o peito nunca havia sido tão forte como
naquele dia. Sentada em sua residência de frente para o mar, ainda que o mar
fosse lindo, sentia a necessidade de lembrar da fase mais feliz e ingênua que
tivera.
Envelhecera rápido. E este envelhecimento, de certa forma precoce,
trouxera-lhe coisas que preferia simplesmente ignorar. Com a idade, dizia sua
mãe, vem a teimosia. Mas não gostava de lembrar esta frase. Remetia-na para
as lembranças pertencentes a sua mãe.
Sua mãe morrera havia alguns anos, porém nunca curara-se do mal que
aquilo a fizera. Morrera num mês que as duas haviam brigado. Não poderia
haver momento pior para esta tragédia, que deixou marcas profundas em sua
personalidade.
Tentou se livrar desses pensamentos avulsos, que sempre vinham junto
à sua infância. Esvaziou a mente e continuou a ver o álbum.
Na sua época, meados do século XX, não havia álbuns tão modernos.
Era pobre, ainda, mas nem os ricos imaginariam um dia ligar uma máquina
ligada em uma tomada para ver os momentos que se passaram, as fotografias,
cartas... Sempre fora chamada de antiquada, pois era isso que era – o que
esperavam de uma mulher nascida no começo do século passado?
A primeira foto que podia ver, ainda que sua visão embaçada não
ajudasse muito, era de si mesma em um berço humilde, feito de uma madeira
não tão nobre, mas que tinha valor de ouro para ela. Sorria, o que não era
normal entre fotos de sua família...
Na próxima foto, via-se, em uma foto velha e com a parte de cima
queimada, ela e seu amigo de infância, amigo que sempre a acompanhou, e
que amou. Morrera, também. Naquela casa sobrara só ela mesma e sua
empregada, Joana, a quem tinha grande afeição; acreditava que esta também
a gostava.
- Senhora? Chamou-me? Joana sabia muito bem que sua senhora não a
havia chamado. Mas, de dez em dez minutos, ia verificar como ela estava. Era
velha, a coitada. Não se podia descuidar nem por um minuto.
Ignorou-a, a velha. Esperou, pessoalmente, que Joana não a viesse
vigiar por algum tempo, uma hora, talvez. Não queria que suas doces
memórias fossem atrapalhadas por uma preocupação tola – tola, era isso que
achava da preocupação dos outros para com ela. Sou uma velha, dizia alto, a
qualquer momento posso morrer e ninguém poderá mudar isso!, gritava mais
alto ainda. Achava hipocrisia a grande esperança de vida longa – se é que
chegar aos setenta anos não era ter uma vida longa o bastante – que seus
filhos diziam ter.
Seu álbum contava com apenas vinte fotos. Sua infância fora bem
pobre, mas seus pais sempre fizeram questão de fotografar alguns momentos.
A terceira foto a mostrava formando-se na quarta série. Foi a época em
que conheceu coisas que nunca esqueceria. Coisas importantes, que
considerava lições: como a traição do pai, que considerava ultrajante para a
época. Esboçava o mesmo sorriso da primeira foto, um sorriso ingênuo de
menina, de menina que não sabia o futuro que a esperava.
Viu-se, então, em uma foto de quando iniciou no “ginásio”, ao lado de
seu futuro marido, Márcio. Naquela época já sentia-se diferente quanto a ele, e
achava que ele também. Márcio morrera havia seis meses, na cama. Todos que
a cercavam estavam morrendo.
Ela, sentada em uma cadeira acolchoada e macia virada para a área, via
o céu, onde achava que seu marido estaria a olhando. E desejava tão
intensamente que pudesse morrer naquele instante. O amou tanto, ah, como o
amou, e ainda o amava. Foi o único a quem respeitara integralmente, em
todos os dias de sua vida conjugal, apesar das inúmeras e infinitas brigas.
As próximas fotos mostravam coisas que ela não queria lembrar.
Lágrimas molharam seus olhos e a pele enrugada que os cercavam.
- Senhora, precisa de ajuda? Era Joana novamente.
- Não, Joana, não, estava se irritando com ela. Sentiu um impulso, e
seguiu-o. Joana, disse, volte aqui.
A empregada, sorrindo, voltou.
- Sim, dona. Diga.
- Gostaria de dizer-lhe algumas coisas, sorriu brevemente, coisas que
uma velha gagá algum dia tem de dizer a alguém.
- Toda ouvidos, senhora.
- Fui uma pessoa ruim, Joana. Não tão ruim, mas ainda sim má, fixou
seu olhar em algum ponto no horizonte.
- Não diga isso, dona!
- Ah, Joana, digo. Tu és moça, não conheceu-me na flor da idade.
Porém, Joana, juro-te que nunca fiz nada que pudesse ferir meu marido, ao
menos não moralmente! Se é que me entende.
- Claro. Sempre foste da maior bondade com “seu” Márcio.
- Que bom que sabes, Joana. Porém não fui a mãe que esperava ser ao
brincar com minhas bonecas. E isso me dói, Joana, sabes disso?
- Imagino. Prossiga, se quiseres.
- Ah, querida, claro que quero. Sinto-me feliz por te ter aqui, sabias? É,
sinto-me sim. Ao menos tu me ouves.
- Sempre, sempre a ouvirei.
Riu-se um pouco.
- Não será difícil, disse com um sorriso singelo, o meu sempre não
durará muito mais.
- Não digas isso, d-, fora interrompida por sua senhora.
- Digo, e sabes que é verdade. Sem mais delongas, continuarei com
minha melancólica narração. Minha infância foi a melhor que minha condição
poderia conhecer, e foi melhor ainda atribuindo-se o fato de que conheci Márcio
nela. Minha juventude, ah, curti-a com Márcio, e foi boa, também. Minha fase
adulta, não foi tão boa, mas, como dizem... “deu pro gasto”.
Joana riu.
- Dona, se me permite dizer... Qual é o propósito disso?
- Meu tempo não será longo, Joana. Um ano, no máximo! Quero contar-
lhe um pouco de mim, não tenho forças nem para escrever. Quer que pare?
Não tens a necessidade de ouvir a conversa de uma gagá.
- Tenho um imenso prazer em ouvir o que me contas, dona.
- Então prosseguirei, rapidamente, sem delongas! Como disse-lhe
resumidamente, não tenho o direito de reclamar muito de minha vida. Deveria,
sim, ter dado mais amor às pessoas que amo. Meus filhos. Irmãos. Família. Tu,
Joana, não te dei o que merecias! E ainda faço-te ouvir essas confissões.
- Já disse que é um prazer para mim! Continue.
- Bem, Joana, é simples. Não quero que minha existência passe tão
vagamente por tua mente, apenas como “a velha que serviste quando esta
estava no leito de morte”, prosseguiu. Minha infância, em minha mente, foi a
melhor época que tive. Conto-lhe amanhã os detalhes de minha infância. Mas
prossigamos com o resumo... Sinto-me culpada por tantas coisas, tantas
coisas que não tive coragem o suficiente para pedir perdão, ah! Meus filhos...
Temo que, com a correria de seu cotidiano, não os volte a ver.
- Senhora, para o Natal não falta muito. Estamos já em Outubro, não
demora e eles vêm!
- Ah, claro! Ainda tenho a esperança de os ver. O Natal... Confesso-lhe
que ele serviu para matar as saudades que sentia dos familiares, pois nunca
achei a proposta do Natal muito verdadeira. Raramente ganhei presentes em
natais, minha família não poderia comprar presentes para quatro filhos, no
entanto, sempre foram memoráveis – tanto por serem bons, quanto por serem
desastres a parte.
Natal lembra-me, também, que nunca dei o que meus filhos mereciam.
Não, Joana, não em termo de presentes! Minha família ficou consideravelmente
rica com o passar dos anos, os natais eram sempre fartos para nós depois de
enriquecermos. Mas amor, Joana, é disso que te falo! Para meu julgamento,
não acho que os dei o suficiente. E de mais a mais, ah, querida, fiz tanta coisa
errada na vida... Talvez seja assunto para amanhã, também. Mas fiz, enfim.
Quando minha mãe morreu, então, ah, que martírio! Estava brigada com ela,
por bobagem, mas estava. Ela tinha oitenta e dois anos. Tu não tens idéia de
como isso partiu minha alma! Foi tão doloroso, Deus... Meus filhos não
entenderam meu desespero, assim como imaginei que seria. Segurava-me em
Márcio, até que, aos oitenta e dois anos, como minha mãe, ele também
deixou-me aqui, sozinha. Ah, claro, claro, Joana, lembro-me de meus filhos!,
reagiu a careta que Joana fez, mas eles não contam tanto quanto meu amado
Márcio, quero dizer, não me entendem como ele entendia. Ele era perfeito para
mim, é até espantoso.
Conheci-o numa tarde de verão, enquanto ia à Mercearia do amigo de
minha família, Joaquim, comprar alguns condimentos para minha mãe. Ele
estava lá, sentado na porta da mercearia, olhando para o nada. Quando o vi,
disse-me “Olá, estava esperando por você!”, sem ao menos me conhecer.
Espantei-me, respondi “mas nem te conheço!”, no que ele rebateu “nunca é
tarde, podemos nos conhecer!”. E olha que éramos crianças, riu de novo, ao
que lágrimas molharam seus velhos e cansados olhos.
Ele me deu tudo o que queria, minha jovem. Espero que um dia sintas o
amor que sentia, e ainda mantenho, por ele. Deu-me os filhos que tanto amo.
Essa casa, que embora não muito grande, é confortável e cheia do passado.
Deu-me noites incríveis, e não sinta-se acanhada por ouvir isso! Ah, deu-me
tardes e manhãs igualmente maravilhosas. Mas morreu. Claro, um dia havia de
morrer, mas não achei que fosse antes de mim. Se, quando vi minha mãe
falecer, não havia ninguém além dele para me socorrer, quando ele morreu,
não havia ninguém. Ele me socorreria, mas não estava ali! Sabe quando tu
levas um golpe tão forte que te deixa no chão instantaneamente, que tira teus
sentidos e teu ar? Foi deste jeito. Porém, eu já não era jovem, afinal nem faz
tanto tempo. E não passou, embora possa passar ainda. Sinceramente, não
creio que vá passar, mas é sempre bom manter um pouco da esperança viva.
- Nossa, dona. Nunca achei que pudesse saber tanto da senhora, e
sinto-me lisonjeada pela confiança.
- Ah, querida, mereces. Não vou alongar demais esse papo, disse
olhando dentro dos olhos de Joana. Tenho muito apreço por ti, e parte deste
apreço diz-me para não exagerar na dose de falatório, antes que este fique
repetitivo demais e te canse.
- Não me cansa, dona, prossiga!
- Não há necessidade de me chamar de dona. “Você” é perfeitamente
adequado para o grau de intimidade ao qual estou te elevando.
Fitou Joana firmemente nos olhos mais uma vez.
- Joana, não acharás estranho o que vou dizer-lhe agora?
- Diga.
- Amo-te como uma filha. Amo-te tanto quanto amo meus filhos, os que
saíram de meu ventre.
- Que bom, nem cheguei a conhecer minha mãe... É, realmente, um
contento para mim.
- Mais do que adequada tua aparição! Tive uma gravidez não muito
compensada certa vez, cheguei a parir a criança, mas morreu. Gravidez
complicada, aquela... Fiquei deprimida, de qualquer jeito. Pedi que
queimassem imediatamente o corpo, não queria velório algum. Meus filhos,
todos os três crescidos o suficiente para entender os fatos – e muito bem -,
ficaram igualmente tristes. Márcio também, obviamente. Nunca mais tive
filhos. Já estava com trinta e nove anos, eu. Não esperava veementemente
que a gravidez fosse um sucesso, mas não esperava golpe tão duro.
Márcio, mesmo que tenha sentido a perda, não estava tão animado com
aquela história toda de outro filho. Para nós, três filhos era o ideal, porém, sem
querer, me vi grávida novamente. Não iria abortar, nunca! Nem cheguei a
saber o sexo da criança, ai. Quis, e chego a acreditar nisso, que era uma guria,
uma linda e pequena guria, mas prefiro não prender-me a esta história,
concluiu, enxugando os olhos.
- Tu não te prendes a tantas coisas...
- Não mesmo, querida, boa observação. Ah, como sou fraca. Como sou
fraca, covarde, prefiro ignorar fatos ao invés de enfrentá-los. Mas voltando ao
foco desta conversa – já que fujo do assunto rápida e constantemente -, amo-
te como uma filha. E espero que tu me ames, também.
- Amo-te como uma mãe!
As duas se abraçaram. Nos últimos meses que conviveram, haviam
criado um invisível e forte laço. E importante, conseqüentemente.
- Amo tanto meus filhos, também... Gostaria de vê-los agora, como
gostaria. Bateu-me uma saudade tão forte no peito... Mas isso não importa,
confio em ti, e o Natal se aproxima!
- Exato, senhora!
- Ah, já te contei tudo o que foi importante em minha vida.
- Se quiseres contar mais, adoraria ouvir.
- Pode ser! Voltemos aos detalhes ímpares e não muito importantes de
minha infância!
Ao terminar a frase, o telefone tocou. A velha senhora e Joana se
olharam.
- Vá, Joana, não deixe a ligação cair! Não esqueça-te do carinho que
tenho.
- Mas só vou atender à ligação, dona...
- Não importa, não ignore os fatos como esta velha teimosa que te fala
agora faz.
Joana saiu da cozinha, e a dona acompanhou seus passos. Ouviu ao
longe, ainda que sua audição também não fosse boa, Joana atendendo o
telefone.
“Alô? Sim, está marcado. O que? Claro, vou aí semana que vem. Já perdi
esta consulta algumas vezes, e peço desculpas, mas semana que vem irei!
Obrigada. Tchau.”
- O que era, querida? Gritou sua patroa.
- Ah, o emprego que lhe disse! Sabe como é, um dinheiro a mais para
nós. Semana que vem é a entrevista. Não é nada pesado, posso continuar
facilmente com as tarefas domésticas.
- Claro, querida, sem problemas!
- Enquanto isso, importa-se que eu vá adiantando o serviço de semana
que vem? Tenho muitas roupas para lavar, a horta...
- Não precisa se explicar, ainda temos bastante tempo para conversar!
- Espera-me, senhora?
- Sempre, filha, respondeu-lhe, com ênfase na palavra filha. Disse isso
emocionadamente.
- Obrigada, mãe, disse-lhe Joana, igualmente emocionada e pondo
ênfase também na palavra mãe. Considerava-a assim, apesar de velha era
uma ótima companhia, conselheira, uma... mãe. Mesmo que não a fosse, ela
estava no fim da vida, queria deixar-lhe o mais feliz possível, realmente a
amava!
A velha voltou seu olhar para o pôr do Sol que estava logo em sua
frente, na varanda. Aconchegou-se como possível na poltrona acolchoada.
Sentia-se bem por confessar partes de sua vida à Joana. Amanhã,
contaria-lhe a infância, época de glória! Poderia até chegar a contar a
juventude, os erros do passado... Não queria perder momento algum com
aquela pessoa que amava tanto, a... filha. A filha que perdera naquele mês de
março. Coincidentemente o mês de aniversário de Joana. E Joana ia lhe
tomando uma parte valiosa do coração.
Tentou captar cada momento daquele maravilhoso dia que acabava.
Sentiu-se tão cansada... Mais ainda por fixar seu olhar tão intensamente na
imagem linda que via. Lembrou-se do último superlativo de José Dias:
“Lindíssimo”.
E então dormiu, um sono tão profundo que nenhum dos anjos poderia
acordar. O último sono. Para nunca mais acordar.

SIMIONATO, Carolina. 2008


e-mail para contato: carol.simionato@hotmail.com

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