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BORBA NA INFOLÂNDIA

(por Guilherme Kujawski e Sergio Kulpas)

A caverna estava repleta de morcegos e aranhas. Borba olhou


para o seu relógio, notou que o display estava cada vez mais
pálido. Os números mudavam aleatoriamente e todas as
capacidades de comunicação do swatch e a noção de tempo
estavam perdidas. Ele estava sozinho e perdido há muitos dias em
algum ponto do grande sistema de cavernas na chapada central.
Tudo que possuía era um cantil com algumas gotas d’água potável,
meio pacote de bolachas água e sal e um computador NOC portátil.
Pensou nos tuaregs do deserto árabe, que se mantêm com apenas
algumas gotas de água por dia.
A missão de Borba era explorar os subterrâneos rios alcalinos
da borda da caverna, a procura de um réptil raro: o proteu. A
existência desse bicho nunca fora de fato comprovada, mas dizia-se
que o proteu escondia-se muito bem e era extremamente silencioso.
Uma quimera da zoologia, do folclore e de outras três ou quatro
áreas do conhecimento, inclusive a moderna etnodinâmica.
Segundo a lenda, o proteu fazia mimetismo com pequenas
estalagmites e saltava para a escuridão repentinamente. Mas sua
curiosidade o levou a caminhar mais e mais para dentro. Agora
estava sozinho e perdido no escuro e sua situação não era das mais
animadoras.
Borba deitou-se ao lado de uma rocha e pensou em sua
protetora, a Caçadora, que sempre confortava suas aflições quando
tudo parecia perdido na Infosfera. Borba lembrou que fora ela que
o ensinara a usar o bem difícil pager booleano, assim o
pesquisador pode obter precisas informações a respeito do réptil
em questão (o proteu era uma espécie de grande lagartixa cega).
Mas não conseguia atingir a Caçadora NESTE espaço, onde estava
cada vez mais necessitado de auxílio. Haviam apenas remotas
chances.
Borba estava há horas tentando lembrar uma frase código,
que daria acesso a um nicho dentro da noosfera acadêmica onde a
Caçadora havia dito morar. Um servidor permanente, uma
fantasmagoria daquela mulher tão interessante. De repente, ele
lembrou-se da palavra-chave: gótico. Borba usou a luz do último
toco de vela para ver a tela do NOC e inserir a palavra-chave de
sua identidade da seguinte maneira: “Borba, oriundo de Hog Farm
Community e admirador de Graham Wilson, que ele tem certeza de
ser o verdadeiro pintor do Americano Gótico". Borba não era
americanófilo, mas não escondia suas predileções pelos ícones da
década de sessenta americana, incutidas sutilmente em suas em
senhas quinzenais.

Uma missão científica de rotina que até tinha começado bem,


mas algo saíra errado em algum lugar. A Profa. Dra. Dorotéia
Pereira (“Mad Dorothy”, para os desafetos) havia dito que era
imprenscindível a captura de um proteu se quisesse fazer uma tese
perfeita. Mas ela não havia prevenido seu pupilo sobre os perigos
de se perder no labirinto de pedra sob a chapada.
Fora Dorothy que o incentivara a vir nesta missão biológica-
antropológica-arqueológica, explicando a importância de se achar
pelo menos um exemplar vivo do réptil -- presente em todas as
mitologias indígenas e caboclas da região. Até nas Metrópoles
havia crianças que brincavam de "proteu" -- um tipo de esconde-
esconde na Rede.
Dorothy frisava as racionais colocações científicas de uma
coordenadora de teses com olhares agudos e aflitos. Algo ficava
não dito, uma urgência -- ela o estava urgindo para as cavernas.
Agora Borba via os olhos de Mad Dorothy em todos os
reflexos calcários da maldita caverna. Achou que ia chorar e
levantou as mãos sem saber direito porquê. Neste momento de
extremo estresse ele viu, com aqueles olhos que a terra não haveria
de comer porque ele já doara, um proteu do tamanho de um coelho
gigante materializar-se do nada.
Borba ficou paralisado diante da insólita aparição: vestido
como um estafeta dos tempos do Estado Novo, o réptil passou
correndo em duas pernas. Estalando os dedos. Rápido, rápido. Para
piorar a sensação de surto-psicótico-causado-pela-privação-dos-
sentidos, o animal passou falando, ou melhor, berrando:
- Estou atrasado, estou muito atrasado!
Quando parecia que ia se esborrachar contra a parede, o
proteu esbaforido se decompôs em uma explosão colorida de
pirilâmpsias não-lineares. No ar, apenas uns vaga-lumes
perfeitamente inexistentes. Fome, sede, drogas tomadas no
passado, Borba imaginou que combinação estaria provocando esse
surto alucinatório.
Borba considerou a situação. Beliscou o braço. Beliscou o
corpo todo. Concluiu que aquilo, mais do que uma mera alucinação
espeleológica, era um projeção, ALGUÉM estava projetando uma
imagem direto da Infosfera.
As pilhas da lanterna estavam fracas. Por sorte, o coração de
lantânio ativado da Unidade não se cansaria tão facilmente. No
escuro da caverna, Borba tirou uma outra bateria de NOC da
mochila velha e suja. Os jacarés estavam meio descascados: efeito
do tempo úmido. Pronto! Prestíssimo! Mais cinquenta horas.
Enquanto colocava os contatos do NOC na cabeça, recitava
que Shazam vem das iniciais dos imortais Salomão-Hércules-
Aquiles-Zeus-Atlas-Mercúrio, só para espantar o medo. Trodos na
testa, Borba preparou-se para o lancinante efeito da unidade nova.
A coisa agia no próprio engate bio-elétrico do sistema
nervoso central, um colega tinha explicado; o NOC captava as
microondas e reposicionava o sistema límbico, copiando quase
perfeitamente os impulsos nervosos que o cérebro interpretava
como visão, audição e tato em um “terminal interno” chamado
tekminator. Era assim que hoje se adentrava na Infosfera: com os
neurônios queimando a cem trilhões de GPSs.
Mesmo dentro da caverna funda, o Mundo Real dissolveu-se,
as paredes frias derreteram-se em estática. A lanterna não era mais
necessária, pois os nervos ópticos já incandesciam de uma luz não
vista por essas rochas desde o Permiano.

A planície se espalhou a partir de sua própria singularidade.


Padrões franjados de palavrórios formavam-se como nuvens no céu
riscado. Surpreso com o que deveria ser uma rotina para ele, Borba
percebeu que esta área da Infosfera era completamente nova: havia
algo de estranho no modo como a relva se fraturava ao vento, que
também tinha lá seus fumos de pacholice.
Em pé na não-planície, Borba se espantou com a ausência de
Julia sets, menus e outras ferramentas. Enquanto Borba flutuava
para o meio do relvado, cercado por colinas suaves, percebeu que a
planície era feita de linguagem visível, algo que conhecera apenas
em teorias e modelos duros, exatamente nos demos da doutora do
Labô: as hastes de relva e as ondulações do terreno eram formadas
por letras, frases e números com formatos e serifas surpreendentes.
Uma suave brisa de cotações da Bolsa de Tóquio passou,
agitando um trigal de discursos e registros notários. "Nada não é
fácil", pensou Borba preguiçosamente ao imaginar os vinte ou mais
quilos de cérebros naturais e artificiais que haviam sido
consumidos naquele fino e estético biscoito da Rede.
Mas Borba não tinha tempo para divagar, uma vez que de
divagações eram feitas as ondulações do regato, que se derramava
em uma fina cascata de textos filosóficos franceses, uma nova vaga
a cada tantos parágrafos. Borba olhou para cima, protegendo os
olhos do brilho cegante dos múltiplos sóis: balancetes do Banco
Stadt, da Companhia Telefônica Brasileira, da Igreja dos Sunitas.
A planície curvava-se suavemente sobre si mesma, formando
aqui e ali ângulos de parágrafos referentes a uma passagem da
Comédia na qual um antigo governador de Pádua, chamado
Azzolino, foi condenado a amargar no sétimo círculo do inferno
por ter abusado de sua ambição, e isso coincidia com a sua sede de
ambição.
No centro da planície, ele enxergou um pequeno bosque,
notavelmente não tipográfico. Isso era decididamente a coisa mais
curiosa. Imaginou se aquilo tudo não era um novo "divertissement"
da Caçadora. Em sua última conversa, Ela tinha mencionado estar
trabalhando com "sítios de emissores-múltiplos" na Infosfera. Seria
isso?
Em dois pulos, Borba chegou muito próximo do começo do
bosque e notou que as linhas escritas do solo lingüístico
metamorfoseavam-se em pedras, terra e grama. As melhores
réplicas já vistas. Notou também que seu corpo-textual passou a ter
uma aparência quase real. Entrou no bosque, que se fechou
imediatamente sobre ele, fresco e sombrio. Borba pensou duas
vezes antes de se adentrar mais no mato fechado, mas seu corpo no
Mundo Real já mandava mensagens de emergência, indicando um
colapso provável de inanição dentro de mais algumas horas e que
precisava tentar fazer alguma coisa. Ele começou a caminhar por
uma relva verdejante que, de tempos e tempos, era perfurada por
um feixe de sol cristalino.
Subitamente, ele se deparou com o que parecia ser uma
figueira enorme. Encostado em seu tronco, estava um estranho
homem, usando uma roupa marrom, que parecia ser uma peça só,
com um capuz, sandálias pretas de couro e adornos
irreconhecíveis. Borba notou que o homem o olhava firmemente.
Quando se aproximou mais, ouviu a estranha aparição falar, uma
modulação grave de um sotaque indefinível.
- Ah, sim. Aqui, neste salão a porta é toda dourada, com
entalhes representando o sistema solar de Copérnico. A maçaneta é
um globo de cristal que envolve uma minúscula rosa de metal. O
quarto é amplo e retangular, sendo totalmente dominado por uma
grande mesa oval e doze poltronas muito confortáveis. Uma lareira
ocupa quase totalmente a parede oposta à porta, e algumas achas de
sândalo e carvalho estão queimando, mais para perfumar do que
para aquecer o ar. Na parede à esquerda de quem entra, estão trinta
e duas xilogravuras coloridas, alegorias sobre as Revoluções. Na
parede da direita, um grande tríptico retrata Leibniz, Mandelbrot e
Poincaré. Não há janelas, mas grandes clarabóias de porcelana
transparente no teto alto e losangular. Sobre a mesa, estão cinzeiros
de metal, jarros azuis contendo chá fervendo e gelado, bandejas de
petit-fours e canapés, xícaras de china porcelana, uma bandeja de
ágata com sushis, um móbile feito de válvulas de TV e dezenas de
outros pequenos objetos e coisas. E estamos sentados aqui, Borba e
eu.
Quando ele terminou de falar, os objetos minuciosamente
descritos estavam sobre a mesa, e o chá no samovar fumegava
diante deles.
-Sabe, Borba, continuou o estranho homem, tudo foi e é uma
questão das escolhas possíveis. Veja bem, no tempo em que eu
estava na China, eu podia contar com minha fé e minha memória,
até o ponto em que ambas eram uma coisa só. Mas eu tive tantas
crises por isso. A Família Imperial ficava fascinada com minha
habilidade de recitar toda a genealogia dos Nobres Divinos. E eu
guardava os nomes daqueles bárbaros associando-os com as cores
das roupas da Imperatriz, a trama do tecido e a distribuição das
pequenas aves desenhadas. Ensinei essas técnicas como um triunfo
da fé.
Borba viu o homem servir-se de chá.
- Tome um pouco também, está ótimo. Os doces e sushis são
fresquinhos.
Mas como beber e comer na Infosfera? Isso era ridículo,
aquele era um universo fac-similar, uma ilusão dos sentidos. Mas
os penetrantes olhos negros do homem frisavam o convite com
uma obrigatoriedade marcial. Borba esticou a mão e tocou no bule
de chá. Que engraçado, esta solidez e este calor... E estes docinhos
tem uma textura interessante, pensou. Encheu a xícara e ficou
olhando o doce com muita atenção. Linhas franjadas em espiral
cobriam todo a superfície do confeito, e quanto mais ele observava,
mais detalhes surgiam, numa repetição de padrões delicados. Pôs
na boca. Um delicioso fractal de morango. Bebeu o chá, que
desceu quente pela garganta. A "alucinação consensual", como
classificaria aquele americano vulgar, estava mais para alucinação
do que para consenso.
- Já fui jesuíta, já tive malária, já vi a face do Cristo. Hoje sou
um espectro, morando em aposentos feitos de memória. Eu faço
tudo de memória. Quero contar uma história...
Mas foi interrompido por um bólido em alta velocidade, que
virou a mesa, destruindo o arranjo de chá. O proteu parou ofegante
na ponta da mesa, vestido como um Ministro do Planejamento do
século passado. Olhou para Borba, mas se dirigiu ao outro.
- Cale-se, Matteo Ricci. Você está cada vez mais gagá!
Rodopiou os olhos independentemente e zuniu porta afora.
Borba ficava cada vez mais atônito. Quando ia perguntar alguma
coisa ao jesuíta, viu que estava novamente no bosque, ao lado da
grande árvore, que agora mais parecia um baobá.
- Ainda nos veremos, antes que a caçada termine, meu jovem.
Vá com Deus.
Disse o velho, parecendo um áudio sem vídeo.
Tudo que Borba podia ver era um rastro de poeira rodopiante,
entrando bosque adentro por uma trilha. Resolveu continuar
seguindo o proteu.
Após alguns minutos de maratona, Borba perdeu o proteu de
vista. O caráter divagatório inerente àquele ambiente o fez pensar
em pegar um táxi e pedir ao motorista: "Siga aquele proteu!"; mas
como seguir um réptil em um táxi inconsistente, como que feito de
jornal?

Borba ficou por alguns minutos pensando para onde o proteu


teria ido quando, subitamente, ele ouviu um choro. Não era um
choro qualquer, um choro de criança mimada ou um choro de
desespero e angústia de alguém que tinha perdido todas as
esperanças na vida; era um choro com tonalidades potentes, porém
de uma candura irresistível. Borba olhou para todos os lados, em
um ângulo de trezentos e sessenta graus, mas nada viu.
A emissão do choro provinha de uma espécie de colina
encurvada, com uma vegetação rasteira e entrelaçada. Ele
caminhou com muito cuidado em direção a colina, já que a
tonalidade do choro estava quase ficando insuportável. Parecia que
alguém estava chorando através de um amplificador de muita
potência. "Quem estaria fazendo esta brincadeira comigo?"
Borba se aproximou da colina e começou a subi-la. Mas, para
seu espanto, aquele montículo estranho tremeu em um movimento
sísmico e ele rolou colina abaixo. Quando percebeu, a colina tinha
triplicado de tamanho (o que quase era o mesmo que pensar que
uma baleia é uma ilha).
A colina, ou melhor, um gigante vestido com roupas de
lenhador se levantou e disse.
- Estou sofrendo tanto e ainda por cima tem um piolho
querendo me sugar!
O gigante aproximou o polegar em direção a Borba, visando
esmagá-lo. A única coisa que veio à cabeça do projeto de piolho
foi gritar.
- Espere!
O gigante, surpreendido, estancou-se. O seu espanto,
misturado com seu enorme nariz, o faziam parecer um verdadeiro
idiota.
- Quem é você?, perguntou.
- Um coitado perdido no mundo real e agora, no virtual. E
você?
- Meu nome é Thugogmagog.
Por mais dúvidas que possa suscitar esta declaração, ficou
claro de que aquele gigante transmitia nada mais e nada menos a
impressão de que tinha sido vítima de uma espécie de cilada óbvia;
ou seja, transmitia a imagem de ser uma pessoa -- uma entidade,
neste caso -- excessivamente influenciável por baixas técnicas de
sedução. Borba nunca soube de onde tirou energia para se
aproveitar dessa situação já ganha.
- Meu senhor, meu senhor. Por que chora? Sou amigo. Estou
aqui para ajudá-lo.
- Mas você disse que está perdido. Não vejo como você pode
me ajudar.
- Ajudaria muito se você contasse o seu problema.
Neste momento, o gigante se pôs a chorar.
- BUÁÁÁÁ! Tenho um espinho no meu pé, BUÁÁÁÁ!
Borba imediatamente se aproximou do pé do gigante e
reparou que uma pequena roseta estava espetada na sola do enorme
lenhador. Mas, chegando mais perto, ele viu que o espinho era na
verdade uma lâmina de prata de Thomas Young, com 14.000
ranhuras por centímetro - que rodopiava e transformava os raios de
luz em complexas grades brilhantes. O efeito foi tão forte que
Borba caiu para trás e bateu o tórax em uma pedra. Ele agora
estava navegando em um espaço sereno e calmo, como quando
tomamos uma batida muito forte na cabeça e vemos estrelas.

Borba acordou em uma sala que parecia ser o quarto de um


hospital. Notou também, não sem receio, que a cama em que estava
deitado possuía correias de imobilização. As correias, por alguma
razão, não estavam atadas. "Fui encontrado na chapada quase sem
vida e fui trazido às pressas para um hospital. Como o hospital não
possuía leitos suficientes, fui trazido para um quarto para doentes
mentais. Sim, foi isso que aconteceu! Estou salvo!"
Neste instante de conforto meio a dor, entraram dois médicos
que foram absolvidos em Nuremberg. Eles encararam Borba com
uma expressão de ódio. Um deles falou.
- O filho da puta acordou. Vamos dar mais cinco cc de
haldolítio.
Ao ouvir isso, Borba tentou gritar, mas conseguiu apenas
emitir um gemido imunodeprimido.
- Esperem! Como vim parar aqui? O que está acontecendo?,
disse num microfio de voz.
O segundo médico debruçou-se sobre ele e respondeu, com
um nítido bafo de pinho sol.
- Não se lembra de nada, é? Não se lembra de ter enfiado
vinte e três vezes um punhal em uma mulher que se chamava Diana
Sommers?
Aquilo parecia um pesadelo ao vivo.
- Diana Sommers? Nunca ouvi falar dessa mulher! Você
estão loucos?, arquejou.
- Se dissermos que ela também era conhecida pelo apelido de
Caçadora você vai continuar fingindo amnésia?
Borba estremeceu. Os médicos o afivelaram e o aplicaram
uma injeção. O espaço sideral outra vez se apresentou.

Quando Borba acordou, estava outra vez ao lado de


Thugogmagog. O gigante disse.
- Puxa! Você é meu amigo! Conseguiu tirar o espinho do meu
pé!
Mas e aqueles médicos, aquele hospital? Aquele sonho
parecia tão real. Imagine. Estavam me acusando da morte de minha
melhor amiga, que além do mais tinha um outro nome... um nome
falso de novela policial. Que absurdo!
- Hã... Do que você está falando?
Quando tudo parecia se reestabelecer para um padrão absurdo
mais normal, o proteu, vestido como um cortesão de época de João
VI, veio correndo e disse.
- Borba, você poderia ser um pouco mais rápido, sim? Você
fica brincando de expiar culpas e esquece que tem de correr! Você
está esquecendo que o tempo passa e isso é um caso de vida ou de
morte! Você é o maior beneficiado se fizer o favor de me
acompanhar.
- Mas e o gigante?
- Que gigante, meu pobre diabo? Está tendo alucinações
bíblicas?
Borba virou a cabeça e o lenhador gigante havia sumido sem
deixar pegadas de dinossauro. O proteu tirou um relógio de
corrente do bolso, viu as horas, olhou para seu fardo com um olhar
de caridade, recolocou o relógio no bolso e partiu a toda pressa por
um caminho de pedras.
Borba fechou os olhos. Não adiantou nada -- apesar de sentir
que seus olhos orgânicos continuavam piscando normalmente, não
estava usando os olhos para "ver". Mas estava ficando mais escuro
no bosque -- estava bem no meio de um declive suave, com
grandes árvores ao redor. A luz estava ficando mais fraca? Os raios
atravessavam a copa das árvores em um ângulo próximo do poente.
Uma réplica de pôr-do-sol, com névoa e lusco-fusco.

Borba começou a ouvir uma música distante. No meio da


floresta, os sons iam e vinham, sem uma origem determinada.
Estava começando a ficar cansado daquilo, e resolver desistir de
procurar a Caçadora naquela confusão. Levantou as mãos para tirar
os trodos da cabeça -- e não encontrou nada para tirar! Apenas
cabelo ralo, a testa úmida e engordurada.
Alisou a nuca cuidadosamente. Olhou para as mãos. Unhas
meio compridas e sujas de terra. Cortes novos e velhos nos dedos.
Estava preso na Infosfera! Talvez para sempre, como aquele
monge. Seu corpo poderia ter morrido na caverna e ele seria agora
um fantasma da rede, um pobre daemon! Seus ossos brancos
seriam um lembrete macabro e outros clichês de horror para os
futuros visitantes da caverna.
Mas ainda se sentia vivo. De fato, respirava, tinha fome e
sede, cansaço. Sentia-se muito vivo, não um conjunto de detritos
de protocolos de Rede. Na luz crepuscular do bosque sintético,
Borba começou a andar, apurando os ouvidos para identificar a
fonte da melodia que se espalhava em surround.
Do ponto onde estava, partiam várias trilhas, com degraus de
pedra e entalhes nos pontos mais íngremes. O proteu desaparecera
seguindo uma das trilhas, mas ele não conseguia lembrar qual.
Também não tinha certeza se queria seguí-lo.
Experimentou andar alguns metros em cada trilha. Na quinta
tentativa, achou que o som estava mais nítido. De fato, alguns
fragmentos o fizeram lembrar de "G-Spot Tornado". Mas era um
ritmo complexo e fugaz, embora cada vez mais próximo.
Subiu pela trilha, agarrando-se a galhos e raízes enquanto a
caminhada ia se tornando mais difícil. Estava chegando ao alto de
uma colina, e agora podia ouvir a música, com vozes cantando,
mas não entendia as palavras.
Ele não estava preparado para o que se seguiu. Num último
impulso, ofegante e cada vez mais esfomeado, Borba chegou ao
alto da colina. Ali, havia apenas um descampado, com tufos de
mato ralo e um círculo formado por seis grandes árvores.
Um bilhão de vaga-lumes enchia o ar!! A luz dos vaga-lumes
compensava o céu totalmente escuro. E o verde fosfóreo dos
insetos iluminava um grupo de estranhas figuras sentadas em
tamboretes sob as árvores. Era dali que a cantoria vinha: no centro
do grupo havia um ghetto-blaster, que tocava uma batida, um
samba eletrificado. E as palavras cantadas, se continuavam muito
exóticas, agora estavam pelo menos nítidas.
...acumtibóia, aiaçá, aiúçá, amêijoa, aperema, arapuçá, ararambóia,
araú, aruá, arurá, bacoral, biru, boicininga, boicorá, boiobi,
boipeba, boipevaçu, boiquatiara, boiquira, boiru, boiuçu, boiúna,
cabeça-torta, cabeçuda, cágado, caçaca, calango, camaleão,
cangapara, O PROTEU NÃO, caninana, capinima, capitão-do-
mato, capitari, caruaru, carumbé, cascavel, chupa-ovo, cuatiara,
cobra-d'água, cobra-do-ar, cobra-de-duas-cabeças, cobra-cipó,
cobra-coral, cobra-corre-campo, cobra-corredeira, cobra-de-veado,
cobra-de-vidro, cobra-lisa, cobra-nova, cobra-papagaio, cobra-
preta, cobra-rainha, cobra-sao-joão, cobra-tapete, corre-campo,
corredeira, cruzeiro, cururu-bóia, E O PROTEU NÃO, cutimbóia,
dormideira, ibiboca, ibijara, iguana, jabuti, jabuti-aperema, jabuti-
machado, jacaré, jacará-açu, jacaré-coroa, jacaré-curuá, jacaré-
curucuru, jacaré-de-papo-amarelo, jacarerana, jacaretinga, jacaroa,
jacuaru, jacuruanu, jacurixi, jararaca, jararaca-do-banhado,
jararaca-de-barriga-vermelha, jararaca-verde, jarará-cambeva,
jararacuçu, jararaquinha-do-campo, jericuá, jibóia, jibóia-vermelha,
jurara, lagartinho, lagartixa, lagarto, lagarto-salvador, E O
PROTEU NÃO, licranço, limpa-campo, limpa-mato, limpa-pasto,
machado, mae-de-saúva, maracá, matamatá, muçuã, muçurana,
osga, ouricana, papa-ovo, papa-pinto, papa-vento, paraambóia,
parelheira, patioba, pepéuba, pindoba, pitiú, sacaribóia, salamanta,
sapoquara, senembi, sucuri, suruana, sucururu, sururucurana,
sururucutinga, taquará, taraguira, taraguirapeva, tartaruga, teiú,
teju, tejubinha, terauíra, tijubina, tracajá, truirapeva, ubijara,
ururau, urutu, zé-pregos E O PROTEU NÃO, O PROTEU NÃO, O
PROTEU NÃO.
Neste momento, pararam de cantar e deram gargalhadas, no
ritmo da batida. E recomeçaram.
- Acutimbóia, aiaçá, aiuçá, amêijoa...
Aproximando-se, Borba pôs o punho fechado sobre a boca e
tossiu. Todos pararam de cantar, como obedecendo a um comando
do regente. Olharam para ele sem espanto, com familiaridade até.
Um deles, um jovem alto e negro, desligou o aparelho. Sorriu
imensos dentes brilhantes, que pareciam hotéis de luxo no litoral
de Pernambuco.
- Ah, Borba! Como foi a subida? Você parece cansado...Meu
nome é Archie.
A mulher com cara de sueca ao seu lado se adiantou e disse.
- E sou Verônica. Estamos aqui para responder suas dúvidas e
deixá-lo mais confuso.
Um menino com feições orientais pulou na frente de todos.
- Eu sou o Dr. Wais. Não somos os nossos nomes, é claro. E
aquele -- apontou um quiosque multimídia ao lado de uma árvore
afastada, com um rosto antigo e triste na tela -- é o Sr. Poe, que
está nos visitando.
- O que são vocês? Fantasmas?
- Não, disse Archie, nem você é um daemon. Somos uma
conferência amigável com os usuários. Aceita um biscoito?
- Borba não tinha reparado na imensa cartola azul e verde que
Archie estava usando. Com um gesto elegante, ele a retirou da
cabeça e extraiu um biscoito dela, que foi oferecido a Borba com
uma mesura.
Borba estava completamente esfaimado. Um biscoito era
muito pouco, mas era melhor que nada. Mordeu o biscoito e o roeu
lentamente até o fim, enquanto olhava aqueles seres singulares.
Olhavam para ele com ares benevolentes, mas como avaliar
expressões de seres sintéticos? Quando terminou de comer, sentiu-
se saciado e descansado.
- O que era aquilo que estavam cantando?, perguntou
pensando, olhando curiosamente aquelas "pessoas" que conhecia
não sabia de onde. Lembrava apenas que eram elementos de uma
velha guarda.
Estavam todos vestidos com roupas circenses, como uma
trupe de saltimbancos, ciganos ou algo assim. A mulher, Verônica,
estava com um barrete cor de abóbora, saltos de plataforma e um
penhoar florido. Archie usava um terno prateado, sapatos
vermelhos e a tal cartola. O menino Dr. Wais vestia apenas uma
tanga de lantejoulas roxas, mas seu corpo brilhava como se coberto
de óleo.
- Ah, uma velha canção folclórica chamada "Proteu is not a
Brazilian Reptile", disse Verônica, franzindo a testa numa
expressão engraçada.
- Quer ouvir alguma outra coisa de nosso repertório? Somos
muito bons à capela...Que tal "FCC Regulations"? Foi um grande
sucesso do século passado. Quem sabe "Your Mom Never Logged-
On"? Ou "All Woodstockers are Dead Now"?
- Verônica, acho que ele não é um grande fã de folk-music.
Ele estava nos confundindo com Frank Zappa, minutos atrás...
Dr. Wais piscou um olho maroto.
- Você é um rosto na multidão...
Disse o rosto velho na tela do quiosque. Borba olhou
fixamente para o Sr. Poe. Os olhos eram penetrantes, assustadores.
Borba começou a sentir calafrios, a tristeza do rosto estava
contaminando-o. Neste momento, Verônica veio correndo de onde
estava e deu um salto mortal duplo, pousando bem na sua frente.
- Sente-se, Borba, disse em voz jovial, indicando um
tamborete.
- Você está cheio de perguntas a fazer, e nós adoramos
responder perguntas. Descanse e nos ouça. Essa será uma das
poucas vezes no caminho onde ouvirá algumas respostas. Você
quer saber o quê, como, quando, porquê, e principalmente quem.
Verônica parou de falar e começou a fazer uma série de
gestos estranhos; os outros se juntaram a ela, até mesmo o Sr. Poe,
cujas mãos cinzentas surgindo do canto da tela imitavam
toscamente aquela dança de dedos.
- Pesquisamos para você, Borba. Fomos até os confins deste
Universo e trouxemos novidades. Mas saiba que os fatos não vão
ajudá-lo.
Começaram todos um lenta dança ao redor de Borba, e a falar
em jogral com suas vozes musicais.
- Você está confuso com os acontecimentos. Entrou na
Infosfera, que não está reconhecível. Uma réplica de "realidade",
como você anda pensando. É mais do que isso. Planícies, bosques
e outros lugares ainda por visitar... É uma refinada criação que
NÃO é o resultado do trabalho de designers, cientistas, acadêmicos
de IA. É o resultado de algo que perdeu o controle. No nosso
tempo pelo menos haviam menus, grades e comandos. Como
fazemos parte desta criação, esta é a única resposta que não
temos...
- Não que não tenhamos tentado... Buscamos esta informação
desde que nossa consciência iniciou-se. Mas tudo que conseguimos
são dados do mercado de cervejas, arquivos pessoais de Senor
Abravanel, textos de magia negra usados por um ex-presidente
para matar sua família, e outros dados ocos.
- Você não está aqui por acaso. Desde sua saída de SanRio,
tudo foi meticulosamente dirigido. Você está aqui para integrar os
sistemas -- seja lá o que quer dizer isso.
- Não consegue tirar os trodos da sua cabeça porque seu
corpo dorme atrás da pedra coberta de avencas, em estado de
animação suspensa. Deve completar seu caminho, que nós também
não conhecemos, em tempo de salvar sua carcaça da desinstalação.
- No fim do caminho, é claro, está a Caçadora, disse Archie,
com seu sorriso de cartão-postal.
- Que não é Dianna Sommers, nem a mulher que você
conheceu eletrofisicamente. E se é certo que ela é o fim do
caminho, há também muitos obstáculos que mudam as
probabilidades. Muito cuidado. Sabemos que no caminho estão
dispostos sábios, monstros, maniqueísmos e infantilismos de
MUDs e RPGs. Não são todos inofensivos...
Archie terminou de falar e, para surpresa de Borba, deu-lhe
um beijo. Borba sentiu a língua morna insinuando-se em sua boca,
com uma intensidade quase insuportável. Um feroz combinação de
êxtase e angústia tomou conta dele, ao mesmo tempo que percebia
que algo ainda mais estranho estava acontecendo. Os lábios de
Archie cresciam rapidamente e, antes que Borba pudesse reagir,
estava com a cabeça inteira na boca do negro. Incapaz de reagir,
Borba foi engolido, e se viu em pé sobre uma língua imensa, úmida
e quente. Houve um rápido peristaltismo e ele se viu jogado em
uma garganta, um escuro e fundo fosso.
A impressão era de que estava recebendo o calor e o
aconchego de vísceras subterrâneas. Tudo úmido e pegajoso, sim,
mas terno e macio. Borba começou a tatear no escuro, resvalando
seus dedos inermes pelas paredes do que pareciam ser as paredes
de um útero terroso. Pensou que agora a imagem da rede sensitiva
o estivesse colocando em uma situação de procurar Atlântida no
centro da terra ou coisa assim. "Os fantasmas estão começando a
perder a graça, a começar por aquele estúpido proteu."
Apesar de saber que seu corpo real ainda estava na caverna, a
situação se inclinava para algo mais concêntrico, como as esferas
concêntricas de Ptolomeu. As intervenções potentes da rede tinham
um limite em um cérebro moribundo.
Borba pensou que a confluência entre uma possível morte e
um suposto nascimento anulariam qualquer amplificação de seus
falsos sentidos por smart drugs e espaço vago. Sabia que estava
morrendo e isso fez com que um enorme caldeirão de benfazejos e
ternuras caíssem em seu âmago regenerado e refeito.
Todos os males pelos quais havia passado tomaram a forma
de um perseguidor invisível frente a uma presa com o final do
mundo em sua frente. Isso era literalmente uma luz no final de um
túnel; um túnel através do qual entrássemos quando saíssemos.
"Isso seria um renascimento?"
Ao pensar isso, Borba sentiu uma enorme jibóia se enroscar
com intuito sufocador em seu pescoço. O ar que antes era farto,
passou a ficar rarefeito. Mas aquilo não era uma jibóia, era uma
espécie de cordão umbilical. Um enorme mal-estar começou a
tomar conta de seu corpo quando, finalmente, houve um esforço
externo para que aquela situação tivesse um fim. E, realmente, o
réptil ou cordão umbilical virou um texto da representação de uma
fita de DNA.
Ele sentiu claramente que estava dentro de alguma coisa -- e
essa coisa tinha algo de materno. Mas não era possível uma
situação de nascimento post-mortem, pois a consciência de sua
vida real anterior ainda o atormentava com mensagens de
resistência e sobrevivência.
Então, a única e verdadeira hipótese era de que tinha sido
engolido por algo que tinha o peso dos séculos em suas costas,
algo de eterno e cômodo como um sono sem sonhos dentro da terra
de ninguém da Rede. Seria ele um Krishna dentro da mãe universal
dos caracteres? Seria ele o signo de um Jonas? Borba percebeu que
a própria caverna em que seu corpo real estava definhando poderia
ser o interior de um bisão desenhado dentro de uma caverna pré-
histórica. O verso e o reverso estavam conectados por uma secreta
identidade, como um cristal dilapidado ao lado de uma pedra em
estado bruto.
Entretanto, por um breve momento pensou ter visto uma linha
de texto com a seguinte expressão:

server.loging
S:535453535767479737 S:8786895094886878687878

Aquela pessoa que o salvou do sufocamento estava tentando


passar o código de uma porta. A porta para um computador que
estava ligado ao grande Servidor por um portal paralelo. Se ele
passasse por aquela porta talvez pudesse mandar uma mensagem
de socorro.
Mas o que ele pensou ser o seu sinal de vida, se transformou
em um texto assustador. Dava para ler algo assim: "VOCÊ ESTÁ
NA TERRA BRUTA E UM POLICIAL DEGENERADO
RESOLVE COLOCAR VOCÊ EM UM PAU-DE-ARARA PARA
EMPALÁ-LO COM UM CASSETETE DE UM METRO".
Borba agora estava querendo mais do que nunca o
aparecimento do proteu, uma esperança combalida, mas quem
surgiu a sua frente foi um homem vestido com uma manta negra
que tinha os olhos muito penetrantes. O homem viu Borba e disse.
- Dessa vez eu aposto o dobro ou nada no jogo de xadrez.
Um tabuleiro surgiu do nada. As peças não estavam dispostas
corretamente para o início do jogo: os peões faziam um cerco ao
rei e a rainha estava no canto da torre. Mesmo assim, o homem
começou a jogar.
Após ter feito o primeiro lance, o homem olhou para o
adversário com um olhar não terreno. As duas pupilas pareciam
duas jabuticabas lustradas e espelhavam muito bem o ambiente.
Borba olhou fixamente, como que hipnotizado por aqueles olhos e
viu refletido neles sua face. Ele parecia velho e cansado, uma
pessoa envelhecida antes do tempo. Os olhos ocuparam todo o
campo de sua visão, fazendo aquele homem sumir por completo. O
homem era agora inteiramente um espelho, e nesse espelho Borba
viu refletido não a paisagem pastoril da rede, mas um quarto de
hotel da era Vitoriana. O espelho não estava refletindo a paisagem
real, e sim uma paisagem mental, de uma mente alheia.
- Borba! Borba! Você está me ouvindo?

Borba pensou que ia vomitar em golfadas virtuais, pois agora


estava definitivamente enjoado. Rodopiou dolorosamente, cada
fibra de seu corpo cada vez mais palpável e sensibilizada...

Todo o movimento parou de chofre. Controlando os


derradeiros engulhos, Borba se viu sobre um prédio, centro de uma
grande cidade. Que cidade!! Até onde sua vista alcançava, Borba
podia ver blocos de prédios baixos, torres, pontes. De algum modo
era um imagem familiar, mas havia tantas incongruências que ele
não tinha mais certeza. Em todos os telhados que via, exaustores
bojudos giravam lentamente, expulsando jatos de ar quente.

Borba caminhou até a borda do telhado e olhou para baixo:


na rua, quatro andares abaixo, veículos improváveis se deslocavam
em quase total silêncio. Pareciam carroças e charretes, tílburis,
trigas e quadrigas, apenas sem os animais. Pelo que Borba podia
ver, eram veículos automotores, elegantemente pilotados por
homens e mulheres em roupas vistosas e pesadas. As trigas e
quadrigas eram nitidamente os carros mais comuns, conduzidas em
pé por seus motoristas. Inclinando a cabeça, Borba viu que a rua
que estava olhando desembocava em uma larga avenida, alguns
quarteirões adiante, onde um número pouco maior de veículos
emitia um sussurro grave. No cruzamento, um curioso arranjo de
faixas luminosas azul e púrpura parecia funcionar como sinal de
trânsito.
Borba ouviu um sibilar abafado vindo do alto. Olhou para
cima e flagrou um imenso dirigível passando sobre o prédio, a
poucas dezenas de metros de sua cabeça. Em forma de charuto, a
aeronave devia ter uns duzentos metros de comprimento. Borba
podia ver perfeitamente os pequenos rostos nas muitas janelas do
zepelim. O corpo do dirigível era pintado de amarelo e preto e
grandes ideogramas desconhecidos estampados a cada vinte
metros. O gigante passou lentamente, sem que Borba pudesse
identificar hélices, turbinas ou outro meio de propulsão. Ainda
olhando para o céu, Borba percebeu cada vez mais encantado que
havia vários dirigíveis em vôo, de diversos tamanhos. Mas havia
coisas ainda mais estranhas naquele céu: discos de luz que
pareciam estar na estratosfera iluminavam toda a cidade,
refletindo-se nas águas dos canais e do que parecia ser o mar no
horizonte.

Em meio à fascinação pela esplêndida cidade, Borba


começou a sentir um certo desconforto. Percebeu que estava com
fome. Seu corpo de verbo era cada vez mais carne, e outras
necessidades fisiológicas estavam começando a afligi-lo. No alto
do prédio, começou a procurar uma saída, algo que se abrisse, um
caminho para um banheiro, um chuveiro, uma cama, uma
geladeira. Mas além dos exaustores metálicos, estreitos e perigosos
demais, não havia nenhuma saída visível. Uma escada de incêndio,
talvez? Borba deu então a volta completa no topo do edifício,
olhando para baixo em cada um dos seis lados.

Via apenas janelas sem parapeitos, paredes lisas e ruas, vinte


metros abaixo. E se pulasse? Afinal, estava na Infosfera. Quantas
vezes pulara em abismos simulados? Muitas. Mas nunca sentira
fome, sede ou vontade de mijar no espaço virtual. Se seu corpo
sentisse isso, bastaria retirar o pluge, esfregar os olhos, levantar e
comer beber mijar. Aqui... o que aconteceria? Seus ossos e carne se
espatifariam fractalmente na rua, espalhando miolos de pixels pelo
pavimento? Ele emitiria seu último suspiro em .wav ou .au? Estava
com medo de tentar.
- Pode pular, não há perigo.
Borba se assustou com a voz grave quase dentro da sua
cabeça. Era o monge Ricci, sentado ali na amurada, roendo uma
maçã com seus dentes pequenos e escuros. Das doze mil perguntas
que surgiram na mente de Borba, quase todas filosóficas, uma se
acotovelou sobre as outras.
- Me dá um pedaço dessa maçã? Estou morrendo de fome,
Matteo...
O monge sorriu e mostrou uma cesta de vime do seu lado.
- Vamos fazer um pequeno lanche.
Da cesta, Matteo tirou uma toalha xadrez, que esticou no
chão, duas garrafas de bebida, pão, um presunto defumado, um
queijo e várias maçãs. Arrumou tudo sobre a toalha, e Borba saltou
sobre o arranjo, sem se preocupar com a educação. Por vários
minutos, Borba se concentrou apenas na comida, engolindo
grandes bocados de queijo e presunto, bebendo dois copos inteiros
de um vinho excelente. Depois se acalmou, comeu um pouco de
pão e duas maçãs, bebeu agora uns goles d’água. Quando ergueu a
cabeça, viu o monge o observando com um sorriso.
- Sente-se melhor?
- E como...
Borba imaginou que agora deveria ordenar as onze mil,
novecentas e noventa e nove perguntas restantes em ordem de
relevância.
- O que é esse lugar, para começar?
O monge guardou as coisas na cesta e então levantou-se,
debruçou sobre a amurada, olhando para a cidade iluminada, com
suas pontes e torres. Suspirou.
- Borba, meu amigo, aqui é para onde seus amigos ciganos te
mandaram. Archie considerou que aqui você acharia respostas para
sua situação. Acredito, de certa forma, que ele estava certo. Venha,
vamos descer.
Matteo pegou a mão de Borba e, sem avisar, saltou a
amurada. Borba fechou os olhos, instintivamente. Mas os dois não
se arrebentaram na rua. Quando Borba abriu os olhos, estavam na
calçada. O trânsito, visto de perto, era mais interessante ainda. As
trigas e aurigas eram veículos elegantes, suas laterais tinham
painéis brilhantes, cujos motivos variam de veículo para veículo.
Os condutores eram curiosos: figuras andróginas vestindo roupas
leves e claras, alguns usando capacetes, outros turbantes cor de
areia.

O trânsito fluia em quase completo silêncio. Quando Matteo


indicou a Borba para atravessarem a rua, o tráfego retardou-se
suavemente, sem que nenhum veículo precisasse de fato brecar.
Os dois seguiram pela calçada até a esquina da avenida que
Borba vira do alto do prédio. Enquanto andava, Ricci começou a
recitar.
- Testar antes com modelos. Projeto e modelagem. A
tecnologia -- e a arte -- de produzir modelos perfeitos de qualquer
coisa já existem integralmente há mais de meio século. Tudo que
possa vir a existir, de um encaixe de parafuso até as colheitas de tal
variedade de grão, pode hoje ser modelado com perfeição. Na
Infosfera, ou no início, nas pequenas porções particulares da
Infosfera, qualquer projeto pode ser desenvolvido e testado em
simulações, dramatizações hiperrealistas. Os cibercratas chamam
esses modelos de infóides. Os infóides eram -- e são -- usados
basicamente para exercitar as situações físicas sociais mais comuns
da sociedade. Os governos usam boa parte da Rede para manter os
infernos urbanos que você conhece -- no limite do suportável.
Infelizmente funciona...

Havia um efeito hipnótico na voz do monge. Borba começou


a abstrair-se daquela que era a mais estranha situação da sua vida.
Já conseguia ouvir um discurso sobre simulações sem ser agredido
pelo fato de tanto o monge como ele eram simulações num
desconhecido universo simulado. E pensou horrorizado na
monotonia chapada dos guetos estratificados e numerados de
SanRio, o traçado de grelha tridimensional acomodando quase cem
milhões de pessoas. Pensou nos colossais enganos sociais que
estavam refletidos na idéia de cidade neste século.

Como um relâmpago, surgiu em sua mente algo que havia


visto na última noite na cidade, a caminho do aeroporto. O carro do
Lab deslizava pela Linha Dez e Borba havia parado de revisar suas
anotações e estava olhando as ruas do caminho. Dezenas de
quilômetros construídos, em linha reta, em qualquer direção. Então
notou que em quase todas as esquinas havia grandes caixotes de
fibra ou papelão. Embalagens de grandes eletrodomeésticos. Kits
familiares de descontaminação. A embalagem preta de uma
poltrona Parker. Borba estava se entretendo, tentando adivinhar
todas as marcas e modelos dessas embalagens enquanto o carro
passava rapidamente por elas. Foi quando viu uma pessoa entrar
em um dos caixotes.
Virou o rosto e encontrou os olhos do motorista, que disse
secamente.
- ...e imaginar que todos esses coitados pagam para dormir
nessas embalagens...
Borba sentiu uma aguda pontada no estômago e a voz de
Matteo voltou a ser audivel.
- Mas, meu caro, o que você está vendo é outra coisa. Esses
são os infóides indesejados, o refugos dos planejadores do mundo
real. De alguma forma -- não por acaso, suspeito -- esses modelos
descartados ficaram orbitando um atrator de Lorenz muito forte.
No interior de algum processador DNA, caro e particular, os
infóides proscritos acabaram sedimentando-se numa forma cada
vez mais ordenada. Afinal, foram criados para serem impecáveis.
Modelos bons demais para o povo pagador de impostos reunidos
nessa utopia, florescendo, evoluindo. Tudo o que você vê, a cidade
inteira, são modelos bem sucedidos demais. Dos edifícios até os
cidadãos, todas as especificações foram cumpridas e aprovadas --
mas nunca aplicadas. Exercícios teóricos...

Nesse momento chegaram a uma estação de monotrilho.


- Vamos dar um passeio, disse o monge e entrou em um dos
vagões. Borba percebeu que o vagão não estava nem cheio nem
vazio; de fato, estava com uma ocupação perfeita: algumas pessoas
sentadas, outras em pé, todas em posturas relaxadas. Borba sentou-
se ao lado de Matteo Ricci e percebeu que o assento era
extremamente confortável -- o modo como as curvas se amoldavam
às costas e ao traseiro. A disposição dos assentos dava ao vagão
uma aparência de sala de estar -- muito agradável. O trem entrou
em movimento e começou a ganhar velocidade.

Borba estava extasiado. O traçado do trilho percorria blocos


angulosos de prédios dispostos em meio a bosques e praças,
estruturas que pareciam grande plantas industriais, cúpulas radiais
que refletiam a luz e parques imensos. O trem deslizava silencioso,
cruzando pontes suspensas sobre os canais que serpenteavam pela
cidade. Borba viu que estavam saindo da área urbana. Matteo
continuava falando, sua voz monocordia de velho missionário.
- Longe dos olhos dos planejadores estúpidos, a cidade ideal
cresce, harmoniza-se, até corrige a si mesma. Aquela construção e
um bom exemplo.
Borba olhou para a direção apontada pelo velho e viu algo
muito estranho. No que parecia ser um “terreno baldio”, havia um
arranha-céu com um boa centena de andares. Reluzindo em azul e
roxo, com platôs e curvas -- uma forma de gosto duvidoso, mas
bem impressionante. Mas Borba viu a torre começar a se
desmanchar, dobrando sobre si mesma de um modo impossível
para a matéria sólida.
- Provavelmente, o arquivo desse prédio está sendo
compactado -- para ser reformado, ou cancelado de vez. Ah, e ali
está outra coisa interessante.
Borba olhou para o outro lado e viu o que parecia uma
cogumelo azul de cem metros de diametro brotando do terreno.
Enquanto olhava, as estruturas comecaram a se definir no
cogumelo informe. Em um instante, tornou-se um domo
envidraçado, erguendo-se sobre colunas de vinte metros.
- Parece que esse centro de artes dramáticas foi finalmente
aprovado. Pessoalmente, acho um pouco jetsons demais.

Borba ia perguntar quem “finalmente aprovara” o prédio --


que sim, era um pouco jetsons demais -- mas o trem estava parando
em uma grande estação. Ao saírem do vagão, ele percebeu que os
outros passageiros haviam simplesmente evaporado. Matteo voltou
alguns passos ao perceber o olhar intrigado e murmurou
- Modelos...

Borba ficou olhando o trem sumir na linha do horizonte.


Quando se voltou para perguntar para onde iam agora, notou que
Matteo Ricci havia sumido mais uma vez, e mais uma vez ele
estava desamparado na Infosfera. Chegou a pensar em alguns fatos
sem importância enquanto olhava os trilhos que sumiam no
horizonte, numa reverberação de dia quente. Resolveu começar
uma longa caminhada pelo trilho. Pelo menos era uma trilha reta.

Depois de alguns minutos de caminhada, ele se deparou


finalmente com o final. O trilho acabava subitamente, sem deixar
vestígios de qualquer continuidade. Ele concluiu que se voltasse, o
trilho iria apresentar o mesmo comportamento: acabar no nada.
Nada! Nada! Nada? Não!

Borba lembrou-se do vislumbre que tivera de uma sequência


de porta, durante a agonia que tinha sido o “engolimento” pelo
cigano Archie. Conseguiria recuperar tudo?
S:535453535767479737... Borba lembrou que ele alugava um
pequeno PADk virtual na Infosfera, e que ele sempre ficava a mão,
ou seja, em um compartimento de sua jaqueta de tafetá numérico.
Com um PADk à mão, ele poderia escrever algumas linhas e tentar
montar um programa, um remendo que permitisse rastrear aquele
número de porta, que alguém dificultosamente conseguiu lhe
transmitir. Em meio a um deserto que parecia ser o deserto onde
imperou Saladin, ele se acocorou, retirou o PADk e apertou o on.

Olhou para a costumeira mistura de chiados e bitmaps que a


pequena tela de cristal líquido apresentaria nos primeiros segundos.
Mas os bitmaps cacograficos, ao invés de sumirem para dar lugar
ao prompt, só faziam chiar, agudos.
Pobre Borba! Estava em uma ducha de bitmaps grudentos, e
isso tinha cara de ser uma coisa provocada! Ele ouviu uma risada.
- Quem está aí?
Uma voz em tom de triunfo respondeu.
- Sou eu... Seu primo Trasíbulo. E não adianta mexer no seu
PADk que eu estou usando uma rotina que impossibilita o uso
dele.
Aquilo não era possível! A configuração da Infosfera não
poderia estar fazendo tamanha brincadeira de mau gosto. O primo
Trasíbulo foi um trauma, um elemento muito negativo em sua vida.
Ele pisava em pintinhos e fazia brincadeiras horrorosas com todas
as crianças da rua. Além do mais, o primo Trasíbulo havia sumido
há mais de cinco anos sem deixar vestígios. Seria aquela aparição
uma falha de algum engrama de sua memória?
- O que você quer comigo? O que está fazendo aqui?
Um menino gordo, com a cara cheia de espinhas e cabelos
oleosos, vestindo um conjunto safari surrado e horrendas botinas
ortopédicas, surge na frente de Borba.
- Ora, ora, ora. Mas esse não é o meu priminho Borba,
tambem conhecido como... Vitelinha?
A pronúncia daquele apelido de infância era um prenúncio do
terror e um prurido do mal inocentado. Borba tentou manter a voz
firme e indiferente.
- Fale logo, Trasíbulo. O que você está fazendo aqui?
- Digamos que estou dando uma voltinha, a procura de um
bom saco de pancada.
A imagem de Trasíbulo tinha uma coloração indefinida,
contornada por uma variação de pontos estocásticos e linhas duras.
Era como se o Hergé houvesse feito o desenho de um vilão com
pigmentos de terra roxa e um pincel de ideogramas.
-Vai encher a vovó, Trasíbulo. Eu estou tendo sérios
problemas. Sérios problemas! Entendeu?
- Você é muito burro para não ter percebido que agora EU
sou o problema.
- Você? Não entendo...
O primo recolheu um pigarro e disse.
- Vou contar uma historinha: era uma vez um menino muito
mau, que só pensava em coisas ruins [a planície se estendia por
milhas até encontrar uma imensa formação de granito, com
sedimentos embutidos de pedregulhos e ágatas. Era possível ver
na porção sudeste da planície um conjunto de palmeiras e um
pequeno riacho de água terrosa, já que as chuvas de monção eram
frequentes naquela época do ano] aham, humm, hum, bosta de
engenhoca. Ouça agora a MINHA historinha: Um dia, um anjo
chamado Miguel, cansado de observar tantas maldades em um
menino mal, surgiu em sua frente e disse: ´Menino, se você fizer
mais uma maldade, vou fazer com que você fique bebendo água
pura dos Alpes por toda a eternidade´. Aquilo realmente era uma
ameaça séria, pior do que qualquer privação de sobremesa. Porém,
o menino continuou com suas maldades. O anjo Miguel então foi
obrigado a tomar uma providência. Mas o menino era muito
esperto e, quando o anjo desceu à Terra, o menino abriu uma
garrafa de EVIAN, e ficou tomando na frente do anjo. O anjo então
disse: ´Não basta uma garrafinha de água... Você vai tomar um
oceano infindo de água pura´. O menino responde: ´Mas eu já
queria ir me acostumando´. O anjo surpreso pergunta: ´Não adianta
me enganar, menino...´. O menino espera o anjo chegar mais perto
e cospe a água que tinha na boca no rosto do anjo. O anjo se
liquefez, pois os anjos são, como dizem os místicos, seres líquidos
que não podem entrar em contato com água. O menino ganhou a
batalha, eh eh eh. Deixei-o com mais sede?”.
Borba reconheceu a tenebrosa rotina de discursos
interpolados por descrições detalhadas, e para tirar a dúvida,
pergunta.
- Ei, primo, me diga uma coisa, voce sumiu e foi dormir e
comer aonde?
- Vou contar uma historinha: era uma vez um menino muito
mau, que só pensava em coisas ruins [em uma vereda de caminhos
entrincados por brotões de flores que têm o estame em forma de
cânulas, e que quando banhadas pelo sol a pino, adiquirem um
tom verde-azulado que, apesar do reflexo contra, engolfa todos os
sombreados com raiadas de fogos espraiados] anham, humm,
diabo! Essa bosta de engenhoca que aqueles caras colocaram na
minha cabeça... Às vezes acho que não vou falar nunca mais por
mim mesmo... Mas como eu ia dizendo, meu primo idiota, você
está em uma desvantagem gritante.
Borba percebeu que aquela interpolação descritiva no meio
do discurso de Trasíbulo não passou de uma evidência. "Estame
em forma de cânula"? Isso é descritivo até as raias do absurdo.
Hipótese: o primo entrou para uma seita de pertubados
programadores que viam na representação eletrônica de imersão
um insulto à verdadeira representação eletrônica -- a representação
puramente textual. Hoje, graças ao projeto Júpiter, não são claros
os motivos para uma luta interna ou para uma clivagem bruta entre
realidade virtual por imersão e baseada em texto.
Mas a seita, por ser uma seita, pregava com veêmencia que
somente a descrição textual -- de preferência a mais detalhada
possível -- poderia fazer com que as imagens pré-fabricadas
deixassem de reinar na Infosfera.
- Ah, seu puto!! Você entrou para a seita dos neo-descritivos,
não foi?... Você enlouqueceu?
- Não, Vitelinha... Não enlouqueci... Eu só quero continuar
fazendo minhas coisas, você sabe, esmigalhar o queixo de uma
pessoa com um taco de “bets”, fazer ela precisar de uma prótese,
eh eh eh, fazer isso e não ser castigado, não ser advertido, não ser
morto, e ainda pagar pouco em troca.
Borba considerou sua falta de sorte, ao estar em perigo nos
dois universos, e esse perigo era muito mais sinistro que uma mera
querela filosófica entre realistas e idealistas.
- Mas, Trasíbulo... Você não tem compromissos com aquela
seita? Quero dizer... Você precisa cumprir certas regras para poder
circular na Infosfera com a senha deles. Como você consegue...?
- Simples. Eles me fizeram um pequeno implante na minha
nuca virtual: um neuro-transmissor artifical que faz com que toda
minha fala venha interpolada com frases descritivas. As frases são
patches que recodificam algumas linhas do programa de imersão
no compartimento imediato. Mas quando eles querem fazer uma
demonstração de força terrorista, lançam as famosas bombas de
docuversos, que são programas que ligam bilhões de descrições
espalhadas pela Infosfera. O único requerimento para entrar na
seita dos neo-descritivos é interpolar descrições nos discursos
pessoais e lançar uma bomba ou outra de vez em quando.
Borba apreciava a representação eletrônica baseada em texto,
mas não gostaria de perder a chance de visitar o Zenith e o Saco
Preto do Zebu, lugares dentro da Infosfera reservados aos
programas de modelagem virtual 3D por excelência. Trasíbulo se
aproxima mais e diz.
- Tem um pequeno detalhe: eu vou daqui a pouco lançar um
docuverso que vai transformar todo esse deserto em um jôrro
descritivo... Talvez fique mais difícil você fazer algum contato, eh
eh eh, então não vamos perder tempo. Eu trouxe aqui um
presentinho...
Subitamente, Trasíbulo se transforma em uma espécie de
bicho-papão, uma cruza entre Nosferatu e Michael Myer e diz com
voz distorcida.
- Vitelinha, venha para o curraalllll! Vitelinhaaaaa! Venha
para o curraalll!
Borba vê que Trasíbulo segura um gancho de açougueiro. A
ponta foi limada até o último angstron e brilhava com o sol --
como algum sol, pelo menos.
- Vamos ver o que acontece se eu enfiar esse gancho no seu
olho?
Se Borba perder seu corpo etéreo na Infosfera, seu
salvamento no plano real seria prorrogado para sempre. Ele
percebeu que seu PADk ainda estava ligado e, num relance, teve
uma idéia que poderia custar sua vida.
- Espere um pouco, Trasíbulo, antes de você me furar, quero
que você lance o docuverso... Eu gostaria de morrer em um
ambiente verbal... Eu adoro os ambientes verbais, e você sabe
disso.
O primo disse sádico.
- Para mim não faz a mínima diferença, eh eh eh.
Trasíbulo se concentra então, como se estivesse pronto para
defecar.
- Vou lhe contar uma historinha: era uma vez um menino
muito mal, que só pensava em coisas ruins
[row4;ifend;section72;segm49;endif;to;row5;ifend;section73;seg
m50;endif...]
Borba aproveitou essa brecha de Trasíbulo para conseguir o
prompt e digitar um comando de interrupção de tarefas. Fazer
interrupções naquela linguagem arcana era coisa de calejados,
coisa para programadores experientes como Borba. O primo se
calou imediatamente.
O programa do docuverso havia quase se completado, e as
bilhões de referências descritivas feneceram na boca de Trasíbulo
logo após terem sido executadas. Seu rosto assumiu um tom muito
escuro de roxo, como se ele estivesse segurando a respiração. A
quantidade descritiva que foi interrompida em sua boca poderia
soterrar uma cidade com uma avalanche de frases descritivas. Sua
cabeça explodiu; uma voz saiu de seu tronco decepado e disse.
- Garoto esperto. Garoto esperto. Vou ter que refazer minha
cabeça tudo de novo... Demorei dias para descrevê-la!
O tronco se curvou para frente e cambaleou em direção ao
sol.
O corpo físico de Borba, desmaiado em meio ao nada, ainda
tinha um resto de consciência, apesar de os dedos estarem imóveis
há um grande tempo. O terminal interno estava ficando fosco,
obrigando o uso de um tekminator reserva instalado no seu
labirinto. O tekminator estava intimamente conectado com os
pequenos teclados de um console virtual.
Esse deserto em que estava na Infosfera foi muito bem
programado, pois até a sensação de calor era convincente. Havia se
livrado de Trasíbulo, aquele primo que tanto lhe importunou na
infância, mas não havia se livrado dos inúmeros descaminhos até
agora. Ele já deveria ter encontrado um portal certo para a base de
dados há muito tempo.
Quando estava pensando nisso, ouviu uma voz que vinha
correndo em sua direção; uma voz lisa e pegajosa, como a couraça
de um proteu.
- Borba! Finalmente o encontrei! Você esteve andando outra
vez com aquele monge maluco? Então aqui vai meu apelo: tenha
santa paciência! Você não está percebendo a gravidade da sua
situação? Pense bem: você nunca mais quer chegar em casa após
um dia cheio de trabalho (não um trabalho tedioso, mas um
trabalho que desepertasse incontrolavelmente seu interesse), tomar
uma ducha quentinha, sentar numa poltrona e comer uma pizza de
escarola? Depois... Deitar em uma cama quentinha e depois, uma
mulher bem quentinha, com uma...

Borba estava chegando ao paroxismo da irritação e do


desgaste.
- Muito bem, proteu. O que você quer que eu faça? Para onde
quer me levar? Para uma volta no bosque que não é!
Mas o proteu mudou o tom de chofre.
- Você precisa de um portal, não precisa? Precisa de alguém
REAL que o conduza até o portal da salvação, e não um estúpido
daemon como eu, não precisa? Pois eu posso oferecer isso a você.
Só preciso um pouquinho de cooperação e boa vontade. Eu estou
fazendo a minha parte... Não lembra do número do portal...?
Aquilo foi obra minha.
- Então aponte o portal logo e deixe de tergiversação! Por quê
sempre que o sigo entro por descaminhos, desvios e encontro toda
sorte de monstrengos?
- Não sei... interferências na bandagem... Não sei. Só sei que
você precisa me seguir exatamente para onde eu for. SEM
ESCALAS!
Borba começa a seguir o proteu em fila indiana. A vegetação
era uma curiosa interpretação de uma caatinga, rasteira e
espinhosa, mas com pinos e cabos coaxiais estilizados como folhas
e galhos. Olhar para ela ressecava sua boca, apesar de ele saber
que, internamente, aquelas plantas não tinham nada de ressecadas.
Bromélias. Bromélias exuberantes de estofos espumados, com os
filetes [...].
Que foi isso? Será que o docuverso de Trasíbulo foi
detonado de alguma forma? Borba começou a perceber que
precisava se concentrar agora mais do que nunca. Concentração.
Concentração. Talvez se ele abrisse os olhos, ainda pudesse ver o
proteu caminhando a sua frente. Ele abriu os olhos e viu que o
proteu estava lá, correndo e gritando.
- Vamos, vamos. O tempo urge!
- Pelo amor de Deus, proteu! Para onde está me levando?
O tom agora era de desespero.
- Não pergunte, só me siga.
As poucas descrições que o docuverso conseguiu produzir
foram sumindo aos poucos, como as últimas manifestações de um
peixe morrendo fora d'agua. Se aquele docuverso tivesse
realmente funcionado, ele já estaria caminhando por um oceano
descritivo com gigantescas ondas de minúncias. Por quê não
confiar no proteu? Os caveats do proteu tinham fundamento, e ele,
se quisesse sobreviver, teria que acatar com cada um deles.

Borba abria e fechava os olhos, que sofriam com os reflexos


luminosos da paisagem. Pels estourados no toco, diria algum
técnico de neTV.
- Proteu, esse negócio não tem um botão de brilho? E esse
calor é de foder!
Borba viu que o réptil arremedou-lhe a cara de sofrimento e
pôs a língua bifurcada para fora.
- É ótimo para seres de sangue frio, meu querido mamífero...
E continuou andando. Agora, a paisagem estava ficando
pedregosa e parecia que estavam começando a subir.

Borba lembrou-se de um livro de papel que lera, chamado


“Realidade Virtual para Prazer e Negócios”. Que nome terrível,
meus santos! Realidade virtual era uma coisa que pessoas
idealizavam muito a respeito no século passado. Poucas daquelas
promessas e profecias se cumpriram -- e pouquíssimas faziam
referencia ao almoço gratuito. O infotenimento de alta qualidade
desinformou demais as pessoas. Abriu-se então uma brecha para o
que começara com teorias acadêmicas de educratas norte-
americanos sobre uma neolítica rede de inteligência militar se
converter... nisto. Neste “it”.

E isto estava de maus bofes, piorando sensivelmente no


decorrer do período. O calor, a trilha pedregosa que se inclinava,
um guia que era um bicho feio, um lagarto albino que agora estava
montado num modelito ultrapunk, cheio de adereços pontudos. E o
desgraçado ainda cantava, ou resmungava, uma música cujo refrão
terminava num “óóóóó” agudo.
O refrão era chato. O calor era chato. A caminhada era chata.
Que porra!! Borba chacoalhava a cabeça, um tanto de histeria,
pensando que aquela situação maravilhosa inédita extraordinária só
estava conseguindo aborrecê-lo cada vez mais.
Borba parou de repente. O que estava fazendo ali? Um frio na
barriga e a cibernáusea o atingiu em vagalhões, um bode dos
infernos. Ele ajoelhou-se na perfeita réplica de uma duna de areia
fina. De joelhos na areia artificial, eis que nada era aquilo. E Borba
sonhou, no meio daquele delírio de comum acordo. E o sonho era
uma lembrança, uma vívida lembrança de uns dez anos antes.
Era uma sala escura e abafada. Tinha umas mais de vinte
pessoas sentadas lá, a maioria fumando tabaco. Era um encontro
secreto, uma clandestinidade fajuta easy rider laid back. Umas
meninas tossindo, uma risadinha. E os dois loucos. Os malditos, os
professores. Ele e ela. Ele era o venerando Dr. Júlio, nosso
segundo Nobel. As barbas longas e brancas, o terno antiquado e os
sapatos folgados podiam ser reconhecidos até nos grafites mais
vagabundos. Uns bebiam suas palavras como o maná. Outros o
chamavam de fascista insensível -- pelas costas, claro.
Ela era a Profa. Dra. Dorotéia Pereira.

Esse encontro secreto era a aula deles. E eles pediram


silêncio. Silêncio. Por favor, coloquem os plugues. E...

Um transatlântico. No meio do mar, mormaço e nevoeiro muito espesso.


Sentia o leve movimento, uma calmaria. O navio vazio, vazio. Apesar do cheiro de
maçã fresca e do charuto aceso neste camarote da segunda classe. Uns sons
distantes, distorcidos, que foi seguindo até um imenso salão de festas, totalmente
deserto. Os sons eram de uma canção antiga, um fox-trot tocado por uma big band
de bonecos, como a do Dr. Phibes. Ali, uma porta para uma pequena sala, onde a
neblina era quente. Algumas cadeiras estofadas, em semi-círculo ao redor de uma
tela. Um velho projetor zumbia, e a imagem na tela era uma colagem de trechos de
filmes conhecidos, na maioria comédias. Percebeu que estava vestindo apenas uma
toalha úmida, que deixou cair. Olhou para baixo e viu gotas de suor escorrendo
pelas pernas, caindo da ponta do prepúcio, dos pelos do saco. O filme era meio
grotesco, as cenas se borravam, quase irreconhecíveis. E a big band começou a tocar
o Réquiem, umas vozes que vinham de todos os lados, gritando latim. Saiu dali para
o convés, e começou a correr, sentindo-se refrescado por uma rajada fresca, um
spray de água salgada. Chegou até a popa, olhou para baixo. O sol baço refletia-se
sobre o mar coberto de sargaço, imensas algas cor de terra, que pareciam segurar o
navio no lugar. Corredores, respiradouros, escadas brancas. Os olhos brilhantes da
bóia de cavalinho, flutuando abandonada na piscina, cercada por dezenas de
espreguiçadeiras vazias.

E a sala com cheiro de tabaco. Uma tosse. Absoluto silêncio


por longos segundos, até que alguém explodiu porta afora,
engasgando de náusea. Um Outro nem se preocupou em levantar
para vomitar. Em instantes, a sala ficou quase vazia, como se uma
campainha tivesse tocado.

Os que ficaram. Ouviram ele e ela.


- Funciona.
- Mas não como queríamos. Ninguém se encontrou Lá. Foram
todas tripes individuais, sem sincronia.
- Mas em perfeita imersão! Uma vantagem expressiva sobre o
ARL dos orientais.
- Não, não estou nada satisfeita. Vamos encarar o fato de que
não conseguimos multiplexar trinta emulações de REM
sintetizadas -- só conseguimos jogar cada um no seu próprio navio-
fantasma.
- Mas o sensorama é perfeito, minha cara. Vocês não
acharam?
Borba e uma meia dúzia de quatro balançaram a cabeça,
ainda mudos de choque e perplexidade.
- Claaaro que é... Testamos cada item. Até o suor escorrendo
dos genitais, seu velho picareta! Tudo conduzido suavemente,
macio, macio. E daí? Afetamos os estômagos sensíveis -- que nojo!
-- e fornecemos um eletrobaque para os outros. Desculpem aí,
gente...

Sentia o calor e a náusea. E calafrios números gelados


explodiam na sua cabeça populações rendas revoluções mecânicas
e quando concluíram que era mais barato construir estações em
órbita usando RV e operários na Terra ora os pobres que bom que
tudo se conservava perfeitamente no porco capitalista plutocrata
universal abençoado e seu pai e seu irmão e até uma vez sua mãe
entraram naquele grande salão com teto de plástico duas centenas
de colchonotes de espuma papai vestia aquele escafandro elástico
tão quente com uma cara impassível e profissional colocava a parte
de baixo a parte de cima e as luvas e aqueles olhos sumiam debaixo
do capacete preto quente pracaralho deitado no colchonete como
tantos outros esperava um sinal um apito triste em dó menor e de
repente todos começavam a mexer os pés e as mãos e cada uma das
duzentas mímicas ridículas trágicas cretinas no calor tropical
significava que um dos duzentos robôs lá longe no vácuo, bem
acima da ionosfera, movia uma chave erguia uma viga apertava
encaixes e rebites e meses depois montava uma imensa roda cheia
de tubos a oitocentos quilômetros de altura no vácuo do espaço
ninguém da minha família visitou qualquer estação mas eu sim
porque com dez horas por dia papai pagou a faculdade a linha
telefônica e ele conhecia umas pessoas que puderam ajudar.

Uma cascata de lembranças engasgadas, de recusas, de coisas


que um dia foram covardes, sensatas hoje. Borba experimentou e
rejeitou muitas micropolíticas no campus. Entrou em umas
quintacolunas apaixonantes, várias vezes usado por carreiristas que
hoje são doutores respeitáveis... Tantas madrugadas jogadas fora
com discussões sobre a sociedade -- sem mover uma palha por ela -
- e sexualidade -- para terminar batendo punhetas secas, vendo um
pornografia de segunda.

Borba tinha sido um “embrulho”. Entre os acadêmicos,


“embrulho” era o termo para as pessoas que entravam na faculdade
para cursar o curso. De acordo com a estupidez dos veteranos, os
embrulhos eram uma categoria ampla: aqueles cus de ferro que já
chegavam dirigindo um carro zero, aqueles que telecursavam em
casa -- longe, até quinhentos quilômetros -- pagando uma puta
grana pelos exames criptografados. E aqueles -- como Borba -- que
tinham as fichas contadinhas e que sabiam perfeitamente quanto
cada ftp de física ou antropografia custava para o papai. Um pardo
anônimo, que só contava com um terminal padrão e a bolsa parcial
da Bell-SanRio.

O passado se transformou em um vaporware -- era mesmo um


vapor fétido de tristeza -- e Borba sentiu um dedo molenga cutucar
seu ombro.
- Borba! Acorde! Você não pode esmorecer agora!
Realmente, havia sonhado, e isto era como sonhar dentro de
um sonho.
- Estamos quase chegando! Se você me seguir diretinho, não
vai ter mais alucinações.
O proteu mais uma vez enfiou seu belo Phillip Patek no bolso
do colete e saiu correndo em direção ao que parecia ser um parque
de diversões de um filme trash.
Após ter virado a esquina da roda-gigante, o proteu entrou em
uma dependência chamada Câmara das Maravilhas. Mais
problemas ilusórios? Por quê o proteu insistia em pegar os atalhos
mais complicados? Borba notou que a placa onde estava escrito
“Câmara das Maravilhas” encobria um outra placa. Ele conseguiu
deslocar a placa mais para frente e leu a palavra Wunderkammer
entalhada na madeira da placa de baixo.
Aquela referência em alemão por si só era assustadora, algo
como ver os bonecos de cera da Madame Tusseau mexerem os
olhos. De qualquer forma, entrou. Na ante-câmara, havia uma
enorme pintura representando deuses nórdicos caricaturizados, e
era como se Chuck Jones tivesse pintado todos os personagens do
Anel dos Nibelungos por cima dos afrescos da capela Sistina. Ele
se adiantou mais para o interior da câmara.
- Proteu! Proteu! Você está aí? Está me ouvindo??
Ouviu em seguida uma voz rouca vindo da sala posterior.
- Proteu? Quem é proteu?
Borba foi em direção à voz e encontrou um soldado do velho
mundo prussiano ao lado de um portal.
- Quem é você? Onde está o proteu?
- Não sei quem é proteu. Não vejo vivalma a muito tempo.
Borba insistiu na identificação.
- Sou o guardião dos aforismos de Wittgenstein.
Borba não podia acreditar no que estava acontecendo. Sentiu
mais uma vez uma mensagem do seu sistema nervoso central
indicando que seu corpo físico estava prestes a ter uma isquemia.
- Mas como pode ser isso? O proteu havia me prometido que
não haveria mais alucinações.
- Alucinações? O que é isso?
Borba lembrou que um soldado vestido com um uniforme do
antigo exército prusiano realmente não poderia saber das pregações
de Ken Kesey, da filosofia dos travellers, dongas e neo-hippies.
Precisava ter presença de espírito agora e tentar falar na língua do
soldado prussiano.
- O que significam aquelas pinturas na ante-câmara?
- Aquelas pinturas? Ahh. São os deuses do racionalismo
lógico. Eles podem ser invocados para se sair daqui.
- Sair daqui?? Qual é a dificuldade de sair daqui?
- Bem. A dificuldade é que para sair daqui, a pessoa tem que
encontrar uma solução para uma equação montada com todos os
aforismos do “Tractatus Logico-Philosophicus” de Wittgenstein.
- O quê? Mas isso é impossível! O “Tractatus Logico-
Philosophicus” tem muitos aforsimos!
O guardião abaixou a cabeça em um gesto derrotista e disse.
- Eu fui um que não conseguiu. Para dizer bem a verdade, eu
sou o único que tentou e não conseguiu. Por isso resolvi me tornar
o guardião dos aforismos e ficar por aqui mesmo.
Borba começou a ter uma pequena vertigem. O guardião
ofereceu uma chance.
- Quer tentar? Se você souber a proposição de cada aforismo
fica mais fácil. Você vai reparar que os aforismos estão chaveados.
Há números irracionais que vão ter de serem induzidos também.
Não havia escolha.
- Está certo. Vou tentar.
O guardião abriu o enorme portal de ferro e Borba entrou. O
portal se fechou. Tudo estava na mais absoluta escuridão e pela
primeira vez, Borba sentiu um medo real na Infosfera.
- Guardião! Guardião! Mudei de idéia!
Não houve resposta. A câmara foi aos poucos sendo
iluminada por uma luz abstrata. Borba começou a ver o que tinha
pela frente. Ele estava flutuando em uma sala esférica com
gravidade zero. As paredes (se é que aquilo podia ser chamado de
paredes) estavam completamente preenchidas com a numeração
completa dos aforismos de Wittgenstein formando uma gigantesca
equação aparentemente sem sentido.

{2.024}.x {5.46} - y {4.1221} +xy {6.36111}.x+y ...

Aquela tarefa era impossível. Não valia a pena nem tentar.


Pela primeira vez, Borba começou a chorar e chamar pelo proteu.
Quando abriu os olhos viu um adolescente maranhense
vestindo uma calça e jaqueta de couro e óculos escuros. Ele estava
com os pés descalços e tinha a pele muito queimada de sol.
- Quem é você? Você também entrou na emboscada da
Câmara das Maravilhas?
O jovem soltou uma gargalhada e Borba notou que ele tinha
um piercing na língua.
- Não! Não costumo cair nestas ciladas... Permita-me me
apresentar. Sou Haqr de Miritiba. Estava fuçando uns arquivos
aqui perto e ouvi seu choro. Você quer muito sair daqui, não é?
Borba começou a acreditar que os deuses nórdicos haviam
escutado suas preces, pois um programador de primeira grandeza
havia corrido em seu auxílio.
- Como eu faço para sair daqui, pelo amor de Deus? Não vou
conseguir usar meus recursos aqui. Meu PADk não vai conseguir
quebrar esse código. Somente vários processadores turbo ligados
em paralelo...
Haqr de Miritiba disse com toda a calma do mundo.
- Não se preocupe. Eu tenho um pointer que pode localizar
alguns aforismos de grande utilidade aqui dentro.
- Como assim?
- Você alguma vez já foi escoteiro? Lembra de como eles se
orientam dentro das florestas, arranjando pedrinhas e galhos e
formando indicadores e símbolos para não se perderem?
- Sim... Já ouvi falar disso. Mas o que esses aforismos de
Wittgenstein tem a ver com os escoteiros?
- Em muitos dos aforismos há referências gráficas, como o
cubo duplo, etc. Eu posso retirar deles uma indicação de como sair
daqui. Veja...
Haqr de Miritiba tirou o que parecia ser uma pequena pistola
de laser do bolso de sua jaqueta de couro e apontou em várias
direções da esfera. Subitamente, surgiu na frente dos dois, como se
fosse um holograma, dois desenhos:

---- o----------x--x----------o ----

<----------------------------------->
>----------------------------------<
Aquilo não significava nada a primeira vista.
- O que é isso, Haqr?? Esses desenhos estão indicando para
qual direção?
- Notou como meu pointer é eficiente? Deixe-me ver o que
diz aqui...
Haqr de Miritiba olhou um pequeno LED em cima da pistola.
- Hummm. O primeiro desenho diz respeito a uma teoria de
Kant sobre a impossibilidade de colocar a mão esquerda sobre a
direita indefinidamente... Foi tirada do aforismo 4.766. E o
segundo... O segundo...
Borba notou que a expressão do adolescente ficou um pouco
pálida e mais sombria.
- O que significa o segundo desenho?
- O segundo desenho não é um aforismo... Não sei como veio
parar aqui... Meu LED diz que são as setas ilusórias de Müller-
Lyer. A seta de baixo parece maior que a de cima mas o
comprimento de ambas é exatamente igual... Não é um aforismo de
Wittgenstein. É uma cilada preparada pelos meus inimigos...
Houve algum problema hexadecimal... Merda!
- Mas, Haqr... Como eu vou sair daqui usando esses
desenhos...?
Borba viu a voz e a imagem do adolescente sumirem
gradualmente na sua frente, como se fossem teletransportadas para
algum recôndito perdido da Infosfera.
- Merdaaaaaaaa...
Desconsolado com tamanha falta de sorte, Borba reparou que
uma lágrima estava flutuando em sua frente. Fechou os olhos e
abandonou toda a vontade de viver. Talvez fosse melhor mesmo
morrer. E ele estava tendo uma morte digna, como quando
morremos dormindo.
Como que por um milagre, quando abriu os olhos, estava de
novo no descampado textual, no exato local onde começou sua
peregrinação. As alfazemas textuais balnçavam com a brisa. O
proteu estava sentado de pernas cruzadas na sua frente.
- Acorde, Borba! Tenho boas notícias. Consegui encontrar
mais alguns números do nicho da Caçadora na noosfera. Quer ver?
O proteu começou a recitar de cor e salteado.
server.loging
S:535453535767479737 S:8786895094886878687870
S:535453235768479567 S:8786895093886838637578
S:533353533767579737 S:8786395094883878687878
S:535453535767479736 S:8783395094886878687578

O proteu olhou para Borba e disse.


- Mas como é mesmo a última linha?? Lembrei.

S:535453535767479736 S:8783395094886878687578

Neste instante, ouviu-se um clique e a portinhola de um túnel


se abriu. Um sarnento ossudo saiu de lá e do nada “berrou” em seu
latido.
- QUIS, QUID, UBI, QUIBUS AUXILIS CUR,
QOUMODO, QUANDO?
O grande sabugo preto se assomou ao lado deles e trovejou
novamente.
- QUIS, QUID, UBI, QUIBUS AUXILIS CUR,
QOUMODO, QUANDO?
Um cão imenso, com olhos de brasa, couro negro sobre ossos.
E riu uma gargalhada canina, muitos dentes alvos e úmidos. Pernas
de girafa incandescente e costelas que tremiam.
Borba e o proteu entreolharam-se. Borba sentiu o estômago
embrulhar -- o que o fez recobrar o controle instantaneamente,
tamanha a surpresa diante de um estômago embrulhado naquela
situação de artifício malsão, ambiente totalmente feito de verbo.
Com a mão na barriga, Borba olhou para o cão modificado, o
esquema de canino. Achou que as feições do bicho lembravam
Theodore Kaczynski. Dez anos em cana. Dizem que era inocente.
- NESCIT VOX MISSA REVERTI...
E a cara-de-cão abriu-se em sorriso, doçura na fealdade.
O proteu sussurrou.
- Borba, acho que chegamos onde você queria, afinal. Esse
animal é d’Ela...

Borba olhou para o túnel e viu sair de lá uma mulher muito


magra, quase waif, porém muito bonita; e viu ela se aproximar
daquela trupe de dois. A ruiva tinha os cabelos muito lisos e usava
uma espécie de relógio-computador nos pulsos.
- Rexx! Venha cá! Vem Rexx! Vem!
O cão dos infernos parou seu rosnar latinado e foi lamber a
mão de sua dona.
O proteu quis fazer as honras.
- Finalmente você encontrou sua salvadora, Borba. Você se
perdeu várias vezes neste caminho, mas conseguiu chegar são e
salvo ao seu destino. O que não seria de você sem mim? Hein?
O corpo de Borba, tecnicamente morto dentro da caverna, não
tinha muita certeza disso.
- Caçadora! Você é real? Apenas me diga isso.
- Sim, Borba. Sou real.
- Tenho alguma chance de sair dessa, minha amiga?
- Não.
A resposta negativa e direta não era muito apropriada naquele
momento. Uma resposta adequada, principalmente se for dirigida a
um ente querido em dificuldades mortais, deveria ser uma que não
deixasse transparecer a fatalidade iminente.
- Não??? Quer dizer que eu vou morrer?
- Você já está morto, meu amigo. Qual o drama?
Quando perdemos algum membro do corpo em um acidente
não sentimos nenhuma dor no momento. Borba havia perdido a
vida e a sentiu como se fosse um membro recém amputado.
- Hum. Não sei ainda. Preciso me acostumar com essa idéia.
Eu achava que morrer era como cair em um buraco negro infinito,
sem ter a sensação de queda e ouvindo o silêncio a infinitos
milhões de decibéis. Pelo jeito eu estava enganado.
- Em uma primeira etapa da morte, você é assediado por
imagens. Você devia saber disso. Ainda não entendi seu receio.
Para Borba, a Caçadora estava transmitindo uma enorme
segurança. Uma exagerada e suspeita segurança.
- Bem... Então o que você está fazendo aqui, amiga? Não
acha que a sétima cavalaria chegou tarde demais? Já sei! Está aqui
para me confortar... Para rezar minha extrema unção?
- Não exatamente.
Borba olhou para o proteu, que fez um gesto com os ombros -
um gesto de desconhecimento do que estava acontecendo. Mesmo
assim abordou insolentemente a Caçadora.
- Caçadora? Pensei que você tinha me delegado a tarefa de
encaminhar este pobre homem até um porto seguro...
Em um gesto brusco, a Caçadora digitou algo em seu pulso e
o proteu simplesmente sumiu.
- Malditos bots! Sempre dando opinões sem serem
requisitados. E ainda por cima, usam clichês. Imperdoável.
Borba, apesar de morto, sentiu uma ponta de medo. Seria seu
primo Trasíbulo fantasiado de Caçadora?
- Quem é você? A Caçadora nunca falaria deste jeito com um
bot.
- Sou a Caçadora de sempre. Aquela que o salvou do
incêndio em SimFrisco causada pela vaca louca dos O’Leary. Eu
fui a que o salvou de um ataque de dumping e do vírus RINGO.
Quantas vezes jogamos Wordtris em locações ilegais? Mil
quinhentas e setenta e quatro vezes, para ser exata.
Aquelas informações comprovavam a legitimidade da
Caçadora. Só faltava ela dizer alguma de suas senhas.
- E sua senha no Servidor da universidade, no verão de 45,
era “rUmplEstiLtskiN”.
Borba foi às lágrimas e disse resignado.
- Caçadora! Estou morto! Não conseguimos montar a
logística de um resgate. Fracassamos, Caçadora. Fracassamos.
- Não, Borba. Não fracassamos. Vencemos.
- Como?!
A Caçadora fez um pequeno suspense e disse.
- Estamos no Céu. Você fez sua viagem do inferno ao
paraíso, passando pelo purgatório.
Borba estava extasiado com esta possibilidade.
- Caçadora... Eu te amo.
- Eu semprei te salvei porque sempre te amei, Borba.
O antropólogo morto, ou o que restava de sua alma, correu
em direção à Caçadora, embevecido pelos ares celestiais desta
proposição. Sinos, anjos hermafroditas, halos de pureza infinita,
mobílias feitas com pedaços de nuvens. O Céu não poderia ser um
mal lugar.

Quando os dois ficaram mais próximos, prestes a darem o


grande amplexo da morte, Rexx, o cachorro dos infernos, rosnou, e
aquele rosnar não era mais modulado na forma de uma retórica em
latim, pois era mais o rosnar de um pastor alemão raivoso. O cão
correu em direção à Borba, abocanhou sua mão e rasgou o tendão
do seu pulso.
- Iaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaarghh!
O cachorro era agora um rotweiller, que abriu sua bocarra
para morder o ventre de Borba. Neste momento, a Caçadora
inteferiu.
- Rexx! QUIETO! PARA TRÁS! PARA TRÁS! Cachorro
idiota! Não era a hora! Eu já estava com a alma dele nas minhas
mãos. PARA TRÁS! Cachorro maldito!
O cachorro dos infernos obedeceu instantaneamente. Borba
estava chocado com o ocorrido. Estava mais chocado com a dor
que começou a radiar de sua mão. Ele percebeu que ainda não
estava inteiramente morto.
- Mas? Mas...?
Rexx rosnou e a Caçadora disse.
- Surpreso com o ataque do cachorro? Não chore, Borba
Altamiro. Não chore. Sua tese sobre a dominação global através da
saturação da mídia, chamada “Os Répteis do Etrusco Habanero e a
Função das Repetidoras de TV à Cabo FLAG”, vai estar em boas
mãos. Mais cedo ou mais tarde.
Borba se alinhou em meio à dor horrível.
- O quê? Como assim? Vai estar nas mãos de quem?
- Mad Dorothy, é claro.
- E você concorda com isso?
- Como não poderia deixar de concordar? Fui eu quem deu a
idéia.
Borba correu em direção à Caçadora, com os punhos
fechados. Rexx emitiu um grunhido.
- Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr!!!!
Borba parou como um pêndulo fora de prumo e disse
ofegante de ódio.
- O que você está levando com isso, Caçadora?
Neste momento, a Caçadora rodopiou no ar e começou a dar
uns passos de balé enquanto falava.
- Primeiro eu criei um falso guia. Depois, emprestei várias
camadas preenchidas por cenários de games e os povoei com
alguns personagens tacanhos. Para completar, consegui prender a
Caçadora em uma rede Ethernet sem portas. Agora vou publicar a
tese de Borba Altamiro como se fosse minha! Sou gênio. Sou elite.
Sou super.
Borba notou que alguns circuitos do tasquistoscópio que
estava transmitindo a imagem da Caçadora começaram a falhar,
devido ao excesso de excitação. As pernas delgadas da Caçadora se
transformaram em pernas cheias de varizes de bichos geográficos.
O quadril violão, em uma cintura de gordura sebosa e os seios
pequenos em um monte de geléia. O nariz afilado e os óculos
quadrados de Dorotéia Pereira surgiram com a força total de um
reagente destrutivo.
- Você não é a Caçadora...
- Excelente observação, Morto Altamiro.
- Tudo isso por minha tese? Toda esta história de proteu,
meus contatos com os cientistas do departamento de biologia,
minha viagem às cavernas na chapada, os números daquele
servidor? Bem que eu vi seus olhos naquela sessão do sensorama,
com o Dr. Julio. Seus olhos eram de uma pessoa doente.
Mad Dorothy confirmou e disse.
- Digamos que meu problema com você é mais complexo.
Suas idéias sobre direitos autorais não têm mais lugar no campus.
Eu não suporto estes moleques paladinos que lutam contra a
usurpação de conceitos e originalidades alheias. Me dá nojo. Tudo
já foi criado, meu caro Morto Altamiro. Nosso papel, como
acadêmicos que somos, é apenas rearranjar as cartas do baralho da
cultura. Não há como lutar contra a corrente do plágio e das
apropriações. É inútil. Absolutamente inútil...

Dorotéia Pereira fez um discurso emocionado para a banca,


ao apresentar sua magnífica tese.
Em seu discurso, a laureada comoveu os mais empedernidos
discentes ao lembrar de seu assistente, que desaparecera nas
cavernas do planalto. Falou da origem humilde do jovem
pesquisador, falou de sua imensa curiosidade sobre as novas áreas
de pesquisa. Com os olhos úmidos, concluiu dizendo que Borba
Altamiro teria sido um grande cientista, se ao menos tivesse tido
tempo...

Nas cavernas do planalto. Gotas de verdade caem


calcareamente sobre montículos salinos. Um leve cheiro de
carbureto, leve. Uma brisa mistura os odores de sal com uma
decomposição quase perfeita...
As falanges descarnadas, os trodos desfeitos pelo tempo. Nos
ossos do tórax, um rápido movimento. A gaiola branca é um bom
refúgio para um lagarto tímido.
FINIS

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