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primeira vez a obra 4’33”, a chamada silent piece, de John Cage, a reação do público
instrumentos, pode ser descrita como um período de tempo de quatro minutos e trinta e
três segundos (dividido em três movimentos: 30’, 2’23” e 1’40”) em que nenhum
instrumento emite qualquer som. A causa da revolta do público – devida, segundo Cage
prescindir de sons. Ora, Cage estava preocupado não com o silêncio propriamente dito
(enquanto absoluta ausência de sons), mas com os sons ocasionais que permeiam a vida
humana e com o caráter contínuo da música. A silent piece, nesse sentido, teria o intuito
de sons.
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É devido aqui um agradecimento ao professor Abel Lassalle Casanave, de cuja mente inquieta surgiram
as idéias que deram origem a este trabalho.
1
Cage, J. apud Solomon, 1998.
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Disso se poderia concluir prematuramente que 4’33” se constitui numa música
sem musicistas, ou numa composição sem compositor. Contudo, um olhar mais detido
sobre a peça fornece alguns elementos que permitem descartar como demasiadamente
simplista essa conclusão. Em primeiro lugar, convém explicitar a distinção proposta por
mesmos quatro minutos trinta e três segundos poderiam ser executados, por exemplo,
Certamente, em semelhantes casos, não se poderia dizer que o que se tem é a mesma
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Cage, J. apud Solomon, 1998.
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peça. A menos que se despreze completamente o caráter estrutural da música, deve-se
Isso se torna ainda mais evidente quando se atenta para o aspecto notacional da
obra. Embora algumas edições posteriores da silent piece tenham sido elaboradas de
de pausas. Não se sabe exatamente quais entre as diferentes figuras de pausas foram
usadas por Cage nessa composição. Contudo, uma abordagem combinatória poderia
revelar (sob certas convenções) todas as possibilidades para essa construção. Embora o
século XX, tal abordagem remete a algumas idéias de Leibniz, mais diretamente à sua
método geral. Além disso, são propostas aplicações desse método a diversas áreas do
combinatória musical. Por exemplo, nas aplicações dos problemas I e II, enunciados da
gerais, Leibniz propõe o cálculo das combinações entre os registros do órgão litúrgico4.
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Número, nesse contexto, é definido por Leibniz como a quantidade de coisas que devem ser
combinadas. Expoente é o número de partes de cada combinação. Por complexões, entende-se o número
de combinações possíveis para um dado expoente. Finalmente, as complexões simpliciter são a soma de
todas as combinações possíveis de todos os expoentes para um dado conjunto.
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Leibniz, 1992, p. 43.
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ordem dessas ocorrências. Na matemática contemporânea, denominam-se combinações
Considere-se agora o problema VI: “dado o número de coisas que devem variar,
das quais alguma ou algumas se repetem, encontrar a variação de ordem”5. Aqui, uma
problema, Leibniz restringe o domínio às seis primeiras notas da escala natural, além de
elementos.
isso, poderiam ser adicionadas outras notas ou até mesmo silêncio ao domínio do
de todos esses elementos, seria certamente mais rico em detalhes que os da Dissertatio.
Com base nisso, e pensando mais diretamente o caso das pausas, podem ser
5
Id. Ibid. p. 93.
6
Leibniz, 1992, p. 94.
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exemplo de Leibniz, o mesmo problema poderia ser reduzido somente a essas pausas.
minutos e trinta e três segundos teriam um resultado que, do ponto de vista perceptivo,
seria idêntico a 4’33”. Contudo, do ponto de vista notacional, apenas uma entre todas as
Para tornar mais claras essas considerações, atente-se para alguns aspectos
básicos da notação musical. Essa notação designa os elementos da música sobre a base
de dois eixos, onde se assinalam as relações de altura e duração entre as notas. A altura
é apontada pela linha em que a nota é grafada no pentagrama, sendo que a ascensão do
grave para o agudo se representa pela ascensão das linhas inferiores às linhas superiores
assinalada sobre uma determinada altura. Contudo, os desenhos das figuras indicam
simplesmente a duração relativa das notas. A duração exata dessas notas depende da
indicação do andamento, o qual funciona como um pulso temporal padrão para uma
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determinada peça ou trecho. O seguinte grafo exibe o complexo de relações entre as
Cada uma dessas figuras para sons encontra uma respectiva pausa, de modo que
o mesmo complexo de relações entre as durações dos sons pode ser observado entre as
diferentes estruturas rítmicas. Pode-se exemplificar esse ponto a partir das diferentes
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possibilidades combinatórias para um trecho de quatro compassos utilizando-se apenas
novo trecho de mesma duração poderia ser construído com outras figuras, como por
Outras tantas combinações a que se pode chegar para esse trecho fariam uso de
diferentes figuras, constituindo-se assim estruturas rítmicas mais complexas. Isso pode
abordagem é capaz de revelar, uma delas poderia ser (dadas algumas convenções
poderiam resultar de um estudo mais profundo da questão. Assim, Cage poderia ter
composto não apenas uma, mas inúmeras silent pieces. Mesmo que todas elas tivessem
a duração de quatro minutos e trinta e três segundos, seria ainda lícito afirmar que se
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tratariam de composições diferentes, desde que sua construção se utilizasse de
É claro que, como foi dito anteriormente, os propósitos de Cage não estavam
tocante ao aspecto notacional. Primeiramente, entende-se que a música não pode ser
determinada composição, resta ainda algo, a saber, uma estrutura temporal. Essa
estrutura deve, portanto, ser o que há de mais fundamental na música. Nos termos da
teoria musical tradicional, pode-se dizer que, embora se possa prescindir da categoria
Portanto, a própria caracterização clássica da música como “a arte dos sons” não
parece aqui muito oportuna. Mesmo que para as condições perceptivas humanas o som
se configure como a matéria-prima musical por excelência, não se pode dizer que seja a
de haver música sem sons, sugerindo algumas possibilidades de música visual7. Para
tanto, traça uma analogia entre os sons e as cores, bem como entre a escala natural dos
sons musicais e a escala cromática. Suas conclusões mostram que, embora hajam certas
órgãos dos sentidos de audição e de visão impedem que tenhamos algo como uma
música das cores. A principal diferença apontada pelo autor é o fato de que, enquanto as
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C. f. PESSOA, 2007.
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“De fato, mesmo que um lá de freqüência única entrasse no ouvido, o
aparelho auditivo geraria as notas da série harmônica, devido ao fato
de ser uma cavidade ressonante. Já a visão não envolve cavidades:
cada um dos três tipos de células sensíveis a cores, chamados ‘cones’,
detecta apenas uma região em torno de uma freqüência única de luz,
não havendo o armazenamento temporário de energia luminosa em
qualquer cavidade ressonante”8.
poderia ser preenchida não com sons, mas com cores, e organizadas de uma forma tal
para afirmar de maneira mais consistente o caráter estrutural da música. Dessa forma,
(que seriam os sons), parece mais próprio falar em um sistema que se refere a estruturas,
Bibliografia
PESSOA, O. “É Possível Haver Música sem Som?” [in: DUARTE, R., SAFATLE, V.
(orgs.) Ensaios Sobre Música e Filosofia. São Paulo: Humanitas, 2007].
SOLOMON, L. The Sounds of Silence – John Cage and 4’33”. Princeton: GH Press,
1998.
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Id. Ibid.